Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Mulheres e ditadura: Como falar sobre o inaudível?

Sexta, 8 de novembro de 2024

Que Bom te Ver Viva (1989) aborda o regime a partir do relatos das mulheres sobreviventes, inclusive a ainda silenciada tortura sexual. Há um estranhamento: elas parecem ter travas na garganta após o horror. E cabe à diretora performar toda raiva guardada

OUTRASPALAVRAS                                        POÉTICAS
por Juli Candido

Publicado no OUTRASPALÁVRAS em 06/11/2024

Este é o primeiro texto de uma série que Outras Palavras inicia sobre cinema e ditadura. Todos os textos estarão disponíveis aqui

A cineasta Lucia Murat foi presa e torturada pela ditadura militar. Essa é a primeira informação relevante para começar a assistir Que Bom te Ver Viva, filme da diretora de 1989. Começar com essa informação não é reduzir a autora ao que aconteceu com ela, mas sim permitir — como ela parece pedir no filme — que ela fale sobre o que aconteceu com ela e suas parceiras sem precisar se preocupar com o incômodo de seus ouvintes.

O filme é uma colagem entre testemunhos de militantes de esquerda presas pela ditadura e performances da atriz Irene Ravache, além de imagens simbólicas de cárcere, baratas e da nova vida cotidiana de cada uma das sobreviventes.

A primeira impressão que os testemunhos causam é de total estranheza. Como Lucia disse em seu próprio relato à Comissão Nacional da Verdade de 2014: “parece tudo uma loucura, mas aconteceu”. Ao ouvir relatos brutais de violência fria e sádica em contextos de relativa paz, parece que as únicas respostas possíveis são o horror ou a negação.

Contribui para a dificuldade do espectador em processar a veracidade do que é dito, o contraste com imagens de vida doméstica calma e banal. A nova vida das sobreviventes é tão normal que torna difícil acreditar em um passado tão cruel. Em determinada altura do filme Irene Ravache diz que o mártir e o torturador nunca são humanos. É praticamente impossível para alguém que não passou por uma situação extrema como essa acreditar que seu colega de trabalho possa ser qualquer um dos dois.

As mulheres do filme rompem a barreira do indizível, quebram a lei social não escrita que determina que a vítima deve se calar e ter vergonha do que fizeram com ela. Mas ainda assim, não conseguem ser ouvidas. Mesmo com o esforço de falar sobre o trauma, existe uma muralha que impede que suas palavras sejam absorvidas pelos ouvintes. Ainda mais intolerável parece ser o trauma do outro.

Hoje falamos muito sobre a dificuldade de comunicação entre as pessoas, seja por culpa das bolhas das redes sociais, ou pelas fake news, mas aqui aparece uma forma mais essencial de incomunicabilidade. Como palavras seriam suficientes para transmitir o horror de uma experiência como a tortura?

É aí que entra a personagem de Irene Ravache. Enquanto os relatos das sobreviventes não é em nenhum momento combativo ou raivoso, todos parecem expressar que há algo de indizível, algo guardado que não consegue sair. Irene performa a raiva guardada, as verdades duras que são sacrificadas para manter uma relacionamento ou uma família, a quebra do silêncio imposto também em um grande acordo nacional: a anistia.

Além disso, é importante a escolha por entrevistar apenas mulheres sobreviventes da ditadura, pois é ainda mais silenciada a tortura sexual. Assim como é mais engessada a figura da mãe, como uma mãe poderia ter participado da luta armada e ter sido torturada? Não só os companheiros, mas também os filhos esquivam de ouvir as denúncias de suas mães.

Resta então fazer ao filme a crítica que poderia ser feita a talvez 90% dos filmes nacionais sobre a ditadura. Por que representar só ex-militantes de classe média e branca? Em um momento do filme uma menção é feita ao fato de as pessoas da Baixada Fluminense não se interessarem tanto por falar da tortura na ditadura.

Segundo nos relatam (ainda que nem precisassem) os moradores da Baixada, eles estão tão acostumados a violência e a militarização, que seria até estranho falar sobre a ditadura como algo que choque, ali a violência brutal de morte e torturas é cotidiana e não pontual. Ainda assim não ficamos sabendo mais nada sobre outras formas de resistência à ditadura de fora do universo estudantil, branco e de classe média.

Esse ano, com o aniversário de 60 anos do golpe, algumas iniciativas foram feitas no sentido de contornar mais essa camada de silenciamento, mostrando parte da luta negra, indígena e periférica contra a ditadura, mas ainda há muito a ser feito.

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