Que Bom te Ver Viva (1989) aborda o regime a partir do relatos das mulheres sobreviventes, inclusive a ainda silenciada tortura sexual. Há um estranhamento: elas parecem ter travas na garganta após o horror. E cabe à diretora performar toda raiva guardada
OUTRASPALAVRAS POÉTICAS
por Juli Candido
Publicado no OUTRASPALÁVRAS em 06/11/2024

Este é o primeiro texto de uma série que Outras Palavras inicia sobre cinema e ditadura. Todos os textos estarão disponíveis aqui

por Juli Candido
Publicado no OUTRASPALÁVRAS em 06/11/2024

Este é o primeiro texto de uma série que Outras Palavras inicia sobre cinema e ditadura. Todos os textos estarão disponíveis aqui
A cineasta Lucia Murat foi presa e torturada pela ditadura militar. Essa é a primeira informação relevante para começar a assistir Que Bom te Ver Viva, filme da diretora de 1989. Começar com essa informação não é reduzir a autora ao que aconteceu com ela, mas sim permitir — como ela parece pedir no filme — que ela fale sobre o que aconteceu com ela e suas parceiras sem precisar se preocupar com o incômodo de seus ouvintes.
O filme é uma colagem entre testemunhos de militantes de esquerda presas pela ditadura e performances da atriz Irene Ravache, além de imagens simbólicas de cárcere, baratas e da nova vida cotidiana de cada uma das sobreviventes.

A primeira impressão que os testemunhos causam é de total estranheza. Como Lucia disse em seu próprio relato à Comissão Nacional da Verdade de 2014: “parece tudo uma loucura, mas aconteceu”. Ao ouvir relatos brutais de violência fria e sádica em contextos de relativa paz, parece que as únicas respostas possíveis são o horror ou a negação.
Contribui para a dificuldade do espectador em processar a veracidade do que é dito, o contraste com imagens de vida doméstica calma e banal. A nova vida das sobreviventes é tão normal que torna difícil acreditar em um passado tão cruel. Em determinada altura do filme Irene Ravache diz que o mártir e o torturador nunca são humanos. É praticamente impossível para alguém que não passou por uma situação extrema como essa acreditar que seu colega de trabalho possa ser qualquer um dos dois.