Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 16 de maio de 2020

O dia em que nós, servidores(as) públicos(as), viramos “assaltantes”.

Sábado, 16 de maio de 2020


Permitam-me refletir sobre uma história verdadeira. Não é causo, tão pouco ouvi dizer. Trago em minha memória auditiva, em alto e bom som, o dia em que nós, servidores(as) públicos(as), viramos “assaltantes” pela boca das lideranças de um país chamado Terra Brasilis[i], em homenagem ao cartógrafo português Lopo Homem, que em 1519 apresentava ao mundo o mapa que nos revelava a costa do Brasil e parte do Atlântico.
Pois bem, na terra onde economistas viram médicos de um dia para o outro, a mídia segue como transmissora das idiossincrasias que assistimos diuturnamente sobre um vai e vem de opiniões descabidas a cerca de familiares que clamam pelo cuidado à saúde que lhes é de direito e outras vidas humanas que se esvaem a olhos nus, frente a corações endurecidos pelas mais perversas imaginações e atitudes perante as quais não estivemos diante pelo menos nos últimos 32 anos de vida democrática do país.
Os neófitos doutores em ciências da saúde e epidemiologia, que ganharam seus diplomas sem assistir a uma aula sequer, esquecem da principal lição de casa, aquela que trata da humanidade e do respeito ao próximo, aquelas aprendemos nos primeiros dias de aula. Quando se veem refletidos no espelho da triste pandemia que vivemos, aí sim, miram suas faces cruéis e horripilantes, transparecendo o ódio mortal que nutrem contra as pessoas em situação vulnerável, desprovidas de quase tudo, menos de seu maior bem: a dignidade.
Estes aprendizes não tiveram tempo de aprender que não se pode sair por ai, impondo aos ventos que abram as portas do comércio às custas de tantos adoecimentos e mortes, descontroladamente, como se somente valessem os ditos “pressupostos básicos” de um capital desmedido, alimentado por aqueles que deveriam estar na contramão do ódio e verdadeiramente ao lado dos que derramam suas lágrimas perante as milhares de covas abertas diariamente. Não, estes aprendizes não entenderam ainda a gravidade do coronavírus, muito menos as explicações epidemiológicas de cientistas e gestores sensatos.
A voz brasileira do médico Jarbas Barbosa, hoje diretor assistente da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), braço regional nas Américas da Organização Mundial da Saúde (OMS) já nos alerta que “Em primeiro lugar, só se pode pensar em um plano de transição de reabertura da economia quando a transmissão está controlada. Isso significa que o número de casos diminuiu, que se busca testar todos os sintomáticos e mesmo assim não se vê crescimento de casos, que leitos de UTI e respiradores mecânicos estão com disponibilidade de atender quem necessitar deles”. Mas esse e outros alertas não tem sido suficientes.
No entanto, ao invés dos economistas que viraram médicos seguirem harmonizando as ações democráticas em apoio à máquina pública que sustenta todo o país, desde a saúde, educação, segurança, transporte, alimentação, só para citar os serviços mais básicos, estes  usam da crise sanitária mais severa para dirigir suas palavras bélicas àqueles que mantém a máquina funcionando. Como se não bastassem os congelamentos de salários, agora viramos “assaltantes” da principal máquina do corpo humano denominado Brasil.
Somos atacados(as), congelam nossos salários em nome de “sacrifícios” que não vemos chegar aos cofres privados, tão pouco às grandes fortunas que passeiam entre o Covid-19 sem medo de contaminar os mais vulneráveis que a elas servem. Devemos entender de uma ver por todas, que os cofres da nação devem se fechar à corrupção e aos atos ilícitos cometidos sob a justificativa da emergência de saúde pública; os cofres devem se abrir para dar segurança de sobrevivência para os milhões de excluídos da riqueza que nossa gente produz, de norte a sul, brava e corajosamente seja em salas de aula, em hospitais, em viaturas policiais, conduzindo nossos destinos seguros ao lar depois de longas jornadas de trabalho.
Se para quem tem condições de ficar em casa o isolamento social já é bastante perturbador, imagine para aquelas pessoas que quase nada possuem? A pandemia do coronavírus pode ser mais devastadora para as populações vulneráveis a exemplo dos povos indígenas, comunidades quilombolas ou ribeirinhas que vivem distantes de hospitais, comunidades sem acesso à água, saneamento ou a itens de higiene básica. Pessoas em situação de rua e tantos “inumeráveis” que não têm a opção de ficar em casa para se prevenir da Covid-19.
Pessoas de baixa renda e trabalhadores(as) informais já são os(as) mais afetados(as) pelos efeitos econômicos da pandemia. Sobretudo, quando os gestores desviam grande parte do orçamento público para o pagamento de juros da dívida, engordando ainda mais as forças do capital financeiro em detrimento de políticas públicas de saúde, educação e previdência. Deixando de taxar as grandes fortunas, de instituir uma renda mínima para todo(a) brasileiro(a) em situação vulnerável, deixando de atuar como liderança pacificadora e reconhecedora de seus limites. Eis a nova arquitetura do poder, que se atualiza para a dominação financeira, sequestro da democracia e destruição da nossa Terra Brasilis.
[i] O mapa com o título “Terra Brasilis”, segundo o Portugaliae Monumenta Cartográfica, é de autoria de cartógrafo português Lopo Homem, auxiliado por Pedro e Jorge Reinel e foi feito no ano de 1519.
========Professora Fátima Sousa
Paraibana, 40 anos dedicados a saúde e a gestão pública; 
Professora e pesquisadora da Universidade de Brasília;
Enfermeira Sanitarista, Doutora em Ciências da Saúde, Mestre em Ciências Sociais; 
Doutora Honoris Causa;
Implantou o ‘Saúde da Família’ no Brasil, depois do sucesso na Paraíba e em São Paulo capital; 
Implantou os Agentes Comunitários de Saúde;
Dirigiu a Faculdade de Saúde da UnB: 5 cursos avaliados com nota máxima;
Lutou pela criação do SUS na constituinte de 1988;
Premiada pela Organização Panamericana de Saúde, pelo Ministério da Saúde e pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde.