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(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Na batalha do impeachment, os dois lados mostraram idêntico respeito pelo capitalismo e suas instituições

Quarta, 31 de agosto de 2016
Os parlamentares não negam o capitalismo; uns o elogiam, outros querem humanizá-lo, estando ambos equivocados.
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Do Blogue Náufrago da Utopia
por Dalton Rosado
"A vida é uma história contada 
por um idiota, cheia de som e 
fúria, significando nada" 
(Shakespeare, em MacBeth)
Nos exaustivos e repetitivos debates entre defensores e adversários do impeachment da presidente Dilma Rousseff, nenhuma das partes ousou abordar a natureza da crise do capitalismo. Fiquei atento a esta questão nas poucas vezes que tive paciência de assistir à ópera bufa encenada no Senado, mesmo sabendo que os parlamentares dos dois lados dela fogem como o Drácula dos raios solares na ficção do irlandês Bram Stoker.

A hipocrisia, a superficialidade e as meias verdades campeiam neste processo de impeachment, no qual todos brigam e ninguém tem razão. 

Muitos membros da oposição parlamentar pró-impeachment afirmam que a crise brasileira tem origem no desgoverno de Dilma, relativizando a crise capitalista mundial; os parlamentares a favor da afastada, por sua vez, afirmam que a crise internacional terminou por se abater sobre o Brasil, causando os estragos que todos conhecemos e que foram repetidamente elencados ao longo dos fastidiosos discursos (como se a grande mídia já não tivesse abordado ad nauseam e o povo sentido na carne os seus reflexos!). 

Os dois lados que se digladiam nas tempestades de som e fúria significando nada do parlamento brasileiro tudo fazem para parecerem diferentes, mas são idênticos na essência. Daí ter-se tornado consensual a análise de que a culpa não é da crise estrutural do capitalismo, mas sim de fatores circunstanciais (seja o mau gerenciamento, seja um excesso momentâneo de manipulação e ganância). 

Assim, para os impichadores, a crise advém do mau gerenciamento do governo Dilma (que existe); e para os impichados, da manipulação insensata do capital internacional, nacional e dos seus políticos (que existe). No segundo caso, propõem, como solução, o controle estatal (daí frases do tipo “mais estado e menos mercado”, do líder do PT na Câmara Federal). 

O viés estatizante é encontrado também em destacados membros da esquerda, que ao invés de aprofundarem a análise sobre as causas profundas da crise mundial do capitalismo (que explodiu a partir da crise de liquidez do sistema financeiro mundial em 2008/9, e que somente pôde sobrevier à custa do dinheiro sem valor emitido pelos Bancos Centrais dos países integrantes do G7), prefere circunscrever as suas críticas ao gerenciamento político da crise, como se fosse esta a sua causa.  

A turbulência no sistema financeiro e o descontrole do endividamento público e da inflação foram contornadas por meio da emissão de moeda sem lastro e de títulos públicos insolváveis, ou seja, por medidas evidentemente paliativas, procrastinatórias da crise. Pois esta não foi e nem pode ser resolvida na sua origem, vez que reside na paralisia inerente à chamada economia real, que a todos e a tudo financia (Estado e sistema financeiro), provocada pelo desenvolvimento tecnológico das forças produtivas (meios de produção via trabalho morto, das máquinas). 

A crise econômica mundial resulta do fato de que, pela primeira vez na história do capitalismo, não existe compensação entre o desemprego em setores tecnologicamente desenvolvidos da produção e novos empregos que possam produzir e compensar a extração de mais-valia suprimida. 
 
 
O barateamento das mercadorias reduz a massa global de mais-valia e de valor produzido, e ainda que crie a possibilidade de um maior poder de aquisição para quem está incluído no sistema produtivo, não tem mais o condão de equilibrar tal déficit e proporcionar o indispensável aumento contínuo desta mesma massa global de valor, agora reduzida. 

Estabelece-se, atualmente, o absurdo confronto entre incluídos no sistema produtivo (mas em vias de serem desempregados) e os não incluídos; uma guerra fratricida, estimulada pelo Estado, que, juntamente com o mercado, trata estes últimos como párias sociais improdutivos de valor.    

O desequilíbrio desta conta vem ocorrendo desde a revolução industrial tecnológica (cibernética, microeletrônica, sistema de comunicação via satélite e, agora, com o auxílio da nanotecnologia), sem que disso se deem conta os privilegiados defensores do capital, sejam eles explícitos (a direita) ou implícitos (a esquerda). Desconhecem ou querem desconhecer que, no longo prazo, o capitalismo é uma irresolúvel equação matemática aplicada às relações sociais.

Vários parlamentares estabeleceram um paralelo do Brasil com o caos da Venezuela, cuja população mais pobre tenta se refugiar nos países limítrofes de suas fronteiras (Colômbia e Brasil), por absoluta falta de oferta de bens indispensáveis à vida, como alimentos e produtos de higiene pessoal; veem em tais ocorrências um exemplo das virtudes do capitalismo. 

Esquecem-se tais analistas facciosos que a Venezuela é um arremedo de capitalismo de Estado que se manteve sustentado pelo petróleo, num comércio internacional no qual seu maior comprador eram justamente os Estados Unidos. Ora, relações de comércio internacionais são mecanismos capitalistas, e bastou a queda do preço internacional do petróleo e os boicotes do capitalismo liberal burguês para que se inviabilizasse a tal revolução bolivariana. A falta de profundidade das análises de uns e de outros é de estarrecer. 

Os parlamentares não negam o capitalismo; uns o elogiam, outros querem humaniza-lo, estando ambos equivocados. 

Outra questão que me chamou a atenção foi o elogio uníssono ao parlamento burguês, como se este fosse ganho intocável da civilização ocidental e altar da democracia. Já disse no meu primeiro artigo neste blogue que a democracia é antidemocrática, no sentido de que se trata de um artifício que se incorporou semanticamente como sinonímia enganosa do justo e do bom. Agora digo que o parlamento é mais uma expressão explícita do engodo chamado democracia.    

Obviamente, um parlamentar que jura obediência à Constituição ao tomar posse, torna-se, implicitamente, submetido aos cânones da casa parlamentar, que foi criada e concebida pelo regime republicano burguês. Aliás, o elogio à República é referência sacrossanta, assim entendida por todos os parlamentares que se pronunciaram no processo de impeachment. 

É por isto que afirmo que alguém que se considere anticapitalista não deve pertencer e participar do parlamento, pois não pode negá-lo, sob pena de falta de decoro parlamentar. Desculpem-me se o trocadilho é infame, mas a atividade parlamentar dá para lamentar...


A mim me parece que as intermináveis discussões havidas no teatro jurídico-institucional do Congresso Nacional sobre o impeachment equivalem, numa analogia metafórica, a uma enorme junta médica que discute hipocritamente, sob os auspícios midiáticos, como curar a infecção de uma unha encravada num paciente que está tomado por uma metástase cancerígena. (por Dalton Rosado)