Sábado, 24 de maio de 2014
Do IHU
Instituto Humanitas Unisinos
“O futuro nos leva para o
lixo zero, para a economia circular, para a reutilização total, por
isso, precisamos de profissionais que pensem em mudar o processo de
produção, mudar o conceito do produto e a aplicação dele, ou seja,
remodelar o sistema”, diz o engenheiro civil.
“Apesar da Política Nacional de Resíduos Sólidos - PNRS
ter dado um caráter profissionalizante para o processo de coleta
seletiva dos resíduos — porque nós tínhamos um movimento muito amador —,
nesses quatro anos pouco se fez para a profissionalização das pessoas
que trabalham com o lixo”, adverte Rodrigo Sabatini na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone.
Na avaliação dele, os catadores, determinados pela PNRS como responsáveis pela coleta seletiva do lixo nos munícipios brasileiros, ainda não foram “aparelhados”
com tecnologias. “Eles precisam de instrução, de possibilidades. E
sobre o aspecto humano da questão, digo que ninguém merece botar a mão
no lixo de ninguém. É uma questão de humanidade, de
dignidade. Uma pessoa que se sujeita a coletar lixo para sustentar outra
é uma pessoa muito digna, mas uma sociedade que permite que alguém viva
do seu lixo é uma sociedade indigna”, frisa.
Entre as metas da PNRS, estava a de erradicar os lixões
até agosto deste ano, mas provavelmente ela não será cumprida, porque
apenas “30% das prefeituras já entregaram seus planos”, informa. Segundo
ele, apesar de a PNRS ser uma das legislações ambientais mais modernas do mundo, “o Brasil estava totalmente despreparado para a lei”.
Segundo ele, entre as dificuldades, há a
falta de preparo dos municípios: “85% dos municípios brasileiros têm
menos de 50 mil habitantes, então a infraestrutura é muito pequena. No
caso dos municípios com uma população maior, são muito complexos para
implementar a política em dois anos”.
Na avaliação de Sabatini, com o desenvolvimento da PNRS, a principal meta deve ser a de alcançar índice de lixo zero, a exemplo do que já fazem outras cidades, como São Francisco, na Califórnia,
que “encaminha para o aterro apenas 18% de todo o lixo que produz, quer
dizer, 82% dos resíduos da cidade são tratados, encaminhados e voltam
para a cadeia produtiva”.
Rodrigo Sabatini
é Engenheiro Civil formado pela Universidade Federal de Santa Catarina –
UFSC. Atualmente é conselheiro do Instituto Lixo Zero Brasil e
presidente da Novociclo Ambiental.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como você avalia a
falta de ação dos municípios frente à Política Nacional de Resíduos
Sólidos, já que a maioria dos munícipios não tem Plano de Gestão?
Rodrigo Sabatini – Diversos fatores complicaram o cumprimento da legislação.
Primeiro, a lei foi feita no meio do
mandato dos prefeitos, em 2010. Então, até eles tomarem conhecimento da
lei e das ações que deveriam realizar, o mandato deles já estava perto
do final; como tinham outras prioridades, deixaram o “pepino”
para o próximo. Ou seja, como a lei só passaria a vigorar no ano
seguinte, deixaram sua implementação para o prefeito que assumisse o
próximo mandato. Então, quase todo mundo deixou para depois; só 10% dos
municípios fizeram seus planos municipais na data certa.
Outro problema é que o Brasil estava totalmente despreparado para a lei. A Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos
é a mais moderna do mundo e, talvez, a mais justa também. Ela demorou
19 anos para ser elaborada, mas foi muito bem feita e é bastante moderna
em diversos fatores. Os próprios técnicos da área, engenheiros,
sanitaristas, biólogos e engenheiros de produção, e a própria engenharia
de modo geral, não estavam preparados para a lei. Então, essa também
foi uma dificuldade. Outra dificuldade diz respeito à falta de preparo
dos municípios: 85% dos municípios brasileiros têm menos de 50 mil
habitantes, então a infraestrutura é muito pequena. No caso dos
municípios com uma população maior, são muito complexos para implementar
a política em dois anos. Entretanto, o plano de São Paulo
saiu e é muito bom. Até agora, 30% das prefeituras já entregaram seus
planos, mas em algumas prefeituras pequenas o projeto é muito fraco; o
último que eu vi, inclusive, comparei a um trabalho escolar.
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“Ninguém quer tomar conta do lixo, e esse é um problema sério” |
Rodrigo Sabatini – A lei diz que todo município, todo grande gerador de resíduos, deve ter um Plano de Resíduos Sólidos,
não apenas para ter um plano, mas porque a partir desse plano será
elaborado um sistema integrado de informação no futuro — talvez possa
ser iniciado no próximo ano —, no qual a nação poderá fazer o seu
planejamento. Então, foi pedido aos municípios e aos grandes geradores
um diagnóstico, mas por enquanto não temos como planejar, pois não temos
nem o diagnóstico.
Outra coisa que a lei deveria fazer após
termos o diagnóstico dos municípios é estabelecer metas para chegar a
um nível de 90% de reciclagem, como é feito em outros países. Os países
que avançaram muito na reciclagem têm metas, e muitos deles têm metas de lixo zero.
Na cidade de São Francisco.
EUA, a data é 2020, em outras cidades, os prazos são 2015, 2030, 2040.
Cada cidade estabelece seu diagnóstico e sua meta, e isso é importante
porque orienta a sociedade para aquele fim. Então, a partir do momento
em que se tem uma meta, os jovens, os estudantes, os engenheiros e
outros profissionais passam a ver essa meta como uma oportunidade e
passam a desenvolver uma capacidade técnica para tratar dessa questão.
Por enquanto, a lei visa, prioritariamente, evitar a formação do lixo.
A nova lei estabelece uma hierarquia, os procedimentos e a responsabilidade para evitarmos o envio de materiais para aterros.
As universidades, por enquanto, estão focadas na remediação do
problema, mas precisamos de profissionais para evitar o problema. O
futuro nos leva para o lixo zero, para a economia
circular, para a reutilização total, por isso, precisamos de
profissionais que pensem em mudar o processo de produção, mudar o
conceito do produto e a aplicação dele, ou seja, remodelar o sistema.
IHU On-Line - Em que consiste a proposta do Lixo Zero? Ela é viável?
Rodrigo Sabatini - O lixo zero
é uma meta ética, econômica, eficiente e visionária para guiar as
pessoas a mudarem seus modos de vida e suas práticas de forma a
incentivar os ciclos naturais e sustentáveis, onde todos os materiais
residuais são projetados permitindo seu uso no pós-consumo. Lixo Zero
significa projeto de produto e gerenciamento de processos para evitar e
eliminar sistematicamente o volume e a toxicidade dos resíduos e
materiais, conservar e recuperar todos os recursos e não aterrá-los ou
incinerá-los. Ao implementar o lixo zero, todos os descartes para a
terra, água e ar são evitados, os quais são uma ameaça à saúde do
planeta e dos seres vivos.
O que isso significa? Significa que vai
se estabelecer uma meta e reunir todos os esforços, humanos,
intelectuais, culturais, e o que for necessário para evitar o envio de
materiais para aterros. Não é, portanto, algo mágico, mas trata-se do
exercício de um planejamento, ou seja, é um programa de uma melhoria
contínua. A aplicabilidade dessa proposta é total.
Existem empresas e indústrias que têm lixo zero e cidades que estão chegando muito perto ou vão chegar ao lixo zero em pouco tempo. O maior exemplo de uma cidade grande que tem lixo zero é a cidade de São Francisco, na Califórnia. São Francisco
encaminha para o aterro apenas 18% de todo o lixo que produz, quer
dizer, 82% dos resíduos da cidade são tratados, encaminhados e voltam
para a cadeia produtiva. A meta de São Francisco é de ser lixo zero até
2020. Outro exemplo é a cidade de Capannori, na Itália,
que tem 30 mil habitantes e é uma cidade que começou o programa do lixo
zero há cerca de 10 anos e hoje é o centro de referência da Europa, com
mais de 90% de encaminhamento correto do lixo. Isso fez crescer uma
indústria de reciclagem e reuso em seu entorno. A cidade de Milão tem 2 milhões de habitantes e está implementando o programa lixo zero, de bairro em bairro, e o programa está funcionando muito bem e de forma rápida.
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“O lixo zero é uma meta ética, econômica, eficiente e visionária para guiar as pessoas a mudarem seus modos de vida” |
Lixo,
para mim, é tudo aquilo que é misturado, que é uma meleca. Antes disso,
podem até me descrever lixo como alguma coisa que não vou usar ou algo
assim, mas se ele estiver separado, poderá ser matéria-prima de alguma
coisa, e aí já não é mais lixo, é matéria-prima.
Agora, uma vez que se mistura tudo e se faz uma meleca, aí sim, se tem o lixo.
Ao formar-se, o lixo ganha um caráter de urgência, ou seja, é urgente
que se dê um destino àquele lixo. Enquanto for matéria-prima e estiver
separado, pode ficar guardado durante anos.
Por isso, quando não tratamos o lixo,
estamos criando uma situação de urgência. O caráter de urgência tem um
custo político, econômico e social.
Tudo que é urgente pode ser contratado
sem licitação, tudo que é urgente fica sujeito a um valor, ou seja, tem
um custo elevado. Então, com a proposta do lixo zero, se tira o caráter
de urgência de lixo das matérias-primas, que passam a ser coletadas e encaminhadas separadamente.
A segunda questão é a do custo. Há um movimento enorme na Itália no qual mais de 400 municípios estão indo em direção ao lixo zero.
Ações como essas têm gerado revoluções em um período de no máximo 36
meses e se evidencia uma mudança de 80% de reciclagem. Com isso, o custo
dos municípios tem diminuído.
IHU On-Line – Se planejarmos e
fizermos esse plano de maneira adequada de coleta de resíduos e
separação, isso economiza no orçamento final da cidade, isso gera
receita?
Rodrigo Sabatini –
Ações como essa diminuem o custo do município e podem gerar receita
dependendo da utilização disso. Mas medidas como essa tiram “um peso
político das costas”. Basta imaginar a greve dos garis: eles podem fazer greve a qualquer hora e em três dias o governo tem de resolver a situação.
IHU On-Line - Qual a diferença entre lixões e aterros sanitários?
Rodrigo Sabatini - O lixão é um buraco em que se joga tudo lá. Depois, existem os aterros controlados, nos quais se coloca terra em cima do buraco. Os aterros sanitários
têm uma manta embaixo da terra, onde depois se coloca o resíduo, depois
se coloca terra, e assim vai fazendo um sanduíche que depois será
lacrado. No Brasil estão investindo em aterros sanitários e, a partir de 2 de agosto de 2014, se analisarmos a lei de forma stricto sensu, veremos que será crime ambiental jogar alguma coisa nos lixões.
IHU On-Line - É possível vislumbrar o fim dos lixões num horizonte próximo?
Rodrigo Sabatini – Em Santa Catarina,
onde moro, não tem lixão faz tempo. Hoje existem os aterros sanitários;
é uma questão de planejamento. Mas o problema é que ninguém quer um
aterro como vizinho, ninguém quer o lixo perto de si,
ninguém que tomar conta do lixo, e esse é um problema sério. Mas a
sociedade brasileira, com a PNRS, está pronta para se responsabilizar
pelo lixo.
IHU On-Line - Neste contexto, como você avalia a situação dos municípios de Santa Catarina?
Rodrigo Sabatini – Santa Catarina
é um caso à parte, pois não tem lixões faz tempo. O estado já se
adequou à parte mais séria da lei, e agora está fazendo os planos.
IHU On-Line - Pensando para além
do consumidor, qual o papel da indústria na produção de resíduos? É
possível minimizar esta produção sem diminuir a produtividade?
Rodrigo Sabatini – A indústria é o mais fácil de todos, porque toda indústria séria, competente, está mais próxima do lixo zero. A indústria já é um lugar que tem programa de qualidade total, adoção de ISOs — ISO 14000, ISO 21000
—, programas de produção limpa, que já deixam as indústrias muito
próximas do lixo zero, e é o setor que mais está em direção do lixo zero nesse momento. Diversas indústrias, antes do final do próximo ano, serão lixo zero. O lixo zero
nada mais é do que aplicar a lógica industrial, ou seja, nunca
misturar, organizar sempre, manter limpo, manter tudo organizado, tudo
em dia como em uma indústria.
IHU On-Line - Qual a sua visão sobre a inclusão dos antigos catadores como coletores de resíduos sólidos? Essa é a melhor forma de empoderar estes grupos sociais?
Rodrigo Sabatini – A
política nacional deu uma oportunidade para as pessoas que viviam do
lixo, e elas podem contribuir de alguma forma em alguns lugares. Apesar
da Política Nacional de Resíduos Sólidos - PNRS
ter dado um caráter profissionalizante para o processo de coleta
seletiva dos resíduos — porque nós tínhamos um movimento muito amador —,
nesses quatro anos pouco se fez para a profissionalização das pessoas
que trabalham com o lixo. Não se trata de uma questão de empoderá-los,
mas de aparelhar as redes de informações e tecnologias; eles precisam de
instrução, de possibilidades. E sobre o aspecto humano da questão, digo
que ninguém merece botar a mão no lixo de ninguém. É uma questão de
humanidade, de dignidade. Uma pessoa que se sujeita a coletar lixo para
sustentar outra é uma pessoa muito digna, mas uma sociedade que permite
que alguém viva do seu lixo é uma sociedade indigna.
(Por Andriolli Costa e Patricia Fachin)