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(Millôr Fernandes)

sábado, 3 de junho de 2017

"Refis da Sonegação": O retorno


Sábado, 3 de junho de 2017

Aldemario Araujo Castro*

Brasília, 3 de junho de 2017

Recentemente, escrevi um texto com o seguinte título: “REFIS DA SONEGAÇÃO”: A “PONTA DO ICEBERG” (http://www.aldemario.adv.br/refisdasonegacao.pdf). O referido escrito destacava: a) a comissão de deputados e senadores encarregada de analisar a MP n. 766 aprovou um parecer que transformava o “quase-REFIS” num programa de parcelamento e perdão de dívidas tributárias sem precedentes; b) a proposta aprovada passou a ser conhecida como “REFIS DA SONEGAÇÃO”; c) o desacreditado governo Temer-Meireles-Padilha-Loures não demorou para identificar a oportunidade de instalar mais um balcão de negócios em torno desse festival de privilégios. Nem mesmo a profunda contradição de patrocinar diminuições de receitas ante o (falso) discurso do apocalipse nas contas previdenciárias conteve os viscerais instintos das velhas raposas instaladas no comando do governo federal e d) assim como o “REFIS DA SONEGAÇÃO”, os traços mais salientes da tributação no Brasil apontam para a definição de privilégios para uma minoria e ônus excessivos para a grande maioria da população. 


A Medida Provisória n. 766 não foi aprovada pelo Congresso Nacional e perdeu a eficácia no dia primeiro de junho do corrente ano. Aparentemente, o fantasma do “REFIS DA SONEGAÇÃO” (alternativa ao texto original) teria morrido junto com a aludida MP. Ocorre que o Palácio do Planalto e o Ministério da Fazenda trataram de ressuscitar o monstro. Suspeitas negociações com o grupo de parlamentares que concebeu o “REFIS DA SONEGAÇÃO”, fizeram nascer a Medida Provisória n. 783, editada no dia 31 de maio. Esse diploma legal instituiu o Programa Especial de Regularização Tributária (PERT). Trata-se do retorno do “REFIS DA SONEGAÇÃO” com mitigações em relação ao proposto no âmbito do Parlamento.


Entre os benefícios (privilégios mesmo) contidos na MP n. 783/2017 devem ser destacadas as hipóteses de reduções de juros de mora. Existem situações com diminuições de noventa, oitenta e cinquenta por cento dessa parcela de acréscimo ao valor original do débito tributário ou não-tributário.


Atualmente, os juros moratórios incidentes nos créditos tributários federais consistem na taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC, por força de uma série de dispositivos legais (art. 13 da Lei 9.065/95; art. 84 da Lei 8.981/95; art. 39, §4º, da Lei 9.250/95; art. 61, §3º, da Lei 9.430/96 e art. 30 da Lei 10.522/2002). Segundo pacífica jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a SELIC não pode ser cumulada com correção monetária porque essa última já está embutida na formação da primeira (EREsp n. 727.842, EDcl no REsp n. 1.025.298, entre outros).


Assim, é flagrante a inconstitucionalidade das reduções de juros nos patamares referidos. Com efeito, aquelas definições normativas atentam inapelavelmente contra a isonomia, a moralidade e a razoabilidade, todos vetores constitucionais de observância obrigatória pelo legislador. Essa afirmação decorre do escandaloso fato de que o devedor integrado ao PERT da MP n. 783/2017 pagará um valor menor do que o contribuinte que recolheu em dia, no prazo original previsto em lei, os créditos devidos ao Poder Público Federal.


Esse é mais um episódio reprovável na triste novela dos programas especiais de parcelamento ou regularização tributária que se sucedem, ano após ano, crise após crise, com benefícios cada vez mais censuráveis. Tais expedientes não devem ser pura e simplesmente eliminados. Entretanto, a formatação e utilização deles deve passar por rigorosos critérios. Duas linhas de definições, entre outras, precisam ser necessariamente consideradas: a) as vantagens para adesão ao programa desenhado não podem colocar o devedor em situação mais favorável do que aquela experimentada pelo contribuinte que honrou com o pagamento dos tributos até o vencimento normal e b) o estabelecimento de contrapartidas nos campos, entre outros, trabalhista, ambiental e social.


Existe, é importante anotar, uma consequência profundamente deletéria na adoção desordenada de programas de regularização fiscal. Enormes esforços realizados pelos agentes da Administração Tributária, quer na seara da fiscalização, quer na seara da cobrança judicial, são interrompidos, dificultados e até mesmo desmoralizados.


O mais adequado é que os programas de regularização tributária ganhem, no âmbito de uma profunda e abrangente Reforma Tributária, limitações como aquelas anteriormente mencionadas. Esse movimento de redesenho da tributação no Brasil deve considerar necessariamente as seguintes diretrizes: a) a redução significativa da oneração do consumo e do trabalho; b) o aumento da carga tributária sobre o capital, o patrimônio, as operações financeiras, incluída a criação inteligente do imposto sobre grandes fortunas; c) um consistente programa de combate à sonegação (atualmente, na casa de meio trilhão de reais por ano); d) o fortalecimento da Administração Tributária, inclusive com a adoção ou aperfeiçoamento de programas consistentes voltados para a recuperação, em níveis adequados, dos créditos inscritos; e) a revisão criteriosa de renúncias fiscais e mecanismos sofisticados de redução seletiva da carga tributária (verdadeiros privilégios para vários segmentos socioeconômicos) e f) aprofundamento da simplificação e racionalização do sistema, notadamente para pessoas físicas e empreendimentos de pequeno e médio portes. 


Infelizmente, as questões tributárias, assim como outros aspectos estruturais da vida nacional, não recebem a devida atenção, notadamente pela grande mídia. Assim, parece que os problemas nacionais de maior relevo estão limitados aos aspectos fiscais dos gastos com a previdência social, remunerações de servidores públicos e escândalos de corrupção. A perversa consequência dessa narrativa, cuidadosamente elaborada e veiculada, é a falsa percepção de que a superação dos entraves do país passam necessariamente (e quase que exclusivamente): a) por reformas voltadas para restringir direitos sociais e b) pelo combate policial e judicial aos esquemas de malversação do patrimônio público.


Não serão “salvadores da Pátria”, “líderes esclarecidos” ou reformas desarticuladoras do sistema de proteção social inscrito na Constituição de 1988 que colocarão o “Brasil nos trilhos”, como insistem os suspeitos governantes do momento. Somente a força da mobilização e conscientização populares mudarão substancialmente o quadro dantesco vivenciado no Brasil. O protagonismo das mudanças de fundo, com inafastável caráter democrático e popular, deve estar centrado na cidadania em atuação enérgica e decisiva nos mais variados espaços sociais.


Aldemario Araujo Castro* é Advogado, Mestre em Direito, Procurador da Fazenda Nacional, Professor da Universidade Católica de Brasília

Brasília, 3 de junho de 2017