Segunda, 13 de janeiro de 2014
Da Pública
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo
A suspeita de que foram os indígenas os
responsáveis por três desaparecimentos funcionou como um rastilho de
pólvora em uma região marcada pela ilegalidade, violência e omissão do
Estado.
Cena 1. Terra Indígena Tenharim, km 123 da
Rodovia Transamazônica, sul do Amazonas. 27 de dezembro de 2013. De um
lado da ponte sobre o Rio Marmelos, de Manicoré para Humaitá, centenas
de homens, 50 deles armados. Do lado de Humaitá, 100 guerreiros da etnia
Tenharim, 50 de cada lado da estrada. Também armados. Zelito Tenharim,
funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai), está no grupo que
liga do orelhão para o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral
da Presidência da República. O ministro da Justiça, José Eduardo
Cardozo, e a presidente da Funai também participam da conversa. E ouvem,
ao fundo, os gritos da multidão. Todos ouvem a exigência do cacique Léo
Tenharim: a Polícia Federal deve ser mandada para o local em meia hora,
“senão vai ter derramamento de sangue”. Naquele momento, o grupo
liderado por comerciantes, madeireiros e pecuaristas de Apuí e do
distrito de Santo Antônio do Matupi avançava sobre a ponte e queimava os
postos de pedágio em Terra Indígena. Quando chega a PF, dispersam. Os
Tenharim assistem à cena. Os mais velhos somem para o meio da mata.
“Quando viram aqueles homens de preto acharam que era o fim do mundo”,
conta Zelito, rememorando o episódio. Mulheres e crianças também fogem.
Nove ficam perdidos: três mães, com três crianças de colo, duas crianças
de 2 anos e um menino de 10 anos, Laudinei Tenharim. Dias depois são
resgatados, traumatizados, com febre e ferimentos. Na sexta-feira, 3 de
janeiro, sete famílias ainda estavam no meio do mato.
Cena 2. Agência do Banco do Brasil de Humaitá. Primeiro dia útil de 2014. À frente do repórter da Pública,
na fila de hora e meia para o caixa, dois pecuaristas, pai e filho,
ambos de chapéu de palha.
O pai com corrente de ouro na camiseta semiaberta, relógio de ouro, pulseira de ouro. Na ponta da corrente, Jesus Cristo. Chega um amigo e senta ao lado do pai. Eles conversam, sem se preocupar em baixar o tom de voz, sobre o assunto que domina a cidade naqueles dias: os indígenas, ou “índios”, como dizem. “Você pode matar uns dois ou três”, raciocina o amigo. “Mas cinquenta?” Ele continua: “Joga o carro em um, em outro, mas e aí?” Depois passam a falar de negócios. O pecuarista conta, com orgulho, que somente entre o Natal e o Ano Novo vendeu mil arrobas de boi. Em outro grupo, um comerciante, um amigo e um policial rodoviário federal. O comerciante conta que participou do confronto com a polícia, na noite de Natal. Mas recuou após o primeiro tiro de borracha. O policial observa que bala de borracha mata. O amigo expressa a teoria de que os americanos “mataram os índios deles e vêm aqui defender os nossos”. O comerciante acha que os incêndios ateados no fim do ano – em prédios e carros indígenas – valeram a pena. O amigo contesta: “Valia se eles não pisassem mais aqui em Humaitá”.
O pai com corrente de ouro na camiseta semiaberta, relógio de ouro, pulseira de ouro. Na ponta da corrente, Jesus Cristo. Chega um amigo e senta ao lado do pai. Eles conversam, sem se preocupar em baixar o tom de voz, sobre o assunto que domina a cidade naqueles dias: os indígenas, ou “índios”, como dizem. “Você pode matar uns dois ou três”, raciocina o amigo. “Mas cinquenta?” Ele continua: “Joga o carro em um, em outro, mas e aí?” Depois passam a falar de negócios. O pecuarista conta, com orgulho, que somente entre o Natal e o Ano Novo vendeu mil arrobas de boi. Em outro grupo, um comerciante, um amigo e um policial rodoviário federal. O comerciante conta que participou do confronto com a polícia, na noite de Natal. Mas recuou após o primeiro tiro de borracha. O policial observa que bala de borracha mata. O amigo expressa a teoria de que os americanos “mataram os índios deles e vêm aqui defender os nossos”. O comerciante acha que os incêndios ateados no fim do ano – em prédios e carros indígenas – valeram a pena. O amigo contesta: “Valia se eles não pisassem mais aqui em Humaitá”.
Cena 3. No dia do Natal, desde as 8 horas
da manhã, um carro de som do Xexéu, dono da boate Xexelândia, passa
conclamando os moradores a fazer protesto. Não se trata mais de exigir
investigações policiais, como querem os parentes de Luciano Ferreira
Freire, Stef Pinheiro e Aldeney Ribeiro Salvador, desaparecidos na região no dia 16 de dezembro;
todos ali já elegeram “os índios” como culpados. A balsa que liga a
Avenida Transamazônica à Rodovia Transamazônica, atravessando o Rio
Madeira, é o ponto de encontro dos manifestantes desde a véspera, quando
os moradores bloquearam o acesso à balsa. Comerciantes do município
bancam pizza, cachorro-quente, transporte. Lá estão também os parentes
dos desaparecidos. As mulheres passam mal: a mãe de Luciano, a mulher de
Aldeney. Uma, com hipertensão. Outra, com princípio de infarto. No fim
da tarde os manifestantes percorrem a cidade gritando: “Vamos queimar”.
“Vamos queimar os carros dos índios”. As viaturas e ambulâncias deixam o
local. Perto da balsa, Luzineide Freire, irmã de Luciano, se vê sozinha
de repente. Contrária às depredações, ela ouve os gritos daqueles que
estão ali perto, em frente da Funasa, queimando a Sede da Secretaria
Especial de Saúde Indígena. Depois, contaria: “Parecia filme”.
Cena 4. No dia 2 de janeiro, e somente
naquela quinta-feira, as famílias de Luciano, Aldeney e Stef recebem um
pedido dos policiais federais: eles querem roupas usadas dos
desaparecidos para que os cachorros possam farejar as pistas. Dezoito
dias após a notícia do sumiço. “Dezoito dias!”, exclama Luzineide
Freire, irmã de Luciano. A avó de Luciano, que o criou, já tinha lavado
quase tudo – por sorte uma camiseta do Corinthians escapou do tanque. “É
um descaso total, uma lentidão muito grande”, diz a irmã. Os parentes
sentem-se isolados, sem apoio. Luzineide e sua mãe saíram de Porto Velho
com as roupas do corpo. E ficaram dependendo da ajuda de amigos. “A
gente está a ver navios”, define ela. “E o dia não espera, passa
rápido”.
Cena 5. O ano de 2014 começa e a entrada da
sede da Funai, em Humaitá, continua sob escombros. Um funcionário
trabalha como porteiro de ninguém, em meio aos vidros e pedaços de
carro. À frente, os dez veículos da fundação destruídos, queimados no
início da noite de Natal. Nas carrocerias, restaram apenas os botijões
de gás para contar a história. Os vizinhos contam que o momento mais
tenso foi quando houve explosões, em meio aos coquetéis molotov e os
tanques de gasolina dos carros destruídos. “Não tinha como não chorar”,
conta Claudinei, morador da casa ao lado. “Queriam invadir por aqui”,
completa Maria, sua mulher, em pânico por causa das crianças. Ao lado da
Funai, no estacionamento, uma voadeira e três motos: todas queimadas.
Diante do cordão formado pelos policiais, os manifestantes atiravam
pedras e rojões e jogavam as garrafas com gasolina nos carros. O
comandante do 54º Batalhão de Infantaria da Selva mandou fechar os
postos de combustível para deter os incêndios. Motoqueiros, porém,
ofereciam o que tinha em seus tanques. Um caminhão-pipa do Exército
estava por ali. “Mas não tinha como chegar”, lembra Claudinei. O prédio
se salvou, mas os funcionários da Funai tiveram de fugir para Porto
Velho. A perícia? A perícia ainda não foi feita. O local do crime ainda
não foi isolado.
Cena 6. Na frente da sede da Funasa, em
plena Avenida Transamazônica, uma Hilux queimada, continua no local. Na
mesma noite de Natal, os incendiários saíram da sede da Funai e passaram
na Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai). Dona Nirla Belfort dos
Santos, vizinha da Casai, conta que quase queimaram o imóvel.“Tinha um
que dizia: ‘Toca fogo’”. Diante dos apelos dos vizinhos, desistiram. Mas
seguiram adiante para incendiar a sede da Secretaria Especial de Saúde
Indígena (Sesai), que fica no mesmo terreno da Funasa. O prédio está em
ruínas. “Uma amiga ia fazer cirurgia, não pode”, conta Naiara Santos, de
24 anos, Tenharim. “Os exames foram queimados. Há pessoas com câncer,
sem atendimento”. Ao fundo do terreno, mais três carros queimados. Perto
do muro, um carro da Funasa com um vidro quebrado e uma inscrição na
lateral, feita com o dedo na poeira: “Índio”. O local do crime também
não foi isolado para perícia. Na orla, no Terminal Hidroviário de
Humaitá, mais um alvo: o barco N/M Kagwahiwa, responsável pelo
atendimento às comunidades ribeirinhas. Queimado.
Cena 7. Diante do caos, o comandante do 54º
Batalhão de Infantaria da Selva, tenente-coronel Antonio Prado, decide
abrigar os 115 indígenas – a maioria Tenharim – que estavam na cidade
nesse período de Natal. O comandante recebe uma ligação de um general,
que avisa: “Não toque em um fio de cabelo dos índios”. Manifestantes
revoltam-se com a proteção dada pelo coronel. Querem capturar sua
mulher. Para protegê-la, cem soldados do Exército vigiam a Vila Militar,
onde moram as famílias dos militares. Ficam deitados no chão. Os
moradores da vila ficam uma semana sem poder sair de casa. No quartel,
uma das três Tenharim grávidas dá à luz, em pleno Natal.
Cena 8. Na véspera do Réveillon, o prefeito
Dedei Lôbo cancela os festejos na orla do Rio Madeira, que forma, junto
com a Avenida Transamazônica, o cinturão básico que delineia a cidade
de Humaitá. Por mensagens pelo celular e pelo Facebook, os moradores
articulam uma invasão: “Às 17 horas, queimar a prefeitura”. “A cidade
todinha tava sabendo”, contam os humaitenses. Note-se que, neste caso,
os fatos nada têm a ver com questão indígena. Os policiais rodam
freneticamente pela cidade e vigiam as entradas. Em especial a que vem
de Porto Velho e a que sai para a Transamazônica, por uma balsa. Na
beira do Rio Madeira, no início da noite, a prefeitura não foi queimada,
e os policiais ainda estão lá. Bem do lado do rio, uma pequena
fogueira. Ao lado, uma placa: “Perigo. Alta tensão”.
Cena 9. Cerca de 500 pessoas, com a maioria
absoluta de mulheres e muitas crianças, participam do ato anual pela
paz em Humaitá, promovido pela igreja católica, no dia 1º de janeiro. Os
locutores apresentam dados sobre violência e pedem justiça e eficiência
nas investigações. “Queremos paz, não a guerra”, diz o locutor.
“Queremos nossos maridos vivos”, “Queremos igualdade para todos”, ecoam
as faixas na caminhada com a presença dos parentes dos desaparecidos. Ao
lado da praça Dom Miguel D’Aversa, entre a Câmara Municipal e a Igreja
de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, de frente para o Rio Madeira, o
bispo Francisco Merkel faz o discurso final. “A ocupação da Amazônia
teve mortes, estupros e muito sofrimento”, diz o bispo. Passado um
tempo, veio “o pedágio, o confronto”. E dá o recado: “Não podemos fazer
justiça. A justiça é um monopólio do Estado. O que temos é o direito de
cobrar o Estado, a União, os estados, os municípios, o judiciário, a
polícia, para que cumpram suas funções. O problema deste país é que não
cumprimos as funções que nos competem. Um clima de injustiça não gera
paz”.
A Pública passou uma semana em Humaitá – uma cidade
onde nem os Tenharim, nem os Parintintin, nem os Jihaui podem pisar, sob
pena de serem espancados e mortos. Não apenas por comerciantes e
pecuaristas, mas por moradores que, como eles, vivem na pobreza. Por
trás dessas cenas de insurreição, detonada pela suspeita de que os
indígenas seriam os responsáveis pelo desaparecimento dos três brancos, a
Pública descobriu uma teia de conflitos e contradições
que desembocou, primeiro, na culpabilização dos indígenas, antes de
qualquer investigação séria – cobrada por eles e pelos parentes dos
desaparecidos. Em segundo lugar, na violência. No rastro dessa
desastrosa história em que a versão dos indígenas quase sempre é
ignorada, deparou com diversos – e antagônicos – pontos de vista. Em
todos eles há uma denúncia em comum: a omissão do Estado.
Condenados pelo preconceito, indígenas vivem apartheid
Antonio Mendes Leal, o Seu Tonico, 67 anos, era amigo de Ivan
Tenharim, o cacique de 45 anos que caiu da moto e morreu, no dia 3 de
dezembro. Conhecia-o desde que ele tinha 15 anos. “Era um cara muito
bom, nunca vi ninguém falar dele”. No hotel de Seu Tonico, na Rodovia
Transamazônica, Ivan pagava R$ 30,00 para ficar com a família, no quarto
com duas camas e armador de redes. Quando ia sozinho, o que era mais
raro, pagava R$ 15,00.
Em geral o cacique ia uma vez por mês a Humaitá, para compras e para
resolver documentação. Por exemplo, no cartório, para registrar
nascimentos. A morte do cacique Ivan Tenharim foi um momento-chave nos
conflitos do fim de ano. Parte dos indígenas levantou a hipótese de que
não teria sido um acidente, o que foi repercutido pelo então coordenador
da Funai na região, Ivã Bocchini, que seria exonerado no início de
janeiro. Esse fato acabou sendo visto pela população de Humaitá como
motivo – uma suposta vingança – para o desaparecimento dos três brancos.
Bocchini e os outros funcionários da Funai tiveram de se refugiar em
Porto Velho.
Seu Tonico chamava a mãe de Ivan Tenharim de comadre. “Ela gosta
muito de mim”, ele conta. Diante dos acontecimentos do fim de ano,
porém, recusa-se a receber novamente indígenas em seu hotel. “Prefiro
perda total a tê-los aqui”. Ele atribui o desaparecimento dos três
brancos aos indígenas e diz que os Tenharim eram bons “até o pedágio”,
cobrado daqueles que atravessam a Terra Indígena. “Aí vieram os moleques
para estudar aqui, beber, fumar droga”, diz. Ao lado do ex-vereador
Cícero Pedro dos Santos, o Cição, conta histórias sucessivas de “abusos”
em relação ao pedágio. Segundo ele, as outras etnias não causariam
problema nenhum. “De toda maneira, sendo índio eu não quero aqui.
Nunca”.
O pedágio se tornou central na narrativa sobre os Tenharim. Mesmo Dom
Francisco Merkel, o bispo de Humaitá, considera a cobrança central para
a origem do confronto. Difícil achar um morador favorável à cobrança do
que os Tenharim definem como compensação. Um deles fez questão de
entregar à reportagem um recibo de um Toyota, com carimbo dos indígenas.
“Cem reais”, revolta-se. “Cem reais!” O madeireiro Nelson Vanazzi
considera o frete da Transamazônica “o mais caro do Brasil”. “Os
madeireiros do 180 estão a cada dia com mais prejuízo”, afirma.
No momento, Humaitá vive um apartheid. Após ficarem presos no
quartel, nos dias que seguiram ao Natal, os Tenharim voltaram antes do
Ano Novo para a Terra Indígena. Não podem retornar a Humaitá, mesmo que
trabalhem na prefeitura. Não podem comprar alimentos ou remédios. A
hostilidade da maioria dos moradores ouvidos ocorre no plural, em
relação a todos os indígenas, não apenas aos que acusam de algum crime.
A dor dos parentesDo lado dos parentes dos desaparecidos, mais dor. A casa da avó de um
deles, o vendedor Luciano, virou uma espécie de QG dos parentes, em
Humaitá. Lá estão a mãe e a irmã dele, Luzimar e Luzineide, de Porto
Velho. E lá passam o dia outros parentes, como Célia Leal, mulher de
Aldeney. O terceiro desaparecido, Stef, é de Apuí, um município vizinho.
Muito chocadas, as mulheres não falam muito. Ficam atentas às notícias e procuram dar força umas às outras. Com os boatos, se acostumaram. (Houve várias notícias falsas sobre o encontro de corpos esquartejados, “esquartejados vivos”, e assim por diante.)
Muito chocadas, as mulheres não falam muito. Ficam atentas às notícias e procuram dar força umas às outras. Com os boatos, se acostumaram. (Houve várias notícias falsas sobre o encontro de corpos esquartejados, “esquartejados vivos”, e assim por diante.)
Luzimar e Luzineide contam que só na quinta-feira, dia 2, receberam uma visita do prefeito. A pedido dos parentes. “Só hoje”, repetia Luzineide. Ele levou uma psicóloga e uma assistente social. Luzineide: “Hoje”. No mesmo dia em que a Polícia Federal foi pegar as roupas usadas para o trabalho dos cães. “Hoje”.
Luciano é descrito pelas duas como um homem tranquilo, caseiro. Ele fez 30 anos na véspera de Natal. A mãe mostra-se mais atordoada. E emocionada: “Meu coração diz que o filho está vivo”. Alguém fala dos índios. Ela reage balançando a cabeça e fazendo um barulho com os lábios: “Não posso nem ouvir a palavra índio, brrr”. Embora critique o que considera proteção excessiva aos indígenas, a irmã de Luciano, Luzineide se posiciona contra os protestos violentos – e incendiários – do fim de ano. “Morte não se paga com morte. Para isso tem a justiça. Quero que eles paguem. Só isso. O que queremos é paz”.
Célia aponta Aldeney, gerente da Eletrobrás, como um romântico, um namorado à moda antiga. “Homens choram de saudade dele, os cunhados choram”, conta Célia. Aldeney mora em Humaitá, mas tem casa no “180”, o distrito de Santo Antônio de Matupi, e todo fim de semana viaja para ficar com ela. Devota de Nossa Senhora Aparecida, Célia diz que conversa com Deus para ganhar força. Por isso, a passeata promovida pela Igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, no dia 1º, lhe fez bem. “A gente se viu só”, diz.
“Tem que matar um por um”
Sobre a noite de Natal, parece haver um consenso em Humaitá: teriam
matado os indígenas se eles estivessem na rua. “Tem de matar um por um”,
afirmava uma motoqueira, no dia 30, em um bar perto da balsa. Também
são muitos os que justificam os incêndios contra bens públicos
relacionados aos indígenas. “Achei que foi bem empregado terem feito
isso aí”, diz Seu Tonico, sobre os incêndios. “Moleques andavam tudo
noiados aí, de carro novo”. Boa parte dos moradores de Humaitá se refere
ao quebra-quebra com naturalidade, minimizando a violência. Para eles,
se tratou de uma forma de “chamar a atenção” das autoridades.
Essa expressão foi uma das mais utilizadas no período em que a Pública
esteve no município. Mais comum que ela, só as frases sobre os
“privilégios e regalias” que seriam desfrutados pelos indígenas. Do
discurso não fazem parte as muitas outras ilegalidades em que a região é
pródiga: crimes ambientais, grilagem, matanças e perseguições.
Em um hotel lotado de policiais, a reportagem foi procurada por um
indígena que acabara de ser expulso de casa. Não quis dar o nome, por
segurança. “Queriam queimar minha casa”, contou. Esse Tenharim nunca
morou na aldeia. E mesmo assim sofre retaliações. Na porta do hotel, de
moto, um rapaz de camiseta branca nos encarava. Diante de um olhar
interrogativo, saiu, deu uma volta. Dali a pouco passava novamente. E
nos olhava com ódio.
Mesmo entre os que pensam de outra forma, os preconceitos contra os
indígenas se revelam facilmente. “Se não deixarem voltar [para Humaitá] é
uma ignorância”, afirma Raimundo Nonato do Nascimento, vizinho da sede
da Funai. Em seguida, acrescenta que conhece “índios que trabalham”,
reproduzindo o discurso da “preguiça”, que estigmatiza os indígenas.
Em terra Tenharim, o clamor é por investigação policial
Um dos únicos a não fazer nenhum senão em relação aos indígenas foi o
taxista que levou a reportagem à Terra Indígena Tenharim Marmelos.
“Estão no direito deles”, repetiu várias vezes durante o percurso. Ali, a
Pública foi recebida por um grupo de 20 indígenas, na manhã da quinta-feira, dia 3 de janeiro.
Ao ouvirem do repórter as declarações de Seu Tonico, de que não
aceitará mais indígenas em seu hotel, os Tenharim ficaram em silêncio.
Com os olhares fixos, chocados. Aquele era o lugar onde eles ficavam em
Humaitá. Não disfarçaram a decepção e não souberam o que dizer. Mas
falaram sobre os desaparecimentos, negando qualquer responsabilidade.
Mais do que isso: “Por que a Polícia Federal não abre outras linhas
de investigação?”, perguntava o cacique Ivanildo Tenharim. Ao contrário
dos moradores de Humaitá, que os acusam sem exigir provas, eles querem
uma apuração mais ampla dos desaparecimentos. “A PF está focada na
aldeia e não mexe com os principais”, dizem. “Com certeza quem fez isso
está achando graça”.
Até o momento, nem imprensa nem a polícia aventam a possibilidade de
outra linha de investigação. E os Tenharim apresentam outras hipóteses
que mereceriam a atenção dos investigadores. Falam de homens suspeitos
que utilizam a Rodovia do Estanho, que liga a Transamazônica a
Machadinho D’Oeste, em Rondônia, e segue para o Mato Grosso. A rodovia
começa logo após a Terra Indígena, no quilômetro 150 – muito perto de
onde policiais localizaram um carro queimado que acreditam ser dos
desaparecidos. “É uma via de concentração de fugitivos”, afirmam. Eles
contam que esses homens teriam uma base em Santo Antônio do Matupi, no
distrito de Manicoré, mais conhecido como “180” – já que fica nesse
quilômetro da Transamazônica. Eles e muitas pessoas em Humaitá chamam o
“180” de “vila dos sem-lei”. É a terra de madeireiros, dos pecuaristas,
símbolo da fronteira agropecuária do sul do Amazonas.
Os Tenharim também reivindicam segurança na reserva; segurança para
os indígenas que residem em Humaitá; segurança para quem vai
temporariamente para a cidade; um Grupo de Trabalho que aja para
solucionar o problema. Doze servidores precisam voltar ao trabalho –
entre eles o próprio Ivanildo, coordenador de Educação Escolar Indígena
de Humaitá. “Estamos preocupados com o trabalho, não com o emprego”, diz
ele. “Temos prazos que podemos perder”.
Zelito Tenharim, funcionário da Funai, reivindica a liberação de
recursos para que a Coordenação Regional do Madeira – cuja sede foi
destruída no Natal – volte a funcionar. Ele exige a segurança dos
funcionários públicos e dos indígenas. “Que priorizem esta situação que
estamos passando”.
Também há pessoas em tratamento que precisam ir ao médico todo mês.
Caso dos hipertensos, como a mãe de Domá Tenharim. “Não tem ninguém para
medir a pressão dela”, diz ele. Os indígenas estão usando medicamentos
tradicionais, “mas o efeito é muito lento”. Mesmo antes dos atentados
aos prédios faltavam medicamentos, principalmente de média e alta
complexidade. Por isso, em relação aos casos mais complexos, os Tenharim
já resolveram: querem ser atendidos apenas em Porto Velho.
O cacique Aurélio Tenharim faz questão de assinalar que não é por
medo que estão deixando de ir a Humaitá. “Estamos dando um tempo. A
gente não quer confronto nem tragédia”. Por isso eles pedem que os
órgãos que trabalham com a população indígena atendam na aldeia.
Pedágio ou compensação ambiental?
Ivanildo conta que a Secretaria Especial de Saúde Indígena fez um
levantamento, antes da destruição de sua sede, e constatou que há muita
desnutrição, entre crianças e idosos. No dia da visita da reportagem à
aldeia as crianças comiam milho e mandioca. Dias depois Aurélio disse
que já tinha acabado a carne de caça e pesca.
Das 14 escolas, só duas são de alvenaria. Três são de madeira. O
resto funciona em casas, cedidas pela comunidade. Estudante de Pedagogia
na Universidade Federal do Amazonas, Ivanildo quer a produção de
material didático específico. Mas são necessários técnicos. “Hoje os
indígenas que têm escolaridade conseguem por esforço individual, não por
apoio do governo”.
Diante desse quadro de abandono, os indígenas tomam suas próprias
providências como a cobrança do “pedágio”, que consideram um termo
inadequado. “Para nós é cobrança de compensação pelo usufruto da TI
Tenharim”, define o cacique Aurélio Tenharim. Ele diz que a cobrança,
distribuída por todas as famílias, não veio para enriquecê-los, mas para
mitigar os problemas trazidos pela Transamazônica: “Ela trouxe matança,
doença, prostituição, escravos, invasão; é um imposto ambiental e
social”.
Segundo ele, um levantamento do impacto social desde a abertura da
rodovia foi feito e entregue pelos Tenharim ao Ministério Público
Federal no Amazonas e à Funai. “Está documentado que isso foi analisado e
proposto para o governo. Não tivemos resposta”, conta.
Os Tenharim já anunciaram que vão reconstruir os postos e recomeçar
as cobranças em fevereiro. Enquanto isso, em Humaitá, o comerciante
Fernando Pereira de Maria afirma que se o governo não tirar o pedágio
vai ter de manter policiamento. “Senão vai ter enfrentamento”, afirma.
Fernando é dono do restaurante Na Brasa, na avenida Transamazônica, um
dos únicos da cidade. Como tal, acaba reunindo personagens centrais dos
conflitos em Humaitá. Por ali costumavam comer Luciano, Aldeney e Stef,
os três desaparecidos. E também o cacique Ivan Tenharim.
Dando nomes aos bois
Os Tenharim dão nomes aos que incitaram a violência em Humaitá.
Comerciantes, madeireiros, políticos. Entre eles Adimilson Nogueira
(DEM), prefeito de Apuí, o vice-prefeito de Humaitá, Herivânio Freitas
(PTN), e três vereadores de Humaitá, Manicoré e Apuí. Entre os
empresários, mencionam donos de supermercado e donos de hotéis. No caso
do 180, a “vila dos sem-lei”, os Tenharim apontam Eduardo Gervásio,
líder dos produtores rurais. “Ele chamou a população do 180 para invadir
a aldeia”, denunciam. “O pessoal já vinha anunciando há dois dias que
ia queimar”, conta Zelito Tenharim. De imediato a gente ligou para a
presidência (da Funai). Mas a proteção demorou muito. Pensamos: será que
isso vai acontecer mesmo? E deu no que deu”.
Zelito e Aurélio Tenharim contam detalhes sobre a ligação para o
ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência, e sobre
conversa telefônica naquele dia 27 de dezembro, com a participação do
ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e da presidente interina da
Funai, Maria Augusta Assirati. “Todos eles ouviram o cacique Léo dizer:
‘Se as autoridades não se posicionarem, vai haver derramamento de
sangue”.
A primeira a ser contatada, naquele dia, foi a Secretaria Especial de
Direitos Humanos, que funciona durante 24 horas. Os manifestantes,
vindos de Santo Antônio do Matupi e de Apuí, chegaram às 10 horas do dia
27. “As casas pegavam fogo e o povo gritava na estrada”, relatam. Os
guerreiros receberam a seguinte instrução: “Não atirem enquanto eles não
atirarem”. Ninguém atirou.
Os indígenas observam que são chamados de bandidos e sequestradores
pelos brancos de Humaitá, “mas em nenhum momento, mesmo eles invadindo
patrimônio público utilizado pelos indígenas, a gente revidou”. E
destacam: “Apenas ficamos na aldeia. Porque a gente tem controle da
comunidade”.
As fotos reunidas pelos Tenharim da destruição da sede da Funai
mostram pessoas mascaradas, ou com o rosto coberto por capacetes.
Segundo os indígenas, são principalmente jagunços, contratados pelos
comerciantes e fazendeiros. Também dizem que os donos de supermercado
deram R$ 1.000 para cada um dos homens que lideraram os incêndios em
Humaitá. “Eles que fizeram aquele estrago na Funai, no Sesai, no barco e
aqui na estrada”, afirmam. “O resto da população ficava assistindo,
fazendo número”.
Aurélio Tenharim é incisivo a respeito: “Foram contratados. Não é uma
versão, são fatos”. Eles dizem que ficaram sabendo do pagamento aos
jagunços por uma pessoa que foi chamada para fazer o serviço e se
recusou. “Quase foi linchado por isso”, contam os Tenharim. “E o pessoal
que gosta de indígenas contou que viram arrecadar”.
Um nome desponta como um dos mais mencionados entre os que incitaram a
violência: o empresário conhecido como Neguinho dos Cachorros, dono de
açougue e dono da Agroboi. A reportagem o procurou na Agroboi, em Santo
Antônio do Matupi, mas ele não estava.
Na cidade, a versão é a de que não havia ninguém de fora durante os
incêndios, que eram pessoas de Humaitá, conhecidas. Os Tenharim também
apontam um segurança de banco entre os agressores. Uma foto mostra esse
homem sendo imobilizado pela polícia. A Polícia Federal também investiga
os líderes da rebelião. Ao contrário da investigação sobre os
desaparecimentos, ela está sendo feita em silêncio. Até agora não chegou
aos jornais.
Macondo é aqui
Em meio a fatos concretos, como o pedágio, e o desaparecimento de três pessoas, Humaitá virou uma espécie de Macondo, em meio ao milagre da multiplicação de boatos. A cidade imaginária do colombiano Gabriel García Márquez move-se a partir do fatalismo.
Como ninguém aventa a possibilidade de que não tenham sido os indígenas os responsáveis pelos três desaparecimentos, eles são retratados como vilões. E os moradores repetem as mesmas frases, as mesmas histórias sobre eles. Que andam de Hilux. Que são ricos. Que não pegam fila de banco nem de hospital. Que queimam todos os corpos das pessoas que matam.
O boato mais popular era o dos pajés. Que um pajé tinha informado que um carro preto atropelara Ivan Tenharim. E por isso os Tenharim tinham matado as pessoas do primeiro carro preto que viram. O repórter comenta com a advogada Altanira Ulchoa, amiga dos parentes dos desaparecidos, que não há pajés entre eles. Ela retruca: “Têm pajés, sim. O Seu Ramos disse que tem pajé lá e que se chama Sadam”. Ela fala com ênfase, arregalando os olhos. E não está brincando: realmente acredita que haveria um pajé chamado Sadam.
Aos boatos se soma a desinformação. E um sentimento de inveja em relação ao que seriam “privilégios” e “regalias” dos indígenas. As duas palavras são muito citadas. Na saída de um cartório, um ex-advogado da prefeitura fez questão de falar das tais regalias: “usam brinquinhos, caminhonetes”. “Se misturaram muito”. Outro morador criticou o uso de piercing.Uma crítica muito recorrente é ao fato de eles dizerem, segundo os brancos, que “são federais”. Ou seja, que só a Polícia Federal poderia prendê-los.
Os Tenharim respondem com um misto de indignação e sarcasmo a algumas das acusações. “Onde é que tem um Hilux?”, perguntava Aurélio Tenharim na sexta-feira, 3 de janeiro. Ele teve uma Saveiro queimada. “Os índios que possuem carro têm porque trabalham com eles. Um dos Tenharim mostrou a casa sem cobertura. “Não tenho dinheiro para comprar um Eternit, imagina Hilux”, disse Moisés Tenharim.
Em setembro, o procurador Julio José Araujo Junior, do Ministério Público Federal, informava sobre as “péssimas condições de conservação” da Casa de Saúde Indígena, “oferecendo riscos de contaminação e desconforto aos pacientes em tratamento”, sendo urgente nova estrutura de acomodação “para garantir condições dignas de internação e eficiência nos tratamentos”. O mesmo Ministério Público proibiu, após o Natal, a veiculação de conteúdo racista nos sites e blogs da região. Eles se tornaram uma central de boatos – e de propagação do ódio contra indígenas. No limite da incitação à violência.
Na sede da rádio comunitária, a FM 104, comandada pelo madeireiro Nelson Vanazzi, a Polícia Federal entrou e inquiriu o locutor. Para a indignação de Vanazzi, que acusou os policiais de truculência.
A SEGUNDA PARTE DESTA REPORTAGEM SERÁ PUBLICADA AMANHÃ