Segunda, 3 de fevereiro de 2014
Leonardo Boff
O fenômeno dos
“rolezinhos” que ocuparam shopping centers no Rio e em São Paulo
suscitou as mais disparatadas interpretações. Eu, por minha parte,
interpreto da seguinte forma tal irrupção. Em primeiro lugar, são jovens
pobres, das grandes periferias, sem espaços de lazer e de cultura,
penalizados por serviços públicos ausentes ou muito ruins, como saúde,
escola, infraestrutura sanitária, transporte, lazer e segurança.
Veem televisão, cujas
propagandas os seduzem para um consumo que nunca vão poder realizar. E
sabem manejar computadores e entrar nas redes sociais para articular
encontros. Seria ridículo exigir deles que teoricamente tematizem sua
insatisfação, mas sentem na pele o quanto nossa sociedade é malvada
porque exclui, despreza e mantém os filhos e filhas da pobreza na
invisibilidade forçada.
O que se esconde por
trás de sua irrupção? O fato de não serem incluídos no contrato social.
Estar incluído nesse contrato significa ter garantidos os serviços
básicos: saúde, educação, moradia, transporte, cultura, lazer e
segurança. Quase nada disso funciona nas periferias. O que eles estão
dizendo com suas penetrações nos “bunkers” do consumo?
Eles estão, com seu
comportamento, rompendo as barreiras do apartheid social. É uma denúncia
de um país altamente injusto (eticamente), dos mais desiguais do mundo
(socialmente), organizado sobre um grave pecado social, pois contradiz o
projeto de Deus (teologicamente). Nossa sociedade é conservadora e
nossas elites, altamente insensíveis à paixão de seus semelhantes, por
isso, cínicas.
DESIGUALDADE
Em
segundo lugar, eles denunciam nossa maior chaga: a desigualdade social,
cujo verdadeiro nome é injustiça histórica e social. Releva constatar
que, com as políticas sociais do governo do PT, a desigualdade diminuiu,
pois, segundo o Ipea, os 10% mais pobres tiveram, entre 2001 e 2011, um
crescimento de renda acumulado de 91,2%, enquanto a parte mais rica
cresceu 16,6%.
Mas essa diferença não
atingiu a raiz do problema, pois o que supera a desigualdade é uma
infraestrutura social de saúde, escola, transporte, cultura e lazer que
funcione e seja acessível a todos. O “Atlas da Exclusão Social”, de
Márcio Pochmann (Cortez, 2004), nos mostra que há cerca de 60 milhões de
famílias no Brasil, das quais 5.000 detêm 45% da riqueza nacional. Os
“rolezinhos” denunciam essa contradição. Eles entram no “paraíso das
mercadorias” vistas virtualmente na TV para vê-las realmente e senti-las
nas mãos.
Eis o sacrilégio
insuportável para os donos dos shoppings. Estes não sabem dialogar,
chamam logo a polícia para bater e fecham as portas a esses jovens. Os
marginalizados do mundo inteiro estão saindo da margem e indo rumo ao
centro para suscitar a má consciência dos “consumidores felizes” e lhes
dizer: essa ordem é ordem na desordem.
Por fim, os “rolezinhos”
não querem apenas consumir. Eles têm fome, sim, mas fome de
reconhecimento, de acolhida na sociedade, de lazer, de cultura e de
mostrar o que sabem: cantar, dançar, criar poemas críticos, celebrar a
convivência humana. E querem trabalhar para ganhar a vida. Tudo isso
lhes é negado porque, por serem pobres, negros, mestiços, sem olhos
azuis e cabelos loiros, são desprezados e mantidos longe, na margem.
Essa espécie de
sociedade pode ser chamada ainda de humana e civilizada? Ou é uma forma
travestida de barbárie? Esta última lhe convém mais. Os “rolezinhos”
mexeram numa pedra que começou a rolar. Só vai parar se houver mudanças.
Fonte: Tribuna da Imprensa