Quarta, 22 de janeiro de 2014
Do Outras Palavras
Para sociólogo, movimento reúne duas marcas contemporâneas e
transformadoras: atitude libertária e pauta tóxica… para o capitalismo
A luta do Movimento Passe Livre (MPL) – movimento pelo transporte
público gratuito – contra o aumento dos preços das passagens foi a que
desencadeou a ampla e impressionante mobilização popular no Brasil no
último mês de junho, que levou às ruas centenas de milhares, quando não
milhões, de pessoas nas principais cidades do país. O MPL foi uma
pequena faísca libertária que provocou o incêndio. Quais lições podem
ser tiradas desta experiência e qual é o alcance social, ecológico e
político da luta pelo transporte gratuito?
O MPL foi fundado em janeiro de 2005, por ocasião do Fórum Social
Mundial de Porto Alegre, como uma rede federativa de coletivos locais.
Estes coletivos já existiam há vários anos e levaram a cabo importantes
lutas como a de Salvador (BA) em 2003, contra o aumento das passagens
de ônibus. A carta de princípios do MPL (revisada e completa em 2007 e
2013) o define como um “movimento horizontal, autônomo, independente e
apartidário, mas não antipartidário”.
A horizontalidade é, sem dúvida, a expressão de um projeto libertário
que desconfia das estruturas e instituições “verticais” e
“centralizadas”. A autonomia em relação aos partidos significa a negação
em ser instrumentalizado por estes últimos, mas o movimento não recusa
a colaboração e a ação comum com as organizações políticas, em
particular as da esquerda radical. Atua em conjunto também com
associações de bairros populares, com movimentos pelo direito à
moradia, com as redes de luta pela saúde e com certos sindicatos
(trabalhadores do metrô, professores). Enxerga no transporte gratuito
não um fim, mas um “meio para a construção de uma sociedade diferente”.
Pequena, a rede nunca superou algumas centenas de militantes, advindos
primeiro das instituições de ensino e mais tarde dos bairros
populares. De sensibilidade anticapitalista libertária, os ativistas
têm diferentes origens políticas: trotskystas, anarquistas,
altermundialistas, neozapatistas; com um toque de humor, alguns se
definem “anarco-marxistas punk”. Em novembro de 2013 realizou, pela
primeira vez, uma Conferência Nacional em Brasília – graças ao apoio
financeiro da filial brasileira da Fundação Rosa Luxemburgo – com a
participação de 150 delegados, que representaram 14 coletivos locais.
Foram adotadas, através de consenso, algumas resoluções e formou-se um
grupo de trabalho, composto por representantes dos coletivos, que
coordenará as iniciativas, respeitando a autonomia e a
“horizontalidade”. (Obtivemos estas informações em duas reuniões com
militantes do MPL em São Paulo, Brasil, em novembro de 2013).
O método de luta do MPL é também de inspiração libertária: a ação
direta nas ruas, geralmente lúdica e ousada, mais do que a “negociação”
ou o “diálogo” com as autoridades. Os militantes não cultuam nem a
violência, nem a não violência; uma de suas ações típicas é bloquear as
ruas, ao som de grupos musicais, colocando fogo em pneus e “catracas”.
Este termo, intraduzível, significa no Brasil um torno metálico
giratório, bem firme, que fica em todos os ônibus, o qual não se pode
atravessar antes de pagar a passagem ao cobrador. O símbolo do MPL é uma
“catraca” em chamas… É bom lembrar que o transporte público, que em
sua origem era um serviço público, foi privatizado em todas as cidades
do país e pertence a empresas capitalistas de práticas mafiosas. As
prefeituras têm, no entanto, controle sobre o preço das passagens.
A inteligência tática do MPL foi colocar como prioridade um
objetivo concreto e imediato: barrar o aumento do preço das passagens
decidido pelas autoridades locais nas principais cidades do país, tanto
as geridas pela centro-direita como pela centro-esquerda (o Partido dos
Trabalhadores, que se tornou social-liberal). Recusando os argumentos
pretensamente “técnicos” e “racionais” das autoridades, o MPL mobilizou
milhares de manifestantes, que foram duramente reprimidos pela
polícia. Estes primeiros milhares de manifestantes se tornaram dezenas
de milhares e logo milhões (com o preço, certamente, de algum
esvaziamento político), e os poderes locais se viram obrigados,
precipitadamente, a cancelar os aumentos. Primeira lição importante: a
luta pode ser ganha, e fazer com que as autoridades responsáveis
retrocedam!
Uma vez que assumiu este combate prático e urgente, o MPL não deixou
em nenhum momento de destacar seu objetivo estratégico: a tarifa zero, o
transporte público gratuito. Para eles é preciso, segundo a Carta de
Princípios, “retirar o transporte público do setor privado colocando-o
sob o controle dos trabalhadores e da população”. É o que os militantes
do MPL chamam “perspectiva classista” de sua luta. É uma exigência de
justiça social elementar: o preço do transporte é proibitivo para as
camadas mais pobres da população, que vivem nas periferias degradadas
das grandes cidades, e dependem do transporte público para trabalhar ou
estudar. É uma reivindicação que interessa diretamente aos jovens, aos
trabalhadores, às mulheres, aos habitantes das favelas, ou seja, a
grande maioria da população urbana.
Mas a tarifa zero também é uma pauta profundamente subversiva e
antissistema, no sentido do que se poderia chamar um método de programa
de transição: como observa a carta de princípios “deve-se construir o
MPL com reivindicações que ultrapassem os limites do capitalismo, vindo a
se somar a movimentos revolucionários que contestam a ordem vigente”. É
um simpático exemplo do que o filósofo marxista Ernst Bloch chamava
utopia concreta. Certamente há cidades no Brasil ou na Europa em que
esta proposta pôde se realizar. Numerosos estudos especializados
demonstram que ela é completamente possível, sem causar déficit às
administradoras locais. Não deixa de fazer sentido que a gratuidade é um
princípio revolucionário, que se contrapõe à lógica capitalista, na
qual tudo deve ser uma mercadoria; é, portanto, um conceito
insuportável, inaceitável e absurdo para a razão mercantil do sistema.
Mais ainda quando, como propõe o MPL, a gratuidade dos transportes é um
precedente que pode abrir caminho à gratuidade de outros serviços
públicos: educação, saúde, etc. De fato, a gratuidade é o presságio de
uma sociedade diferente, baseada em outros valores e outras regras
diferentes das do mercado e da ganância capitalistas. Daí a resistência
desesperada das “autoridades”, tanto conservadoras, como neoliberais,
“reformistas”, de centro ou social-liberais.
Existe ainda outra dimensão da reivindicação pelo transporte
gratuito, que até o momento não foi suficientemente defendida pelo MPL
(mas que começa a se dar conta): o aspecto ecológico. O atual sistema,
totalmente irracional, de desenvolvimento ilimitado do uso do carro
individual, é um desastre pelo ponto de vista da saúde dos habitantes
das grandes cidades – milhares de mortos por causa da poluição do ar
diretamente provocada pelos escapamentos – e pelo ponto de vista
ambiental. Como se sabe, o carro é um dos principais emissores de gás
com efeito estufa, responsável pela catástrofe ecológica das mudanças
climáticas. O carro continua sendo, desde o fordismo até hoje, a
mercadoria de destaque do sistema capitalista mundial; consequentemente,
as cidades estão completamente organizadas em função da circulação de
automóveis. Agora bem, todos os estudos mostram que um sistema de
transporte coletivo eficaz, universal e gratuito, permitiria reduzir
significativamente o uso do transporte individual. O que está em jogo
não é só o preço da passagem de ônibus ou de metrô, mas outro modo de
vida urbana, sensivelmente, outro modo de vida.
Em resumo: a luta pelo transporte público gratuito é, de uma só vez,
um combate pela justiça social, pelos interesses dos jovens e dos
trabalhadores, pelo princípio da gratuidade, pela saúde pública, pela
defesa dos equilíbrios ecológicos. Permite que se formem amplas frentes e
se abram brechas na irracionalidade do sistema mercantil. Não
deveríamos, na França e em toda a Europa, nos inspirar no exemplo do MPL
impulsionando em nossas cidades movimentos amplos, unitários,
autônomos, de luta pela gratuidade dos transportes públicos?