Sexta, 21 de julho de
2017
*Aldemario
Araujo Castro

CAPÍTULO
II. O deputado Newton Cardoso Junior (PMDB-MG), como relator da comissão mista
responsável pela análise da MP n. 766, transformou o “quase-REFIS” num
“super-REFIS” (ou “REFIS DA SONEGAÇÃO”). O parecer do relator, aprovado na
comissão, admitiu que dívidas poderiam ser liquidadas com redução de 90% do
valor das multas e de 99% do valor dos juros e honorários. O parcelamento foi
ampliado para o limite de 240 (duzentos e quarenta) meses.
CAPÍTULO
III. A MP n. 766 não foi aprovada pelo Congresso Nacional. Assim, o diploma
legal em questão perdeu a eficácia no dia primeiro de junho do corrente ano.
Aparentemente, o fantasma do “REFIS DA SONEGAÇÃO” (alternativa ao texto
original do PRT) teria morrido junto com a aludida Medida Provisória. Mas foi
só uma fugaz impressão ...
CAPÍTULO IV. O Palácio do Planalto e o
Ministério da Fazenda trataram de ressuscitar o monstro. Negociações “estranhas”
com o grupo de parlamentares que concebeu o “REFIS DA SONEGAÇÃO” fizeram nascer
aMedida Provisória n. 783, editada no dia 31 de maio. Foi instituído, comessa
nova MP, o Programa Especial de Regularização Tributária - PERT.Trata-se da
volta do “REFIS DA SONEGAÇÃO” com ajustes em relação aoproposto no âmbito do
Congresso Nacional. Entre os benefícios consagrados devem ser destacadas as
hipóteses de reduções de juros demora. Existem casos com diminuições de
noventa, oitenta e cinquenta porcento dessa parcela de acréscimo ao valor
original da dívida.
CAPÍTULO
V. No dia 14 de julho, deputados e senadores romperam o acordo com o governo e aprovaram, em comissão mista que analisa a MP n. 783, o
relatório com condições mais favoráveis para
empresas devedoras. Segundo a imprensa,
entre outros pontos: a) “o texto também ajuda igrejas, times de futebol, produtores de álcool, dentre outros
grupos, com benefícios que nada têm a ver com o programa de refinanciamento de
dívidas tributárias” e b) “na versão
atual do relator, o deputado Newton Cardoso Júnior (PMDB-MG), há previsão de descontos de até 99% de multa e juros
caso o devedor opte por uma parcela de 20% à
vista calculada sobre o valor integral
(sem descontos). Antes, previa-se uma parcela maior (25%) à vista para descontos de até 90% de juros e multas”.
A
imprensa, nos últimos dias, divulgou dois dados estarrecedores acerca do “REFIS DA SONEGAÇÃO”. São eles: a) o relator da medida, deputado
Newton Cardoso Júnior, é sócio de empresas que
devem cerca de 51 milhões de reais ao
Tesouro Nacional (https://goo.gl/g2kzyo) e b)
deputados e senadores que devem quase 533 milhões de reais à União
(como pessoas físicas ou em relação às
empresas em que figuram como diretores ou sócios)
votarão o generoso programa de perdão de dívidas (https://goo.gl/4bdv6j).
Hoje, os
juros moratórios incidentes nos créditos tributários federais são representados pela taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC. Uma série de
dispositivos legais veiculam essa
definição (art. 13 da Lei 9.065/95; art. 84 da Lei 8.981/95; art. 39, §4º, da Lei 9.250/95; art. 61, §3º, da Lei
9.430/96 e art. 30 da Lei 10.522/2002).
Nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça - STJ, a SELIC não pode ser cumulada com
correção monetária. Com efeito, a
atualização monetária já está contemplada na formação da taxa SELIC (EREsp n. 727.842, EDcl no REsp n. 1.025.298,
entre outros julgados). Nesse sentido, é patente a inconstitucionalidade das
reduções de juros nos patamares
apresentados pelo governo e agravados pelo relator da comissão mista do Congresso Nacional. Essas
exonerações, quase totais, de juros
moratórios atentam inapelavelmente contra a isonomia, a moralidade e a razoabilidade, todos princípios
constitucionais de observância
obrigatória pelo legislador. Afinal, o devedor integrado ao PERT da MP n. 783, na versão governamental ou na
versão mais escandalosa da comissão
mista, pagará um valor menor do que o contribuinte que recolheu em dia, no prazo original previsto em lei, os
créditos devidos ao Poder Público
Federal.
Esse não
é o primeiro, e provavelmente não será o último, conjunto de episódios reprováveis na lamentável novela dos programas especiais de
parcelamento ou regularização tributária. Como
pode ser facilmente observado, eles se
sucedem, ano após ano, crise após crise, com vantagens cada vez maiores e mais abusivas. Essa triste constatação não
deve alimentar a ideia de simples supressão
desses expedientes. Afinal, eles podem,
num quadro de razoabilidade, concorrer para a manutenção de empresas (e seus postos de trabalho) que enfrentam
dificuldades momentâneas ou
circunstanciais. Assim, seria preciso formatar esses mecanismos a partir critérios bem rigorosos. Duas
ordens de definições, entre outras, devem
ser cogitadas: a) os benefícios para adesão ao programa não podem colocar o devedor em condição mais favorável do que
aquela experimentada pelo contribuinte que pagou
regularmente (até o vencimento normal) as
suas obrigações tributárias e não tributárias e b) a fixação de importantes contrapartidas, ao menos nas
áreas trabalhista, ambiental e social.
É
fundamental destacar que existe uma consequência profundamente danosa na adoção de programas de regularização fiscal sem as mínimas cautelas
de razoabilidade, moralidade e igualdade.
Consideráveis esforços efetivados pelos
servidores da Administração Tributária, tanto no campo da fiscalização, quanto na atividade de recuperação
judicial dos valores não honrados, são
interrompidos, dificultados e até mesmo desacreditados ou desautorizados.
Os
programas de regularização tributária reclamam disciplina, na linha antes referida, no âmbito de uma profunda e abrangente Reforma Tributária. Esse movimento de redesenho da tributação
no Brasil deve contemplar as seguintes
diretrizes: a) diminuição significativa da pressão
fiscal sobre o consumo e o trabalho; b) incremento da oneração tributária sobre o capital, o patrimônio e as
operações financeiras, incluída a
instituição inteligente do imposto sobre grandes fortunas; c) programa consistente de combate à sonegação (no patamar
atual de meio trilhão de reais por ano);
d) fortalecimento da Administração Tributária,
inclusive com a implementação ou aperfeiçoamento de programas voltados para a recuperação, em níveis
adequados, dos créditos inscritos; e)
revisão cuidadosa de renúncias fiscais e mecanismos sofisticados de redução seletiva da carga tributária
(privilégios concedidos para vários
segmentos socioeconômicos) e f) aprofundamento da simplificação e racionalização do sistema,
especialmente para pessoas naturais e
empresas de pequeno e médio portes.
Sintomaticamente,
o debate acerca da tributação brasileira, assim como outros aspectos estruturais da vida nacional (administração da dívida
pública, operações compromissadas, tamanho da
base monetária, câmbio, formação de
reservas, entre outros), não recebem a merecida atenção, notadamente pelos gigantes da comunicação. Parece,
portanto, que os problemas nacionais de
maior envergadura estão circunscritos aos aspectos
fiscais das despesas com a previdência social, remunerações de servidores públicos e esquemas de corrupção. A
perversa consequência da narrativa
destacada, cuidadosamente construída e divulgada, é a falsa percepção de que a superação dos problemas nacionais
passam necessariamente (e quase que
exclusivamente): a) por reformas voltadas para
restringir direitos sociais e b) pelo combate policial e judicial aos esquemas de malversação do patrimônio público.
corre
que não serão “salvadores da Pátria”, “líderes esclarecidos” ou reformas desarticuladoras do sistema de proteção social inscrito na
Constituição de 1988 que colocarão o “Brasil nos
trilhos”, como insistem os suspeitos
governantes do momento e os igualmente suspeitos veículos de comunicação da grande mídia. É a força da
mobilização e conscientização populares
que mudará, com profundidade, a dantesca realidade
brasileira. As transformações de fundo, com nítido caráter democrático e popular, dependem de uma cidadania com
atuação enérgica e decisiva nos mais
variados espaços sociais. Existe um dado conjuntural com enorme potencial de
fazer vingar o “REFIS DA SONEGAÇÃO”, com
todas as suas mazelas. O governo de plantão e boa parte de suas forças de sustentação parlamentar
“respiram” procedimentos escusos e
práticas fisiológicas. Esses setores cumprem uma agenda, veiculada pelas classes dirigentes, voltada para o
desmonte da rede de proteção social
desenhada pelo constituinte de 1988. Os ataques aos direitos sociais são poderosos, constantes e bem
articulados. Nesse projeto estão
inseridos, entre outros: a) o teto seletivo para gastos sociais; b) a reforma trabalhista; c) a terceirização
e d) a reforma da previdência. Tudo
aponta, portanto, para a existência de um contexto favorável a atuação mais despudorada possível dos
interesses e pretensões mais descabidos e
mesquinhos. Devedores e sonegadores de todo gênero viram na MP n. 766, e agora na MP n. 783, uma oportunidade
singular de efetivar privilégios e benesses
inimagináveis para quem trabalha com
padrões mínimos de moralidade e decência.
*Aldemario Araujo Castro é Advogado, Mestre em Direito, Procurador da Fazenda Nacional e Professor da Universidade Católica de Brasília
Brasília, 21 de julho de 2017