Enquanto o Mundo espera o pontapé inicial da Copa do Mundo
de 2014, pais e mães esperam por suas filhas, sem saber onde estão.
Enquanto a equipe da Nigéria se prepara para entrar em
campo, no dia 16 de junho, contra o Irã, mais
de duzentas meninas e adolescentes nigerianas estão à mercê de
criminosos do grupo extremista Boko
Haram.
Em 14 de abril, cerca de 276 garotas foram retiradas de
suas famílias e levadas para cativeiros ignorados em meio à selva africana.
Estavam na escola. Por isto foram escolhidas.
Este deve ter sido um dos maiores raptos da História. Outro bem famoso, o Rapto das Sabinas entrou para os livros
como um célebre episódio da epopeia romana. Segundo a lenda, teria ocorrido em
Roma, por volta de 750 a.C. Dizem os historiadores, entre eles Plutarco, que os
romanos teriam tratado as sabinas com respeito, após raptá-las. As meninas
nigerianas não tiveram a mesma sorte nas mãos da Boko Haram.
Capturadas para serem vendidas (aqui) por preços em
torno de um dólar ou submetidas a casamentos
forçados, na própria Nigéria, em Camarões ou no Chade, ou ainda
para se tornarem escravas sexuais,
as meninas nigerianas são vítimas do atraso e do preconceito de rebeldes
islamitas, que deturpam os nobres ensinamentos do Islã, em proveito de seu
egoísmo e ignorância, inspirados pelo propósito de tomar o poder e instalar
(mais) um governo fundamentalista naquela região do globo.
O sequestro já dura mais de um mês. As meninas estudavam
numa escola em Chibok, no miserável Estado de Borno, no Nordeste da Nigéria,
quando foram capturadas pela milícia liderada por Abubakar Shekau, quegravou um vídeo
no qual anunciou que se casaria com duas das vítimas, meninas de 8 e 9 anos,
depois de convertê-las a força ao islamismo, ou melhor, ao que ele pensa ser o
islamismo.
O que o mundo fará para resgatar as meninas nigerianas? A
reação tardou. Informações desencontradas e o receio de instigar novos ataques
manteve a Nigéria inerte. Apenas na semana passada, após um encontro de cúpula
em Paris (aqui),
Estados Unidos, França, Reino Unido e a União Europeia resolveram formaram uma
coalizão para apoiar Nigéria, Chade,
Camarões e Benin na luta conta o grupo extremista.
A milícia Boko Haram
surgiu e se fortaleceu após a eclosão da Insurgência Islâmica no norte da
Nigéria em 1999. Nove Estados da federação nigeriana, todos de maioria
muçulmana, passaram a aplicar integralmente a Sharia, inclusive em seus rigorisíssimos aspectos
criminais. A Nigéria e países centrais na luta contra o terrorismo relutavam em
rotular a Boko Haram de uma entidade terrorista. Agora não há
mais espaço para dúvidas. Aos violentos atentados cometidos pelo grupo desde
2009 soma-se este absurdo e vergonhoso rapto
em massa.
O caso nigeriano diante do direito
internacional
É fácil classificar a presente conduta do grupo terrorista
como um crime grave, reprovado pelo direito internacional. Vários documentos
internacionais podem ser invocados, o primeiro deles, o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas
contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e
Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças,
adotado em Nova York em 15 de novembro de 2000 (Decreto 5.017/2004). Este
tratado busca prevenir e combater o tráfico de pessoas, com atenção especial às
mulheres e às crianças vítimas desse tráfico.
Conforme o artigo 3º deste Protocolo à Convenção de
Palermo de 2000, “tráfico de pessoas”
significa, entre outras coisas, a transferência de pessoas mediante ameaça ou
uso da força ou outras formas de coação, incluindo o rapto para fins de
exploração, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de
exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas
similares à escravatura, ou a servidão.
Por sua vez, o sequestro das meninas nigerianas também
ofende a Convenção sobre a Eliminação
de todas Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, 1979)
(Decreto 89.460/1984), que obriga os Estados Partes a tomar as medidas
apropriadas para suprimir todas as formas de tráfico de mulheres. De acordo com
a CEDAW, “discriminação contra a mulher” é toda “distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por
objeto ou resultado menoscabar ou anular o reconhecimento, o gozo ou exercício
por parte da mulher, independentemente do seu estado civil, com base na
igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais
nas esferas política, econômica, social, cultural e civil ou em qualquer outra
esfera”.
No que tange aos casamentos forçados, o artigo 16 da CEDAW, os Estados Partes devem
adotar medidas adequadas para eliminar a discriminação contra a mulher em todos
os assuntos relativos ao casamento e relações familiares e em particular, com
base na igualdade entre homens e mulheres, assegurar o mesmo direito de
contrair matrimônio e o mesmo direito
de escolher livremente o cônjuge e de contrair matrimônio somente com livre e
pleno consentimento.
No mesmo sentido de proibição dos casamentos forçados, o
artigo 23 do Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos (Nova York, 1966) (Decreto 592/1992)
determina que casamento algum será celebrado sem o consentimento livre e pleno
dos futuros esposos.
Há tratados semelhantes no plano regional
americano e europeu, como são a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher
(Convenção de Belém do Pará, de 1994), aprovada pelo Decreto
1.973/1996, e a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e
o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica
(Convenção de Istambul, de 2011). Conforme a Convenção de Belém
do Pará, a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e
psicológica a ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo,
entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres,
prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como
em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local.
Obviamente, como o fato se deu em continente africano, é necessário lembrar que
lá vige a Carta Africana de Direitos
Humanos e dos Povos (Convenção de Banjul, de 1981), que também
protege direitos e liberdades fundamentais de mulheres e crianças, e cujo
artigo 5º declara que:
“Artigo 5º. Todo indivíduo tem direito ao respeito da
dignidade inerente à pessoa humana e ao reconhecimento da sua personalidade
jurídica. Todas as formas de exploração e de aviltamento do homem, nomeadamente a escravatura, o tráfico de pessoas,
a tortura física ou moral e as penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes são proibidos”.
Como se percebe, o tráfico de mulheres para exploração
sexual ou para servidão ou para casamentos forçados são formas de violência de gênero, que ainda
existem em profusão na África e na Ásia. No caso nigeriano, foram motivados
pelo preconceito contra a inserção de meninas em escolas e como uma ofensa ao
direito das mulheres de acesso à educação, tanto que o em lingua hauçá Boko Haram significa “educação ocidental é proibida“.
Por isto, essa ação lembra o que ocorreu com a paquistanesa Malala Yousafzai (aqui), vítima de um
atentado em outubro de 2012, no noroeste do Paquistão, quando ia para a escola
de ônibus. Malala, então com 14 anos, tornara-se alvo do Talibã. Hoje, é internacionalmente
conhecida como ativista dos direitos das mulheres e do direito à educação.
Embora os atos da Boko
Haram tenham plena feição de violência de gênero, os raptos
praticados por esta milícia são também uma forma de terrorismo, e tal conduta pode ser
facilmente enquadrável na Convenção
Internacional contra a Tomada de Reféns (Nova York, 1979), para
nós Decreto 3.517/2000. De acordo com este tratado, comete o crime de tomada de refém “toda pessoa que prender, detiver ou ameaçar matar,
ferir ou continuar a deter outra pessoa, com a finalidade de obrigar terceiros,
a saber, um Estado, uma organização intergovernamental internacional, uma
pessoa física ou jurídica, ou um grupo de pessoas, a uma ação ou omissão como
condição explícita ou implícita para a libertação do refém“. E isto
porque o líder da Boko Haram condicionou a libertação das
meninas nigerianas à soltura de prisioneiros da milícia, que estão detidos em
prisões da Nigéria (aqui).
As violações à normatividade internacional não param aí.
Ao tratar dos delitos sujeitos à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, o artigo 7º do Estatuto de Roma de 1998
(Decreto 4.388/2002) tipifica como crimes
contra a humanidade quaisquer um dos atos seguintes — quando
cometidos no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer
população civil — que possam ser classificados como escravidão; desaparecimento
forçado; prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em
violação das normas fundamentais de direito internacional; agressão sexual,
escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização
forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade
comparável; e outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem
intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física
ou a saúde física ou mental.
Segundo o mesmo artigo 7º do Estatuto do TPI, por “escravidão” entende-se o
exercício, relativamente a uma pessoa, de um poder ou de um conjunto de poderes
que traduzam um direito de propriedade sobre uma pessoa, incluindo o exercício
desse poder no âmbito do tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças.
E por “desaparecimento forçado de
pessoas” entende-se a detenção, a prisão ou o sequestro de
pessoas por um Estado ou uma organização política ou com a autorização, o apoio
ou a concordância destes, seguidos de recusa a reconhecer tal estado de privação
de liberdade ou a prestar qualquer informação sobre a situação ou localização
dessas pessoas, com o propósito de lhes negar a proteção da lei por um
prolongado período de tempo. Tais circunstâncias fazem surgir a jurisdição do TPI sobre os
integrantes da Boko Haram,
caso haja inércia das agências de persecução penal ou do Judiciário nigerianos.
Neste momento o que se espera é cooperação para a
libertação das meninas nigerianas. Uma ação
concertada internacional é fundamental, no plano da troca de
informações de inteligência, para permitir o resgate das adolescentes raptadas.
Embora as forças regulares do Exército nigeriano estejam presentes no Estado de
Borno, são mal equipadas e mal treinadas e não são capazes de enfrentar os
terroristas da Boko Haram sem
por em risco a vida das vítimas.
Leis e tratados não faltam. Que o presidente nigeriano Goodluck Jonathan saiba conduzir o
resgate. As meninas precisarão de mais do que “boa sorte” para sairem com vida
deste rapto, que envergonha a “civilização” planetária neste ainda sanguinário
século XXI.
E que os pais e mães dessas meninas possam tê-las em casa
ilesas e, como resposta, que os membros da Boko
Haram sejam julgados em cortes federais nigerianas ou perante o
Tribunal Penal Internacional. Esta é a torcida do mundo inteiro.