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(Millôr Fernandes)

domingo, 17 de maio de 2020

O Consenso de Washington e o Cenário Econômico Atual

Domingo, 17 de maio de 2020
Do porbrasilia
Por Salin Siddartha

A política econômica defendida por Paulo Guedes e pelo Governo Bolsonaro leva-nos a refletir sobre a volta do Consenso de Washington como modelo para reger o cenário político, econômico e social em que nos encontramos, no Brasil. O retorno à baila de nações que anseiam por uma tática autoritária de ultradireita, para não dizer neofascista, denota que, apesar de informalmente ser tido como ultrapassado por parte dos teóricos da economia capitalista, na prática ele continua mais vivo do que nunca, apesar das diversas contradições que revela em si com relação ao sistema prevalecente da atual governança mundial. Porém, enquanto a economia imposta pelo capital monopolista internacional aos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento não consegue sistematizar uma outra proposta regulamentadora da nova ordem mundial, no vácuo da articulação da governança que se estabelece, aquele protocolo de conduta abraçado pelas organizações multilaterais a partir do final da década de 1980 continua atuante e bastante visível.
Formulado em novembro de 1989 pelos representantes do mercado financeiro, FMI, Banco Mundial, Departamento do Tesouro dos Estados Unidos e com o auxílio das diversas instituições multilaterais, o chamado “Consenso de Washington” é o marco da última leva sustentadora do capitalismo mundial. Ele impôs a política do Fundo Monetário Internacional desde 1990; é a fórmula encontrada para ajuste econômico dos países do chamado Terceiro Mundo.
O Consenso de Washington retira do Estado o incentivo ao bem-estar social e à distribuição de renda. Aberturas comerciais e financeiras, câmbio de mercado, desregulamentação das leis econômicas e trabalhistas, disciplina fiscal rígida, investimento estrangeiro direto e sem restrição de juros de mercado, redução dos gastos públicos, privatização das empresas estatais, reforma tributária são as principais normas assumidas pelo FMI e impostas às nações em desenvolvimento pela ordem mundial impingida.
A abertura comercial no contexto de um “livre comércio” e de austeridade fiscal representa, para o Consenso de Washington, o fim das barreiras alfandegárias, com o intuito de conter as nações na limitação do subdesenvolvimento. É importante frisar que tal imposição não vale para os países hegemônicos, já que eles mantêm para si as barreiras alfandegárias.
A exigência de abertura comercial e financeira dos países em desenvolvimento é realizada ao preço da diminuição de restrições e redução de tarifa de importação, pondo o capital industrial nacional em face da disputa desproporcional com os produtos importados, que se aproveitam das tarifas reduzidas. Isto é, arrasa-se a produção dos países dependentes, paralisando o desenvolvimento das forças produtivas. O aumento do custo dos produtos nacionais inviabiliza a chamada “livre concorrência”, e o desemprego atinge em cheio as famílias.
A pressão pela prática de custos de mercado tornou as economias mais vulneráveis às oscilações do capital financeiro internacional. A onda especulativa pressiona os bancos a venderem as reservas em dólares para tentar manter a taxa de câmbio, contudo sem conseguirem ser bem sucedidos, porque os especuladores terminam transferindo suas poupanças para o exterior, enquanto o governo é obrigado a desvalorizar a moeda do país.
Países com balanço de pagamentos desequilibrado são forçados a suprimir os controles de importação e, paralelamente, gerar enormes superávits comerciais, enquanto isso, as nações que sofrem fuga de capital são incentivadas a relaxarem os controles de câmbio.
O Consenso de Washington traduz-se como um método imperialista de conquistar os países do Terceiro Mundo, por intermédio do controle de suas economias, por meios financeiros. Ele dá ao setor financeiro o exercício do papel hegemônico sobre a economia. O capital produtivo das nações periféricas é desmantelado tanto quanto os Estados nacionais, e o capital financeiro passa a ser o aspecto mais acabado do capitalismo em uma dimensão rapinadora dos povos.
O Consenso de Washington é contrário a qualquer regulamentação. Por conseguinte, não aceita pisos salariais nem legislação trabalhista rigorosa. Ele patrocina o afrouxamento da legislação econômica e trabalhista, a diminuição das funções sindicais, a limitação da fiscalização e da Justiça do Trabalho, o prevalecimento do negociado sobre o legislado, a terceirização, os horários intermitentes de trabalho, a possibilidade de demissão em massa de trabalhadores e o aumento dos contratos temporários. A reforma trabalhista proposta pelo Consenso de Washington restringe taxações sobre o capital e as contribuições previdenciárias das empresas para aparentar a possibilidade de lucro e incentivar os investimentos privados.
O Consenso não aceita normatizações ambientais ou o estabelecimento de reservas florestais e minerais. No setor do meio ambiente, reduz as exigências dos relatórios de impacto ambiental e flexibiliza o emprego dos agrotóxicos. O enfraquecimento da regulamentação ambiental atrofia a fiscalização.
A disciplina fiscal e monetária é a viga mestra do Consenso. Ela aponta o aumento da taxa de juros e do superávit primário, bem como cortes no orçamento que atinjam a área social. A redução dos gastos públicos representa a diminuição das despesas primárias com as atividades do Estado em segurança pública, justiça, defesa, em programas sociais como educação e saúde pública, com a assistência e previdência social, com investimentos de infraestrutura. A redução dos gastos públicos reflete-se no aumento da pobreza, a abreviação do atendimento e amparo à infância, agravamento da situação da saúde dos pobres, diminuição do acesso à educação, limitação dos investimentos em defesa, restrição dos investimentos em ciência e tecnologia.
No bojo da reforma tributária, está o perdão da dívida das empresas privadas com a previdência, os programas de refinanciamento de dívidas (REFIS) e a complacência com a fuga de divisas para o exterior. A reforma tributária imposta pelo Consenso é produzida em prol do capital e contra o trabalho.
Essas medidas econômicas resumem o neoliberalismo em um fundamentalismo de mercado, embora a movimentação da economia pela China venha obstaculizando a implantação dessas medidas, o que conduz a uma nova bipolarização do ordenamento político e econômico global, com todas as consequências daí advindas, mormente na ampliação das áreas de influência ideológica daquele Estado operário sobre os países em desenvolvimento. Também são conflitantes a preservação dos recursos naturais e da manutenção saudável do meio ambiente. Ademais, o Consenso de Washington impacta-se com o gargalo que impede o desenvolvimento democrático dos povos e o empoderamento das comunidades locais no sistema decisório de políticas públicas, devido a ser imposto de cima para baixo com reflexos ramificados no ativismo focal das unidades federativas e dos bairros.
É um encalhe ao desenvolvimento dos países submetidos aos grandes centros do capitalismo internacional. Antagoniza o capital monopolista às aspirações dos capitais nacionais produtivos, visto que implica o retorno a uma divisão internacional do processo social de produção neocapitalista, particularmente no aspecto das estocagens das “commodities”.
Por outro lado, a aplicação do protocolo de intenções do Consenso de Washington requer a impossível resolução do paradoxo da regulamentação financeira dentro da concorrência selvagem conduzida pela nova governança mundial. Consequentemente resta, para os trabalhadores, pagar a cota amaríssima de uma política fiscal massacrante sobre os chamados países do Terceiro Mundo. A consequência se traduz no controle draconiano dos gastos dos governos por intermédio da construção artificializada do superávit fiscal, causador das leis de responsabilidade fiscal, a impedir aumentos salariais, a redução do custeio, a barreira à geração de empregos, a privatização do patrimônio público em detrimento da estabilidade laboral e o ataque a toda estrutura pública da seguridade social.
A premissa de um Estado minimalista, não-intervencionista, tem sempre caído por terra em situações de crise capitalista sob a égide do Consenso de Washington, haja vista a grande intervenção dos Estados no sistema banqueiro e no mercado financeiro com o intuito de salvar os bancos e o mercado creditício, por exemplo, quando houve a “crise dos subprimes”, em 2007/2008. Naquele episódio, os financistas realizaram um esforço para, indo de encontro ao estabelecido pelo Consenso de Washington, evitar a “debacle” dos bancos a ameaçar a sobrevivência do capitalismo. Quando, no decorrer daquela crise, a sucessão de falências acelerou-se assustadoramente, o FED emprestou aos banqueiros centenas de bilhões de dólares; na Europa, os governos da Holanda, Bélgica e Luxemburgo injetaram dinheiro para salvar o Banco Fortis; na Inglaterra, o Estado nacionalizou o Bradford Bingley e, até na Finlândia, o governo nacionalizou o Glitnir.
Ora, esse investimento de capitais e o processo de nacionalização dos bancos quebrados são o suprassumo da contradição neoliberal apregoadora do Estado mínimo, do Estado não-intervencionista.  É o atestado de que, para as classes dominantes, o Estado só deve ser interveniente se for para salvar o grande capital monopolista internacional e a economia capitalista dos países do Primeiro Mundo, porém deve omitir-se para socorrer os trabalhadores e a economia dos países em desenvolvimento.
Assim, a “crise dos ‘subprimes’” desmascarou o Consenso de Washington e o neoliberalismo econômico. E não foi a única vez em que a realidade econômica do capitalismo foi desmoralizada pelos fatos, ainda agora, nesta crise de 2020, isso também tem está ocorrendo.
Desse modo, sob o pretexto da liberdade de mercado, o Consenso de Washington serve para o FMI e o Banco Mundial implantarem políticas econômicas de alto risco e de baixa racionalidade; entretanto os sistemas financeiros que regem a economia global também têm submetido os países ricos a crises não apenas conjunturais, e o Consenso de Washington se revelou falho na aplicação dos seus fundamentos de proteção das nações que se mantêm na hegemonia do capitalismo da etapa atual. Os limites do pensamento político neoliberal têm sido postos em desaire, desde a crise de 2007/2008, pela imperfeição do mercado no jogo especulativo descontrolado.
A criação de bolhas originadas pelo predomínio do setor financeiro sobre a economia real aumenta a vulnerabilidade dos povos, e torna imprevisível o futuro da economia. No entanto, as tentativas de regulação dos mercados financeiros emparedam os fundamentos do Consenso de Washington pela possibilidade da volta do controle da economia por parte do Estado a protagonizar proteção para as atividades empresariais de comércio livre e desregulamentação, sobretudo nas nações centralizadoras da ordem político-econômica globalizada.
Há um paradoxo que provoca um colapso financeiro devido aos riscos da especulação e, perigosamente, convive com a possibilidade de os bancos fornecerem liquidez aos mercados financeiros. No caso do sistema bancário e rentista, sua fragilidade ante essa equação paradoxal provém da dependência demasiada do consumidor endividado, alimentando o crescimento econômico mundial. Por outro ângulo, a não-legitimação dos títulos financeiros circulantes escorados no consumidor levaria a estrutura do capitalismo mesmo a ruir estrondosamente.
Dessa forma, o apego à ortodoxia do Consenso de Washington, até hoje, importante às nações como guia das decisões políticas por quase três décadas, só pode sobreviver auxiliado por causa de uma volta ao conservadorismo de ultradireita. A alternativa para a estabilidade da governança mundial é a submissão do sistema capitalista global ao questionamento confrontado pelos países periféricos à ocupação das brechas do sistema pelos grupos de nações ascendentes no rastro da China, como é o caso da Índia e África do Sul, dentre outros países, bem como no acirramento da luta de classes em um cenário de um conflito abrangente, que envolveria o cerne, inclusive, do movimento social nas nações protagonistas do sistema de exploração internacional do capitalismo.
Esse é o quadro que vem pressionando uma crescente promoção de um conservadorismo global de extrema direita, a ameaçar as conquistas dos trabalhadores, a comprometer os valores civilizacionais historicamente constituídos desde a Antiguidade Clássica, submetendo à possibilidade de barbárie as mulheres e os homens deste século. Nesse aspecto, a volta de governos e movimentos autoritários, totalitários e nazifascistas ameaça os povos de forma massacrante. Como é o caso do Brasil de hoje.
Cruzeiro-DF, 16 de maio de 2020
SALIN SIDDARTHA