Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 17 de julho de 2025

A universidade como alvo global

Quinta, 17 de julho de 2025

A universidade como alvo global

Desmonte, perseguição ou ambos. Nos EUA, Europa e América Latina, ela está ameaçado. A precarização do trabalho torna o diploma inútil. E o sistema vê a instituição como perigosa, por sua capacidade de dialogar com rebeldias

Este artigo integra o volume 38 do Caderno CRH, parceiro editorial de Outras Palavras, organizado e editado pelo Centro de Estudos e Pesquisas e Humanidades (CRH/UFBA), em coedição com a Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA). Leia mais.

A universidade pública é uma instituição que se tornou, nos últimos anos, espaço de intervenções violentas de toda ordem. Desde acusações de islamo-gauchismo em países como a França até intervenções brutais contra estudantes e professores em solidariedade com a causa palestina,  principalmente  nos  Estados  Unidos da América (EUA) e na Alemanha, o que vemos é a universidade  pública  como  espaço  de  tensionamento  social.  No entanto, a  lista  é  muito  mais extensa. Em governos de extrema-direita, como o que vimos no Brasil e que vemos atualmente na  Argentina, na  Turquia,  na  Hungria  e  em Israel, forças estatais operam toda forma de desmonte de financiamento e de estigmatização social contra a universidade pública, isso quando não se trata de criminalização direta contra professores e estudantes.

A sensibilidade aguda que a extrema-direita tem em relação as universidades, centros de pesquisas e formação mostra, a contrapelo, como  a  tese  da  obsolescência  da  universidade  era  simplesmente  falsa  (Salles,  2020).  Pois  a  extrema-direita  não  se  engana  a  respeito  da  articulação  profunda  entre  universidade,  movimentos  sociais  e  opinião  pública.  Por mais que a universidade pública tenha suas contradições  e  seus  núcleos  reacionários,  ela  é  ainda a instituição sociais mais aberta e porosa a articulações  com  movimentos  sociais  que  conhecemos  (Safatle,  2019).  Mesmo  produções  intelectuais aparentemente distantes da esfera política cotidiana, como Jacques Derrida e sua desconstrução, tornaram-se anátemas da extrema-direita  porque  elas  provaram  ser  capazes  de  mobiliar  a  imaginação  social  em  questões  sensíveis  para  a  reprodução  da  ordem  social,  como a sexualidade, o território, a origem, entre tantas outras.

O  caso  da   mobilização   universitária   contra  o  genocídio  palestino  é  outro  exemplo  que  nos  deve  fazer  pensar.  Durante  anos,  a  universidade conheceu toda forma de discurso pós-colonial, decolonial e contracolonial. Na maioria  dos  casos,  esses  discursos  pareciam  mais  adaptados  a  comitês  de  diversidade  de  grandes empresas, a políticas estatais de colonial  washing  do  que  interessados  em  ressoar questões presentes em lutas anticoloniais efetivas,  como  as  que  vimos  no  Vietnã,  na  África  e  na  América  Latina.  Ho  chi  min,  Thomas  Sankara  ou  mesmo  Subcomandante  Marcos  não eram exatamente as figuras mais presentes nas preocupações de nossos intelectuais decoloniais. Há de se perguntar a razão para tanto.

Mas eis que explode um verdadeiro genocídio  colonial  diante  de  nossos  olhos,  com  os elementos clássicos de apagamento do luto, de dessensibilização,  desumanização,  indistinção  entre  civis  e  combatentes  e  destruição  generalizada. O silêncio da grande maioria dos intelectuais ditos pós-coloniais contrasta com a compreensão lúcida e irredutível de massas de estudantes indignados, os únicos que realmente entenderam as verdadeiras consequências  do  que  estavam  a  ouvir  nos  bancos  universitários.  Eles  perceberam  rapidamente  que  o genocídio palestino era a expressão clara de como  as  sociedades  capitalistas  continuavam  coloniais, como elas procuravam agora impor novas formas de gestão sociais a partir da constituição de laboratórios globais de dessensibilização social que poderiam simplesmente ser exportados (Safatle, 2024). Contra a consolidação  de  tal  consciência,  a  reação  das  administrações universitárias e do Estado foi imediata pois se tratava de impedir que as alianças reais entre intelectuais e setores vulneráveis das populações  mundiais  fossem  constituídas.  Pois  tais alianças retiram dos gestores de símbolos integrados ao mercado crítico mundial o monopólio  da  decisão  sobre  o  que  merece  nossa  indignação e revolta. É para impedir processos dessa  natureza  que  a  universidade,  ou  o  que  restou dela, tornou-se um alvo global.

Essa sua condição de alvo global já vem daquilo que  poderíamos  chamar  de  enquadre neoliberal da universidade pública nos últimos trinta  anos.  Isso  significa  não  apenas  fazer  a  universidade depender sua existência de forças econômicas,  mas  também  agir  como  uma  empresa.  Ou  seja,  ela  deverá  não  apenas  ser  atrativa  para  investidores,  captar  verbas,  mas  funcionar como uma empresa, abrindo filiais, avaliando seus professores como avaliamos CEOs, avaliando produção acadêmica como avaliamos produtos  no  mercado,  competindo  internacionalmente  como  se  fôssemos  empresas  competindo pelo mercado acadêmico mundial.

Há  maneiras  de  governos  autoritários  calarem  universidades.  Conhecemos  tensões  dessa natureza no Brasil. Vimos durante o governo de Jair Bolsonaro aulas sendo invadidas por membros de  extrema-direita,   estrangulamento  financeiro  de  universidades,  ameaças  a  professores  que  desempenham  funções  públicas,  entre  tantas  outras  coisas.  Mas  há  maneiras de governos ditos democráticos controlarem a universidade. Basta reconstruí-la a partir do modelo de uma empresa e tratar conhecimento como se fosse produto cujo valor é medido por meio de seu “impacto”.

Permanecer com o problema

Diria que essa luta contra a universidade  pública  vinda  do  Estado  e  dos  mercados  nas últimas décadas, uma luta sem trégua, tem uma razão objetiva de ser vinculada ao fato da universidade não ter mais lugar no interior do processo  de  reprodução  material  da  vida.  Em  uma  dinâmica  de  produção  de  empregos  na  qual os estratos médios são constantemente eliminados a partir de processos de reengenharia contínua, na qual os empregos de nível salarial mais  baixos  são,  ao  mesmo  tempo,  precarizados  e  elevados  em  seus  padrões  de  exigência  de formação e na qual os estratos mais elevados  são  oligarquicamente  garantidos  (ou  seja,  eles são alcançados independente da formação dos  seus  ocupantes),  é  uma  das  maiores  mistificações  de  nossa  época  insistir  no  binômio  formação/empregabilidade.  Para  além  de  um  conjunto de empregos de condições e salários cada vez mais deteriorados, a universidade não pode garantir ascensão social ou simplesmente  sobrevivência  econômica.  Os  processos  de  formação  necessários  para  operar  no  interior  de nosso sistema econômico são, em larga medida, limitados, pontuais e de rápida absorção (Rifkin, 2004; Graeber, 2022). Ou seja, eles poderiam ser feitos sem universidades, de forma menos onerosa, pelos centros de formação. Os setores  fundamentais  da  economia  mundial  e  os  atores  reais  da  economia  nacional  sabem  que podem sobreviver sem universidades. Eles podem  sobreviver  com  uma  educação  disciplinar,  unidimensional  e  vinculada  apenas  à  expectativa de valorização simbólica fornecida pela educação superior. Ou seja, a universidade não é mais necessária para a reprodução da ordem econômica vigente.

A  pequena  camada  responsável  pela  organização  estratégica  da  economia  e  da  gestão  social pode ser formada em centros de excelência construídos para poucos em países centrais, coisa que a elite brasileira tem feito sistematicamente ao mandar seus filhos diretamente para estudar fora do país. Mesmo o desenvolvimento  de  pesquisas  capazes  de  projetar  cenários  e  permitir  circular  múltiplas  perspectivas  de  interpretação em conflito perde o sentido em um modelo de inserção capitalista no qual as elites locais perderam suas ilusões de se constituírem como  burguesias  nacionais  e  aceitam  melhor serem representantes de modelos de integração global cujos processos decisórios se dão muito longe daqui. Quando a extrema-direita ridiculariza a produção em massa de diplomas, de certa forma ela tem razão. O sistema econômico atual funciona sem eles.

Nesse  horizonte,  a  universidade  parece  perder  seu  lugar.  No  entanto,  talvez  seja  o  caso  de  acrescentar  mais  uma  variável  a  tal quadro. Uma variável muitas vezes negligenciada  e  que  é,  no  entanto,  absolutamente  central. Pois a perda de lugar da universidade ocorreu, principalmente, porque saiu de cena a  crença  na  necessidade  de  modelos  de  gestão  baseados  na  conciliação  e  integração  de  setores  da  população  potencialmente  desestabilizadores,  como  os  trabalhadores  pobres  (geridos  pelos  sindicatos  em  relações  solidamente  estratégicas  com  o  Estado),  pequenos  camponeses e a classe intelectual (alocada em universidades garantidas pelo Estado). O que nos  leva  à  seguinte  equação:  a  universidade  perdeu seu lugar porque as sociedades ocidentais não operam mais no interior de processos de  mediação  de  conflitos  sociais.  A  universidade dizia respeito a um operador singular de mediação  e  controle  de  conflito  social.  Mas  em um horizonte social no qual tal mediação dá lugar a uma aceleração das crises sem expectativa de coesão social, não há porquê preservar universidades.

Sabemos que a história da universidade  como  instituição  é  uma  história  recente.  Até  o  começo  do  século  XIX  seu  lugar  era,  em  larga  medida,  o  de  um  mero  centro  de  formação.  Os  principais  pensadores  e  cientistas  não  eram  professores  universitários,  não  tinham  cátedras.  O  debate  intelectual  e  artístico  ocorre,  em  larga  medida,  fora  de  seus  muros.  O  modelo  de  Wilheim  von  Humboldt  (representado  pela  fundação  da  Universidade  de  Berlim,  em  1809)  pode  se  impor nas sociedades ocidentais não apenas por prometer realizar expectativas de emancipação  através  de  uma  formação  de  cunho  humanista, mas principalmente por saber se colocar como peça fundamental de constituição da adesão social e desenvolvimento técnico do recente Estado-nação. A universidade ocidental, cujo modelo foi criado por Alexandre von Humboldt no começo do século XIX, tinha uma função clara de formação de elites  e,  principalmente,  de  integração  da  classe intelectual à condição de funcionário público.  Tratava-se  de  uma  estratégia  típica  da  lógica  da  Restauração,  que  visava  eliminar  os  riscos  de  deriva  revolucionária  da  classe intelectual, como se viu na Revolução Francesa. Não por outra razão, uma impressionante quantidade de intelectuais radicais verá as portas lhe serem fechadas no interior da universidade alemã do século XIX: Feuerbach,  Bruno  Bauer,  Marx.  Pois  a  integração  terá sempre que lidar com certos limites que só  poderão  ser  incorporado  tempos  depois,  através de caminhos tortuosos. Ou seja, gostaria  de  insistir  nesse  ponto,  nosso  modelo  universitário  é  fruto  de  uma  reação.  Ele  foi  a maneira que o Estado encontrou para paralisar a força revolucionária da aliança entre classe  intelectual  e  camadas  populares.  Já  Edmund Burke (2017) reclamava de como as ideias abstratas dos filósofos haviam chegado às massas e criado toda forma de violência política.

Se voltarmos à história da universidade em  países  colonizados,  veremos  mais  claramente a natureza do processo silenciador que a  constitui.  Por  exemplo,  a  primeira  universidade  da  América  Latina  (San  Marco,  Peru)  data do século XVI. Ela se instaura no meio de uma guerra colonial contra um povo com largo conhecimento tecnológico e complexa cosmovisão,  a  saber,  os  Incas.  Uma  das  funções  da  universidade  foi  impor  um  silenciamento  cultural e epistêmico que irá perdurar, de certa forma, até hoje.

No  entanto,  seria  incorreto  reduzir  a  universidade  a  esse  horizonte  de  silenciamento  e  de  cooptação.  Sua  cooptação  será  instável, ainda mais quando se tornar universidade  de  massa,  integrando  uma  classe  trabalhadora  que  tinha  sua  própria  experiência  de  lutas  sociais  e  formação.  A  integração  de  novas  classes  sociais  à  universidade  é  também abertura de circulação de experiências e saberes.  Lembremos,  por  exemplo,  como  em  1900  o  número  de  estudantes  nas  universidades francesas era de 29.000. Em 1950, será de 137.000, em 1968, 587.000 e 2.300.000 em 2001 [1].  Este  reposicionamento  da  universidade  no  interior  da  vida  política  e  social  dava  a  ela  uma  nova  importância.  Pois  um  corpo  discente  de  classes  diversificadas  traz  novas  questões, novas tradições de pensamento, novos problemas.

Depois de maio

Essa tensão mostrou-se particularmente dramática a partir de 1968. Há uma exacerbação  da  tensão  universidade/estado  a  partir  de  maio de 1968 e, de certa forma, muito de nossa  situação pode  ser  lida  a  partir  deste  pano  de fundo. Pela primeira vez, de forma clara, as universidades se colocam como espaço de produção de revoltas contra os modos hegemônicos de reprodução material da vida.

Ressalta-se  como,  durante  certo  tempo,  o modelo do Estado do bem-estar social, gerado  a  partir  do  final  da  Segunda  Guerra,  com  seu  capitalismo  de  Estado,  fora  visto  como  uma  espécie  de  modelo  perfeito  de  gestão  de  conflitos sociais. Friedrich Pollock (1983), em um  ensaio  clássico,  insistia  na  tese  da  passagem  inexorável  de  um  capitalismo  privado para  um  capitalismo  de  alta  regulação  estatal,  fosse  ele  totalitário  (nazifascismo)  ou  democrático  (socialdemocracia).  Capitalismo  no  qual as decisões econômicas estariam submetidas à orientação política das deliberações de gestão  e  limitação  da  força  de  transformação  dos  conflitos  de  classe.  Pollock  chega  a  falar  em  uma  substituição  de  problemas  econômicos  por  problemas  administrativos,  criando  um  horizonte  racional  de  gestão  de  conflitos  sociais  graças  as  promessas  de  integração  da  classe  trabalhadora  devido  à  consolidação  de  uma  lógica  da  providência  e  da  assistência  social generalizada, que teria a capacidade de limitar os processos de espoliação econômica. Nesse  horizonte,  a  função  das  universidades  era  garantir  a  ascensão  social  e  fornecer  um  espaço regulado de liberdade de pensamento.

Nesse sentido, maio de 1968 demonstrará a fragilidade dessa crença da possibilidade de  regulação  de  conflitos  no  interior  de  um  capitalismo de Estado. Pois ele mostrou como as formas de regulação da classe trabalhadora não foram capazes de impedir a consolidação de revoltas nos países centrais do capitalismo global.  Revolta  esta  que  visava  o  caráter  disciplinar deste mesmo Estado-providência, outrora  visto  como  o  modelo  perfeito  de  gestão  social.  Ou  seja,  as  revoltas  de  maio  de  68  e  a  força  de  sedição  de  seus  conflitos  mostraram  os  limites  das  promessas  de  integração  dessa  forma  de  capitalismo  e  de  suas  estratégias  de  providência.  Os  próximos  modelos  de  gestão  nas  sociedades  capitalistas,  se  quisessem  ter  eficácia real, deveriam operar de outra forma. Estava  evidente  a  impotência  do  discurso  de  integração através da identificação com a figura  do  cidadão  do  Estado-nação  comum.  Seria  necessário deslocar os processos de regulação social para uma outra cena.

A demissão dos intelectuais

Para  tanto,  seria  necessário  paulatinamente  neutralizar  a  universidade  e  sua  classe  de intelectuais, quebrar sua força de mobilização social e empurrá-los à obsolescência. Muito haveria  a  se  dizer  a  respeito  de  tais  processos  que ocorreram principalmente a partir dos anos oitenta. Eles responderam a múltiplos ritmos e a  dinâmicas  específicas  em  vários  países.  Um  país que tinha uma presença forte da classe intelectual  na  vida  nacional,  como  o  Brasil,  não  poderia seguir os mesmos processos que países de configuração social distinta. Esta análise, no entanto, ainda está por ser feita.

Contudo,  seria  o  caso  de  insistir  aqui,  e  isso vale como uma crítica que é também uma autocrítica,  que  os  processos  não  poderiam  ocorrer sem a demissão da classe intelectual de sua  função  histórica  de  responsável  pelo  tensionamento de processos políticos. A classe intelectual  contemporânea  tende  a  esconder  sua  demissão  política  por  meio  da  pretensa  crítica  a desejos de dirigismo e a crítica a uma política baseada na crença da força indutora de vanguardas letradas. Todos nós conhecemos as críticas feitas pelos próprios intelectuais a seu pretenso papel dirigista. Não há, porém, processo político sem um ato de nomeação do acontecimento – ato que exige a mobilização da capacidade da classe intelectual de criar ressonâncias espacio-temporais  e,  assim,  redimensionar  dinâmicas  sociais.  Uma  nomeação  não  é  simplesmente  uma  descrição,  ainda  mais  quando  estamos  a  falar de processos políticos populares. Ela é um ato performativo que redimensiona a capacidade de transformação dos agentes.

A demissão política dos intelectuais foi o  resultado  da  convergência  de  três  fatores.  Primeiro,  vivemos  em  um  movimento  global  de bloqueio das relações entre universidade e sociedade  civil.  Isso  se  deve  a  uma  forma  de  gestão social que promete aos intelectuais a ascensão  ao  posto  de  consumidores  de  serviços  globais,  graças  à  internacionalização  das  universidades e à submissão delas a processos de avaliação cujos métodos são tão opacos quanto dignos do Pai Ubu. Todos nós sabemos bem como  os  processos  de  avaliação  são  indefensáveis não porque não devamos ser avaliados, mas porque eles não medem nada de maneira precisa.  Como  esperar  avaliação  racional  se  submetemos aos mesmos critérios universidades de massa, com mais de 100.000 alunos, e universidades  de  formação  de  elite,  com  não  mais  do  que  10.000  alunos?  O  que  significa  realmente medir impacto por meio de incidências  de  citações?  O  que  dizer  de  sistemas  de  avaliação  de  publicações que  não  levam  em  conta livros? Como medir a influência de uma universidade no interior da vida nacional? Ou qual o sentido em esperar níveis de circulação de  estudantes  estrangeiros  da  ordem  de  25%  em  países  que  ainda  precisam  encontrar  formas de integrar largas camadas de sua população ao sistema educacional superior?

No entanto, a submissão a tais sistemas opacos  de  avaliação  levou  as  universidades  a  se  transformarem,  no  melhor  dos  casos,  em  guetos  de  luxo:  um  misto  de  agências  de  viagens para colóquios internacionais e consumo de produtos culturais globais com espaço para a  produção  especializada  de  um  saber  cujos  resultados,  muitas  vezes,  não  são  sequer  publicados na língua local de seus países, já que a  transformação  do  inglês  em  língua  franca implica  retornar  a  uma  situação  medieval  na  qual a classe intelectual não pode mais ser lida pela população nacional da qual ela faz parte, um  pouco  como  na  Idade  Média  e  seus  pensadores que escreviam em latim. Com isso, os intelectuais  foram,  cada  vez  mais,  perdendo  relevância como referências para a reflexão da sociedade sobre si mesma. Quando as universidades não se submetiam diretamente a estes modelos, elas sentiam o risco de serem jogadas à invisibilidade e irrelevância.

O  Brasil,  que  conheceu  no  passado  gerações  de  intelectuais  públicos  de  forte  capacidade de influência no interior da vida social, viu  seus  professores  universitários,  em  larga  medida,  se  demitirem  dessa  função,  como  se  sustentá-la  fosse  expressão  de  alguma  forma  de ausência  de  rigor  e  diversionismo  em  relação às atividades acadêmicas pretensamente reais.  Melhor  teria  sido  se  a  classe  intelectual tivesse sustentado o tripé político que a ela compete, a saber, trabalho de base com setores desfavorecidos  e  vulneráveis,  luta  pela  conquista da opinião pública a partir da ocupação da imprensa e articulação internacional em redes  de  pesquisa,  tendo  em  vista  a  análise  de  processos político-sociais globais.

No entanto, se estes são fatores que podem ser encontrados em praticamente todos os países com classe intelectual relevante, há um fator  eminentemente  local  que  merece  nossa  avaliação. Ele se refere à relação profunda entre classe intelectual e gestão do Estado brasileiro. A Nova República serviu-se da classe intelectual  como  um  dos  setores  mais  importantes  para  o  fornecimento  de  seus  quadros  de  gestão. O Brasil viu, nos últimos vinte anos, uma impressionante  quantidade  de  intelectuais  se  transformar em presidentes da República, prefeitos,  ministros  e  secretários  de  Estado.  Normalmente, eram intelectuais que se serviam do discurso  do  é  necessário  fazer  alguma  coisa, temos uma responsabilidade para com o país. Entretanto, isso nunca significou entrar no Estado  para  implodir  por  dentro  sua  estrutura  arcaica. Na verdade, tratava-se de fornecer ao Estado um melhor discurso de justificação de seus  arcaísmos,  além  de  produzir  ajustes  em  seu  funcionamento,  quando  não  acabávamos  vendo  estratégias  de  garantia  de  benesses  de  consultorias e assessorias. Os intelectuais não transformaram o Estado brasileiro, eles se integraram a ele.

A limpeza final

Esse  artigo  começou  afirmando  que  a  universidade  pública  havia  se  tornado  um  alvo global. Por que isso ocorreria se sua classe intelectual  não  oferecia  mais  nenhuma  séria  ameaça  de  sedição  e  desestabilização  social?  Gostaria de defender a tese de que vivemos em uma era de contrarrevolução preventiva, como disse  uma  vez  Florestan  Fernandes  a  respeito  da história brasileira. Isso significa que, diante de  uma  situação  de  crise  conexa  e  de  possibilidade de desidentificação generalizada com instâncias de reprodução material da vida social, toda e qualquer possibilidade de questionamento com força de mobilização social deve ser paralisado em seu nascedouro.

A  cooptação  das  universidades  e  a  capitulação  da  classe  intelectual  nunca  foi  um  processo completo e sem falhas. Maio de 1968 serve como prova nesse sentido. Afinal, tanto tradições revolucionárias quanto a emergência de  novos  agentes  tensionam  a  possibilidade  de  produção  do  campo  intelectual.  A  forma  com  que  classes  discentes  recuperam  saberes  e  aplicam  a  situações  presentes  também  não  pode  ser  completamente  controlada.  Se  há  algo que a experiência histórica mostrou é que a integração das classes intelectuais nunca foi um  processo  sem  possibilidade  de  produção  de efeitos inesperados ou de retomada das dinâmicas de revolta. Nesse sentido, a tendência é  que,  cada  vez  menos,  brechas  sejam  permitidas e que a adaptação da universidade a padrões de esvaziamento crônico de funções e de paradoxal  sobretrabalho  feito  por  avaliações  que  nada  avaliam  tendem  a  proliferar.  Como disse  inicialmente,  a  universidade  não  tem  mais função social na reprodução das exigências do estágio atual do capitalismo, e sequer a necessidade de mediação de conflitos sociais é visto como algo com o qual os estados devam efetivamente lidar. O que indica a consciência que devemos ter de nossa fragilidade e da urgência de nossas lutas.


Nota:

PROST, Antoine. Éducation, sociétés et politiques. Une histoire de l’enseignement de 1945 à nos jours, Paris, Éd. du Seuil, 1997. p. 139.


Referências:

BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução na França. Campinas: Vide editorial, 2017

GRAEBER, David. Trabalhos de merda: uma teoria. Lisboa: Edições 70, 2022.

POLLOCK, Friedrich; State Capitalism: Its Possibilities and Limitations. In:  ARATO,  Andrew;  GEBHARDT,  Eike.  The Essential Frankfurt School Reader. Nova York: Continuum, 1983.

PROST,  Antoine.  Éducation,  sociétés  et  politiques.  Une histoire de l’enseignement de 1945 à nos jours. Paris: Éd. du Seuil, 1997.

RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos. São Paulo: MBooks, 2004.

SAFATLE,  Vladimir.  A  revolução  conservadora  no  Brasil. 2019.   Disponível   em:   https://www.opendemocracy.net/pt/brazils-conservative-revolution-pt/.  Acesso  em:  28  abr.  2025.

SAFATLE,  Vladimir.  Pensar  após  Gaza.  In:  OLIVEIRA,  Rafael. Gaza no coração. São Paulo: Editora Elefante, 2024.

SALLES, João Carlos. Universidade pública e democracia. São Paulo: Boitempo, 2020.

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