Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 2 de maio de 2020

A Enfermagem brasileira merece respeito.

Sábado, 2 de maio de 2020
Por
Professora Fátima Sousa*


Há séculos profissionais da enfermagem estão cara a cara com a dor, a doença, a morte, mas também com a alegria da recuperação e cura, bem como atuam em defesa de vidas saudáveis. Mas até o dia 30 de abril, às vésperas do Dia do Trabalho, não tínhamos registro público de que alguém tenha cuspido em nossa face por motivo fútil, reflexo da alienação e grosseria descabidas.
A enfermagem nunca negou sua presença ao Brasil, nem ao mundo, nos tantos momentos da humanidade em que as mais diversas doenças se espalharam pelo planeta. Em guerra e em outras pandemias, lá estávamos nós, colocando nossas forças de trabalho em risco, para salvar milhares, milhões de vidas anônimas.
Estávamos lá, na Primeira e Segunda guerras, entre vidas e mortes, cuidando indiscriminadamente do amigo ou do inimigo, se necessário fosse. Lá estávamos, ombro a ombro, com nossas irmãs da Eurásia, sobretudo no Norte da África, no combate à pandemia da PESTE BUBÔNICA, no século 14 (entre 1343 e 1353), enfrentando a bactéria Yersinia pestis, convivendo no meio de pulgas e roedores infectados, sem medo do que viria em seguida: a PESTE NEGRA. Doença que reduziu do mapa mundi quase 200 milhões pessoas.
Lá estávamos, quando a VARÍOLA, por mais de 3 mil anos, deixava em pânico a humanidade. Mas vejamos, quem estava na linha de frente ajudando a erradicar a varíola e organizando a campanha de massa? Éramos nós, o corpo de enfermagem, de auxiliares e técnicos(as).
Nos tempos de CÓLERA, lá estávamos, desde 1817 a 1824, até o século passado, com aparições de novos ciclos, de vez em vez, em todos os continentes. Nos anos 90, já em companhia dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), não faltamos ao nosso país no Alto Solimões (AM), muito menos em São Bento, no alto sertão da Paraíba. Nunca tivemos medo de mais uma enfermidade.
De 1917 a 1918, também estávamos lá, evitando que a pandemia da Gripe Espanhola, causada por um vírus influenza mortal, tirasse do planeta tantas vidas. Não tínhamos tempo para “palmas”, pois nossos corações choravam as mortes de 50 milhões de pessoas. Sofríamos quando mais de um quarto da população mundial se via infectada.
Agora, a história se repete como tragédia. Mas que ironia! Os sintomas da doença eram muito parecidos com o atual Sars-CoV-2. A semelhança não parece coincidência que à época, o vírus da Gripe Espanhola também tenha vindo da Europa, a bordo do navio Demerara. O transatlântico desembarcou passageiros infectados no Recife, em Salvador e no Rio de Janeiro, matando até o então presidente do Brasil, Rodrigues Alves (1919) e junto com ele, 35 mil pessoas.
No surto do TIFO, que matou mais de 3 milhões de pessoas entre 1918 e 1922, após a Primeira Guerra, num ambiente de miséria e extrema pobreza, lá estava a Enfermagem, sobretudo na Rússia, salvando vidas.
Não custa lembrar que o Covid-19, desta feita, veio em alta velocidade, desta vez pelos céus. Matando a todos, sobretudo aqueles que a vida lhe impõe a enfrentá-lo. Falo da grande maioria do nosso povo que são os(as) desempregados(as), subempregados(as), balconistas de farmácia e supermercados, caminhoneiros, empregadas domésticas, trabalhadores(as) delivery, moradores(as) dos grandes aglomerados urbanos e tantos outros que não podem ficar “em casa”.
Mata principalmente quem está no dia a dia, pelejando para colocar as ações e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) de pé, e não consegue pela omissão e maus tratos com os bens públicos e o seu maior patrimônio: as(os) trabalhadoras(es) da saúde. Sempre teremos alguém da enfermagem atuando pela igualdade e justiça no acesso da população ao seu direito garantido à saúde.
Sempre estivemos aqui e em todos os recantos do mundo, nunca nos apequenamos, sequer diante do “Mal do Século”, o surto de TUBERCULOSE (1850 a 1950). Até hoje ainda seguimos cuidando de pessoas com o bacilo de Koch. Desde sempre, ajudamos a controlar essa doença, cuidando de todos, sem olhar a quem, principalmente em regiões mais pobres do planeta. Sem esquecer dos cuidados com as pessoas que hoje vivem com HIV/Aids. Quando identificada, ainda nos anos 80, por não ter alguém da família para acalentá-las por muitas ocasiões, nós fazíamos as vezes dos familiares que abandonavam os seus. Estávamos lá tentando evitar a morte de mais de 20 milhões de pessoas, provocadas pelas complicações do vírus.
Estávamos lá, nas Unidades Básicas de Saúde, no SAMU, nas UPAs, nos hospitais, nas visitas domiciliares, nas comunidades, ao lado da nossa gente, prevenindo a Gripe Suína (H1N1), já no século 21, e que matou 16 mil pessoas ao redor do mundo.
A Enfermagem sempre esteve no lugar certo, no dia exato. Às vésperas do 1º de maio, dedicado ao trabalho, queríamos apenas dizer ao Brasil e ao mundo que necessitamos não apenas de palmas, mas sim de melhores condições de trabalho pois também estamos morrendo frente a uma das mais severas crises sanitárias do globo. Alertávamos à população, à mídia e, em especial aos poderes e ao chefe da Nação: é preciso parar com o deboche e de minimizar as dores e sofrimentos de pessoas que, sequer, puderam dizer um último adeus a seus familiares que partiram.
Mas lá estava a Enfermagem, em livre manifestação, garantida pelo Artigo 5°, XVI da Constituição Federal de 1988[i], para avisar: AGORA, MAIS QUE NUNCA precisamos defender a vida e o SUS. Esse, tão dilapidado pelos representantes do sistema capitalista, que teimam em não o reconhecer e tomar consciência de que sem ele, a crise estaria ainda mais grave.
Afinal, é o SUS e seus trabalhadores(as), que seguem cuidando, ao mesmo tempo, de outras doenças endêmicas-epidêmicas que teimam em manchar o mapa do Brasil. Só para citar algumas, temos a Malária; Leishmaniose; Esquistossomose; Febre Amarela; Tracoma; Doença de Chagas; Hanseníase, Tuberculose; Cólera e Gripe A. E não nos esqueçamos da denguezika e chikungunya, que também matam e circulam entre nós.
É disso que fomos em praça pública bradar “em silêncio”. Demonstrar nossa preocupação quanto à realidade vivenciada hoje no Distrito Federal e no Brasil. Cruzes em mãos, portando máscaras e jalecos, simbolizávamos aquelas e aqueles que já se foram, pois suas vozes não ecoam mais. Nossos corpos estavam ali, presentes, visíveis, e ao lado da população que peregrina de serviço em serviço em busca de cuidado, em busca do direito mais precioso do ser humano: o direito à saúde e à vida.
Nossa mensagem foi clara: os profissionais de saúde vêm fazendo o melhor em meio ao caos, apesar de carecerem de boas condições de trabalho e do grande déficit de pessoal, fator que também leva à sobrecarga dos(as) servidores(as), o comprometimento da saúde mental e perdas evitáveis de suas vidas.
Por tudo isso, a manifestação legítima levou à sociedade e, principalmente, aos governantes, um pedido de socorro à gestão do Distrito Federal e do Brasil, para que nos ajude a ajudar a quem mais precisa, inclusive aqueles(as) que, por desconhecerem os fatos, pregam a discórdia, as ofensas descabidas, os insultos e injúrias na praça dos “plenos poderes”.
A Enfermagem nunca se afastará do seu compromisso com os valores da vida democrática. Cuspe na cara são apenas salivas do ódio, das bactérias, bacilos, vermes, vírus das doenças do fascismo, do atraso, do ultraconservadorismo e da ignorância atrevida. Contra esses, sangraremos até a última gota de sangue que corre em nossas veias. Temos mais a fazer, a exemplo de cuidar dos familiares destes que nos cospem. Viva os Jorges, as Karines, Suderlans, os(as) anônimos(as) e os(as) que virão. Viva a Enfermagem brasileira!

[i] Artigo 5, XVI, Liberdade de Reunião - “Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente” (Brasil, Constituição Federal, 1988). 

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*Professora Fátima Sousa
Paraibana, 40 anos dedicados a saúde e a gestão pública; 
Professora e pesquisadora da Universidade de Brasília;
Enfermeira Sanitarista, Doutora em Ciências da Saúde, Mestre em Ciências Sociais; 
Doutora Honoris Causa;
Implantou o ‘Saúde da Família’ no Brasil, depois do sucesso na Paraíba e em São Paulo capital; 
Implantou os Agentes Comunitários de Saúde;
Dirigiu a Faculdade de Saúde da UnB: 5 cursos avaliados com nota máxima;
Lutou pela criação do SUS na constituinte de 1988;
Premiada pela Organização Panamericana de Saúde, pelo Ministério da Saúde e pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde.