A universidade como alvo global
Desmonte, perseguição ou ambos. Nos EUA, Europa e América Latina, ela está ameaçado. A precarização do trabalho torna o diploma inútil. E o sistema vê a instituição como perigosa, por sua capacidade de dialogar com rebeldias
Este artigo integra o volume 38 do Caderno CRH, parceiro editorial de Outras Palavras, organizado e editado pelo Centro de Estudos e Pesquisas e Humanidades (CRH/UFBA), em coedição com a Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA). Leia mais.
A universidade pública é uma instituição que se tornou, nos últimos anos, espaço de intervenções violentas de toda ordem. Desde acusações de islamo-gauchismo em países como a França até intervenções brutais contra estudantes e professores em solidariedade com a causa palestina, principalmente nos Estados Unidos da América (EUA) e na Alemanha, o que vemos é a universidade pública como espaço de tensionamento social. No entanto, a lista é muito mais extensa. Em governos de extrema-direita, como o que vimos no Brasil e que vemos atualmente na Argentina, na Turquia, na Hungria e em Israel, forças estatais operam toda forma de desmonte de financiamento e de estigmatização social contra a universidade pública, isso quando não se trata de criminalização direta contra professores e estudantes.
A sensibilidade aguda que a extrema-direita tem em relação as universidades, centros de pesquisas e formação mostra, a contrapelo, como a tese da obsolescência da universidade era simplesmente falsa (Salles, 2020). Pois a extrema-direita não se engana a respeito da articulação profunda entre universidade, movimentos sociais e opinião pública. Por mais que a universidade pública tenha suas contradições e seus núcleos reacionários, ela é ainda a instituição sociais mais aberta e porosa a articulações com movimentos sociais que conhecemos (Safatle, 2019). Mesmo produções intelectuais aparentemente distantes da esfera política cotidiana, como Jacques Derrida e sua desconstrução, tornaram-se anátemas da extrema-direita porque elas provaram ser capazes de mobiliar a imaginação social em questões sensíveis para a reprodução da ordem social, como a sexualidade, o território, a origem, entre tantas outras.
O caso da mobilização universitária contra o genocídio palestino é outro exemplo que nos deve fazer pensar. Durante anos, a universidade conheceu toda forma de discurso pós-colonial, decolonial e contracolonial. Na maioria dos casos, esses discursos pareciam mais adaptados a comitês de diversidade de grandes empresas, a políticas estatais de colonial washing do que interessados em ressoar questões presentes em lutas anticoloniais efetivas, como as que vimos no Vietnã, na África e na América Latina. Ho chi min, Thomas Sankara ou mesmo Subcomandante Marcos não eram exatamente as figuras mais presentes nas preocupações de nossos intelectuais decoloniais. Há de se perguntar a razão para tanto.
Mas eis que explode um verdadeiro genocídio colonial diante de nossos olhos, com os elementos clássicos de apagamento do luto, de dessensibilização, desumanização, indistinção entre civis e combatentes e destruição generalizada. O silêncio da grande maioria dos intelectuais ditos pós-coloniais contrasta com a compreensão lúcida e irredutível de massas de estudantes indignados, os únicos que realmente entenderam as verdadeiras consequências do que estavam a ouvir nos bancos universitários. Eles perceberam rapidamente que o genocídio palestino era a expressão clara de como as sociedades capitalistas continuavam coloniais, como elas procuravam agora impor novas formas de gestão sociais a partir da constituição de laboratórios globais de dessensibilização social que poderiam simplesmente ser exportados (Safatle, 2024). Contra a consolidação de tal consciência, a reação das administrações universitárias e do Estado foi imediata pois se tratava de impedir que as alianças reais entre intelectuais e setores vulneráveis das populações mundiais fossem constituídas. Pois tais alianças retiram dos gestores de símbolos integrados ao mercado crítico mundial o monopólio da decisão sobre o que merece nossa indignação e revolta. É para impedir processos dessa natureza que a universidade, ou o que restou dela, tornou-se um alvo global.
Essa sua condição de alvo global já vem daquilo que poderíamos chamar de enquadre neoliberal da universidade pública nos últimos trinta anos. Isso significa não apenas fazer a universidade depender sua existência de forças econômicas, mas também agir como uma empresa. Ou seja, ela deverá não apenas ser atrativa para investidores, captar verbas, mas funcionar como uma empresa, abrindo filiais, avaliando seus professores como avaliamos CEOs, avaliando produção acadêmica como avaliamos produtos no mercado, competindo internacionalmente como se fôssemos empresas competindo pelo mercado acadêmico mundial.
Há maneiras de governos autoritários calarem universidades. Conhecemos tensões dessa natureza no Brasil. Vimos durante o governo de Jair Bolsonaro aulas sendo invadidas por membros de extrema-direita, estrangulamento financeiro de universidades, ameaças a professores que desempenham funções públicas, entre tantas outras coisas. Mas há maneiras de governos ditos democráticos controlarem a universidade. Basta reconstruí-la a partir do modelo de uma empresa e tratar conhecimento como se fosse produto cujo valor é medido por meio de seu “impacto”.
Permanecer com o problema
Diria que essa luta contra a universidade pública vinda do Estado e dos mercados nas últimas décadas, uma luta sem trégua, tem uma razão objetiva de ser vinculada ao fato da universidade não ter mais lugar no interior do processo de reprodução material da vida. Em uma dinâmica de produção de empregos na qual os estratos médios são constantemente eliminados a partir de processos de reengenharia contínua, na qual os empregos de nível salarial mais baixos são, ao mesmo tempo, precarizados e elevados em seus padrões de exigência de formação e na qual os estratos mais elevados são oligarquicamente garantidos (ou seja, eles são alcançados independente da formação dos seus ocupantes), é uma das maiores mistificações de nossa época insistir no binômio formação/empregabilidade. Para além de um conjunto de empregos de condições e salários cada vez mais deteriorados, a universidade não pode garantir ascensão social ou simplesmente sobrevivência econômica. Os processos de formação necessários para operar no interior de nosso sistema econômico são, em larga medida, limitados, pontuais e de rápida absorção (Rifkin, 2004; Graeber, 2022). Ou seja, eles poderiam ser feitos sem universidades, de forma menos onerosa, pelos centros de formação. Os setores fundamentais da economia mundial e os atores reais da economia nacional sabem que podem sobreviver sem universidades. Eles podem sobreviver com uma educação disciplinar, unidimensional e vinculada apenas à expectativa de valorização simbólica fornecida pela educação superior. Ou seja, a universidade não é mais necessária para a reprodução da ordem econômica vigente.
A pequena camada responsável pela organização estratégica da economia e da gestão social pode ser formada em centros de excelência construídos para poucos em países centrais, coisa que a elite brasileira tem feito sistematicamente ao mandar seus filhos diretamente para estudar fora do país. Mesmo o desenvolvimento de pesquisas capazes de projetar cenários e permitir circular múltiplas perspectivas de interpretação em conflito perde o sentido em um modelo de inserção capitalista no qual as elites locais perderam suas ilusões de se constituírem como burguesias nacionais e aceitam melhor serem representantes de modelos de integração global cujos processos decisórios se dão muito longe daqui. Quando a extrema-direita ridiculariza a produção em massa de diplomas, de certa forma ela tem razão. O sistema econômico atual funciona sem eles.
Nesse horizonte, a universidade parece perder seu lugar. No entanto, talvez seja o caso de acrescentar mais uma variável a tal quadro. Uma variável muitas vezes negligenciada e que é, no entanto, absolutamente central. Pois a perda de lugar da universidade ocorreu, principalmente, porque saiu de cena a crença na necessidade de modelos de gestão baseados na conciliação e integração de setores da população potencialmente desestabilizadores, como os trabalhadores pobres (geridos pelos sindicatos em relações solidamente estratégicas com o Estado), pequenos camponeses e a classe intelectual (alocada em universidades garantidas pelo Estado). O que nos leva à seguinte equação: a universidade perdeu seu lugar porque as sociedades ocidentais não operam mais no interior de processos de mediação de conflitos sociais. A universidade dizia respeito a um operador singular de mediação e controle de conflito social. Mas em um horizonte social no qual tal mediação dá lugar a uma aceleração das crises sem expectativa de coesão social, não há porquê preservar universidades.
Sabemos que a história da universidade como instituição é uma história recente. Até o começo do século XIX seu lugar era, em larga medida, o de um mero centro de formação. Os principais pensadores e cientistas não eram professores universitários, não tinham cátedras. O debate intelectual e artístico ocorre, em larga medida, fora de seus muros. O modelo de Wilheim von Humboldt (representado pela fundação da Universidade de Berlim, em 1809) pode se impor nas sociedades ocidentais não apenas por prometer realizar expectativas de emancipação através de uma formação de cunho humanista, mas principalmente por saber se colocar como peça fundamental de constituição da adesão social e desenvolvimento técnico do recente Estado-nação. A universidade ocidental, cujo modelo foi criado por Alexandre von Humboldt no começo do século XIX, tinha uma função clara de formação de elites e, principalmente, de integração da classe intelectual à condição de funcionário público. Tratava-se de uma estratégia típica da lógica da Restauração, que visava eliminar os riscos de deriva revolucionária da classe intelectual, como se viu na Revolução Francesa. Não por outra razão, uma impressionante quantidade de intelectuais radicais verá as portas lhe serem fechadas no interior da universidade alemã do século XIX: Feuerbach, Bruno Bauer, Marx. Pois a integração terá sempre que lidar com certos limites que só poderão ser incorporado tempos depois, através de caminhos tortuosos. Ou seja, gostaria de insistir nesse ponto, nosso modelo universitário é fruto de uma reação. Ele foi a maneira que o Estado encontrou para paralisar a força revolucionária da aliança entre classe intelectual e camadas populares. Já Edmund Burke (2017) reclamava de como as ideias abstratas dos filósofos haviam chegado às massas e criado toda forma de violência política.
Se voltarmos à história da universidade em países colonizados, veremos mais claramente a natureza do processo silenciador que a constitui. Por exemplo, a primeira universidade da América Latina (San Marco, Peru) data do século XVI. Ela se instaura no meio de uma guerra colonial contra um povo com largo conhecimento tecnológico e complexa cosmovisão, a saber, os Incas. Uma das funções da universidade foi impor um silenciamento cultural e epistêmico que irá perdurar, de certa forma, até hoje.
No entanto, seria incorreto reduzir a universidade a esse horizonte de silenciamento e de cooptação. Sua cooptação será instável, ainda mais quando se tornar universidade de massa, integrando uma classe trabalhadora que tinha sua própria experiência de lutas sociais e formação. A integração de novas classes sociais à universidade é também abertura de circulação de experiências e saberes. Lembremos, por exemplo, como em 1900 o número de estudantes nas universidades francesas era de 29.000. Em 1950, será de 137.000, em 1968, 587.000 e 2.300.000 em 2001 [1]. Este reposicionamento da universidade no interior da vida política e social dava a ela uma nova importância. Pois um corpo discente de classes diversificadas traz novas questões, novas tradições de pensamento, novos problemas.
Depois de maio
Essa tensão mostrou-se particularmente dramática a partir de 1968. Há uma exacerbação da tensão universidade/estado a partir de maio de 1968 e, de certa forma, muito de nossa situação pode ser lida a partir deste pano de fundo. Pela primeira vez, de forma clara, as universidades se colocam como espaço de produção de revoltas contra os modos hegemônicos de reprodução material da vida.
Ressalta-se como, durante certo tempo, o modelo do Estado do bem-estar social, gerado a partir do final da Segunda Guerra, com seu capitalismo de Estado, fora visto como uma espécie de modelo perfeito de gestão de conflitos sociais. Friedrich Pollock (1983), em um ensaio clássico, insistia na tese da passagem inexorável de um capitalismo privado para um capitalismo de alta regulação estatal, fosse ele totalitário (nazifascismo) ou democrático (socialdemocracia). Capitalismo no qual as decisões econômicas estariam submetidas à orientação política das deliberações de gestão e limitação da força de transformação dos conflitos de classe. Pollock chega a falar em uma substituição de problemas econômicos por problemas administrativos, criando um horizonte racional de gestão de conflitos sociais graças as promessas de integração da classe trabalhadora devido à consolidação de uma lógica da providência e da assistência social generalizada, que teria a capacidade de limitar os processos de espoliação econômica. Nesse horizonte, a função das universidades era garantir a ascensão social e fornecer um espaço regulado de liberdade de pensamento.
Nesse sentido, maio de 1968 demonstrará a fragilidade dessa crença da possibilidade de regulação de conflitos no interior de um capitalismo de Estado. Pois ele mostrou como as formas de regulação da classe trabalhadora não foram capazes de impedir a consolidação de revoltas nos países centrais do capitalismo global. Revolta esta que visava o caráter disciplinar deste mesmo Estado-providência, outrora visto como o modelo perfeito de gestão social. Ou seja, as revoltas de maio de 68 e a força de sedição de seus conflitos mostraram os limites das promessas de integração dessa forma de capitalismo e de suas estratégias de providência. Os próximos modelos de gestão nas sociedades capitalistas, se quisessem ter eficácia real, deveriam operar de outra forma. Estava evidente a impotência do discurso de integração através da identificação com a figura do cidadão do Estado-nação comum. Seria necessário deslocar os processos de regulação social para uma outra cena.
A demissão dos intelectuais
Para tanto, seria necessário paulatinamente neutralizar a universidade e sua classe de intelectuais, quebrar sua força de mobilização social e empurrá-los à obsolescência. Muito haveria a se dizer a respeito de tais processos que ocorreram principalmente a partir dos anos oitenta. Eles responderam a múltiplos ritmos e a dinâmicas específicas em vários países. Um país que tinha uma presença forte da classe intelectual na vida nacional, como o Brasil, não poderia seguir os mesmos processos que países de configuração social distinta. Esta análise, no entanto, ainda está por ser feita.
Contudo, seria o caso de insistir aqui, e isso vale como uma crítica que é também uma autocrítica, que os processos não poderiam ocorrer sem a demissão da classe intelectual de sua função histórica de responsável pelo tensionamento de processos políticos. A classe intelectual contemporânea tende a esconder sua demissão política por meio da pretensa crítica a desejos de dirigismo e a crítica a uma política baseada na crença da força indutora de vanguardas letradas. Todos nós conhecemos as críticas feitas pelos próprios intelectuais a seu pretenso papel dirigista. Não há, porém, processo político sem um ato de nomeação do acontecimento – ato que exige a mobilização da capacidade da classe intelectual de criar ressonâncias espacio-temporais e, assim, redimensionar dinâmicas sociais. Uma nomeação não é simplesmente uma descrição, ainda mais quando estamos a falar de processos políticos populares. Ela é um ato performativo que redimensiona a capacidade de transformação dos agentes.
A demissão política dos intelectuais foi o resultado da convergência de três fatores. Primeiro, vivemos em um movimento global de bloqueio das relações entre universidade e sociedade civil. Isso se deve a uma forma de gestão social que promete aos intelectuais a ascensão ao posto de consumidores de serviços globais, graças à internacionalização das universidades e à submissão delas a processos de avaliação cujos métodos são tão opacos quanto dignos do Pai Ubu. Todos nós sabemos bem como os processos de avaliação são indefensáveis não porque não devamos ser avaliados, mas porque eles não medem nada de maneira precisa. Como esperar avaliação racional se submetemos aos mesmos critérios universidades de massa, com mais de 100.000 alunos, e universidades de formação de elite, com não mais do que 10.000 alunos? O que significa realmente medir impacto por meio de incidências de citações? O que dizer de sistemas de avaliação de publicações que não levam em conta livros? Como medir a influência de uma universidade no interior da vida nacional? Ou qual o sentido em esperar níveis de circulação de estudantes estrangeiros da ordem de 25% em países que ainda precisam encontrar formas de integrar largas camadas de sua população ao sistema educacional superior?
No entanto, a submissão a tais sistemas opacos de avaliação levou as universidades a se transformarem, no melhor dos casos, em guetos de luxo: um misto de agências de viagens para colóquios internacionais e consumo de produtos culturais globais com espaço para a produção especializada de um saber cujos resultados, muitas vezes, não são sequer publicados na língua local de seus países, já que a transformação do inglês em língua franca implica retornar a uma situação medieval na qual a classe intelectual não pode mais ser lida pela população nacional da qual ela faz parte, um pouco como na Idade Média e seus pensadores que escreviam em latim. Com isso, os intelectuais foram, cada vez mais, perdendo relevância como referências para a reflexão da sociedade sobre si mesma. Quando as universidades não se submetiam diretamente a estes modelos, elas sentiam o risco de serem jogadas à invisibilidade e irrelevância.
O Brasil, que conheceu no passado gerações de intelectuais públicos de forte capacidade de influência no interior da vida social, viu seus professores universitários, em larga medida, se demitirem dessa função, como se sustentá-la fosse expressão de alguma forma de ausência de rigor e diversionismo em relação às atividades acadêmicas pretensamente reais. Melhor teria sido se a classe intelectual tivesse sustentado o tripé político que a ela compete, a saber, trabalho de base com setores desfavorecidos e vulneráveis, luta pela conquista da opinião pública a partir da ocupação da imprensa e articulação internacional em redes de pesquisa, tendo em vista a análise de processos político-sociais globais.
No entanto, se estes são fatores que podem ser encontrados em praticamente todos os países com classe intelectual relevante, há um fator eminentemente local que merece nossa avaliação. Ele se refere à relação profunda entre classe intelectual e gestão do Estado brasileiro. A Nova República serviu-se da classe intelectual como um dos setores mais importantes para o fornecimento de seus quadros de gestão. O Brasil viu, nos últimos vinte anos, uma impressionante quantidade de intelectuais se transformar em presidentes da República, prefeitos, ministros e secretários de Estado. Normalmente, eram intelectuais que se serviam do discurso do é necessário fazer alguma coisa, temos uma responsabilidade para com o país. Entretanto, isso nunca significou entrar no Estado para implodir por dentro sua estrutura arcaica. Na verdade, tratava-se de fornecer ao Estado um melhor discurso de justificação de seus arcaísmos, além de produzir ajustes em seu funcionamento, quando não acabávamos vendo estratégias de garantia de benesses de consultorias e assessorias. Os intelectuais não transformaram o Estado brasileiro, eles se integraram a ele.
A limpeza final
Esse artigo começou afirmando que a universidade pública havia se tornado um alvo global. Por que isso ocorreria se sua classe intelectual não oferecia mais nenhuma séria ameaça de sedição e desestabilização social? Gostaria de defender a tese de que vivemos em uma era de contrarrevolução preventiva, como disse uma vez Florestan Fernandes a respeito da história brasileira. Isso significa que, diante de uma situação de crise conexa e de possibilidade de desidentificação generalizada com instâncias de reprodução material da vida social, toda e qualquer possibilidade de questionamento com força de mobilização social deve ser paralisado em seu nascedouro.
A cooptação das universidades e a capitulação da classe intelectual nunca foi um processo completo e sem falhas. Maio de 1968 serve como prova nesse sentido. Afinal, tanto tradições revolucionárias quanto a emergência de novos agentes tensionam a possibilidade de produção do campo intelectual. A forma com que classes discentes recuperam saberes e aplicam a situações presentes também não pode ser completamente controlada. Se há algo que a experiência histórica mostrou é que a integração das classes intelectuais nunca foi um processo sem possibilidade de produção de efeitos inesperados ou de retomada das dinâmicas de revolta. Nesse sentido, a tendência é que, cada vez menos, brechas sejam permitidas e que a adaptação da universidade a padrões de esvaziamento crônico de funções e de paradoxal sobretrabalho feito por avaliações que nada avaliam tendem a proliferar. Como disse inicialmente, a universidade não tem mais função social na reprodução das exigências do estágio atual do capitalismo, e sequer a necessidade de mediação de conflitos sociais é visto como algo com o qual os estados devam efetivamente lidar. O que indica a consciência que devemos ter de nossa fragilidade e da urgência de nossas lutas.
Nota:
PROST, Antoine. Éducation, sociétés et politiques. Une histoire de l’enseignement de 1945 à nos jours, Paris, Éd. du Seuil, 1997. p. 139.
Referências:
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução na França. Campinas: Vide editorial, 2017
GRAEBER, David. Trabalhos de merda: uma teoria. Lisboa: Edições 70, 2022.
POLLOCK, Friedrich; State Capitalism: Its Possibilities and Limitations. In: ARATO, Andrew; GEBHARDT, Eike. The Essential Frankfurt School Reader. Nova York: Continuum, 1983.
PROST, Antoine. Éducation, sociétés et politiques. Une histoire de l’enseignement de 1945 à nos jours. Paris: Éd. du Seuil, 1997.
RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos. São Paulo: MBooks, 2004.
SAFATLE, Vladimir. A revolução conservadora no Brasil. 2019. Disponível em: https://www.opendemocracy.net/pt/brazils-conservative-revolution-pt/. Acesso em: 28 abr. 2025.
SAFATLE, Vladimir. Pensar após Gaza. In: OLIVEIRA, Rafael. Gaza no coração. São Paulo: Editora Elefante, 2024.
SALLES, João Carlos. Universidade pública e democracia. São Paulo: Boitempo, 2020.
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para outrosquinhentos@outraspalavras.net e fortaleça o jornalismo crítico.