Terça, 4 de fevereiro de 2014
Paula BianchiJornal do Brasil
Tidos pelo poder público como uma vitrine para o País e uma oportunidade de investimentos, os grandes eventos que serão realizados no Brasil
acabaram servindo de estopim para uma série de reivindicações, que
eclodiram nas agora conhecidas como jornadas de junho. Essas
reivindicações seguem se desdobrando, causando dor de cabeça aos
governantes e perplexidade aos estudiosos. No centro da questão, por
sediar a final da Copa
do Mundo e as Olimpíadas e fazer parte do imaginário estrangeiro do
Brasil, a cidade do Rio de Janeiro e os seus 6 milhões de habitantes
servem de laboratório, e se veem entre as promessas de uma cidade melhor
e a realidade caótica de má qualidade dos serviços públicos e obras
aquém do anunciado.
Para a urbanista Raquel
Rolnik, professora da Universidade de São Paulo e relatora especial do
Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) para
o Direito à Moradia Adequada, que acompanha de perto o processo desde
2009, a principal discussão que se coloca é o direito à cidade e a
necessidade de se investir em uma cidade realmente para todos. "Não é
comprar casa, comprar moto. Tem uma dimensão publica essencial que é a
urbanidade e que precisa ser resolvida", afirma.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Terra: A cinco meses da Copa, que tipo de legado o evento deixa para a cidade do Rio de Janeiro?
Raquel
Rolnik: O legado urbanístico que a Copa do Mundo vai deixar não é
significativo. Alguns projetos viários e de infraestrutura relacionados
com os deslocamentos necessários para o evento, como BRTs, novas vias de
ligação com os estádios e entre aeroportos e zonas hoteleiras e
estádios, estão sendo feitos, mas essas não eram as prioridades de
mobilidade. Não há outros legados do ponto de vista urbanístico que
possam ser mencionados. Ações esperadas, como a despoluição da Baía de
Guanabara e a melhoria das condições de saneamento gerais da cidade, não
foram realizadas. Por outro lado, para a implantação desses projetos de
infraestrutura foi necessário remover comunidades e assentamentos que
se encontravam naqueles locais há décadas sem que uma alternativa
adequada de moradia tenha sido oferecida. Para as pessoas diretamente
atingidas, ao invés de um legado, a Copa deixa um ônus.
Terra: Essas remoções foram feitas de forma irregular?
Raquel:
Os procedimentos adotados durantes as remoções não correspondem ao
marco internacional dos direitos humanos, que inclui o direito a moradia
adequada, nem respeitam a forma como elas devem ocorrer. O direito a
informação, a transparência e a participação direta dos atingidos na
definição das alternativas e de intervenção sobre as suas comunidades
não foi obedecido. As pessoas receberam compensações insuficientes para
garantir seu direito à moradia adequada em outro local e, em grande
parte dos casos, não houve reassentamento onde as condições pudessem ser
iguais ou melhores daquelas em que se encontravam. Nos casos em que
aconteceu algum tipo de reassentamento para o Minha Casa Minha Vida,
esse se deu em áreas muito distantes dos locais originais de moradia,
prejudicando os moradores no acesso aos locais de trabalho, meio de
sobrevivência e a rede socioeconômica que sustenta na cidade.
Terra:
Isso tem alguma relação com a Copa ser realizada em um país em
desenvolvimento. Em outras nações que receberam o campeonato esse
processo se deu de uma forma diferente?
Raquel: Aquilo que se
incide de uma forma diferenciada sobre o Brasil e que podemos estender
para outros casos, como a Índia na organização dos Commonwealth Games, e
também da África do Sul na Copa do Mundo, é a existência de
assentamentos informais de baixa renda consolidados. Essas comunidades
são as mais vulneráveis as violações aos direitos de moradia, o que não
quer dizer que em outros países isso tenha sido respeitado.
Terra:
Desde junho, milhares de pessoas saíram às ruas em protesto tanto
contra a qualidade e o preço do transporte quanto contra os gastos com
os megaeventos. O grito "não vai ter Copa" se tornou uma bandeira comum a
diversos grupos. O que essas manifestações expressam e o que podemos
esperar para 2014?
Raquel: Me parece que a sociedade brasileira
tem demonstrado o seu descontentamento em relação ao modelo de
crescimento econômico e de inclusão social que estamos vivendo. Esse
modelo, baseado na ampliação do acesso ao consumo, não enfrentou e não
resolveu a questão da cidade para todos. Ou seja, não se criou um modelo
de desenvolvimento urbano que rompa com a ideia de uma cidade
excludente, para poucos. As manifestações tem um conteúdo bastante claro
de reivindicação de direitos, especialmente do direito à cidade,
expresso através do direito ao espaço publico e ao serviço publico de
qualidade, entre outras questões.
Terra: Você
comentou que as obras de transporte que estão sendo realizadas não
seriam as mais necessárias. O que seria uma prioridade para o Rio?
Raquel:
Toda a relação com a população da Baixada Fluminense é absolutamente
prioritária, assim como o eixo Niterói-São Gonçalo, que são os locais
que enfrentam os maiores gargalos de mobilidade e que beneficiariam o
maior número de habitantes.
Terra: O Rio sofre com o
crescimento da especulação imobiliária, que se reflete nos preço dos
imóveis e na alta do custo de vida. Qual o efeito disso a longo prazo na
cidade?
Raquel: Talvez o Rio seja o local onde isto esteja
acontecendo com maior intensidade, mas a especulação também afeta outras
cidades. O efeito é a expulsão dos setores de menor renda das áreas
mais urbanizadas, com acesso a serviços, oportunidades etc. Há um
descolamento em direção a periferias desqualificadas, sem urbanidade,
com impactos enormes sobre a mobilidade e as condições de vida da
população. Além de gerar, e isso já está claro em São Paulo e no Rio, um
aumento na quantidade de pessoas morando na rua e sem teto. Não há um
censo, mas nós já observamos que há um número cada vez maior de pessoas
que não tem condições de morar em local algum. Esses números são
alarmantes. É a população que hoje está ou vivendo nas ruas ou nas ruas
promovendo ocupações e protestos.
Terra: Quais os principais desafios do Rio?
Raquel:
O Rio, assim como outras metrópoles do Brasil, é uma cidade partida. O
maior desafio é a inclusão territorial, fazer uma cidade que seja
realmente para todos. Não é comprar casa, comprar moto. Tem uma dimensão
pública essencial que é a urbanidade e que precisa ser resolvida. Tenho
acompanhado o tema dos megaeventos desde que apresentei um relatório
temático ao conselho de direitos humanos da ONU em 2009 fazendo uma
espécie de overview da questão no mundo com foco na moradia. A partir
daí o conselho votou uma resolução definindo claramente que a preparação
dos megaeventos deveria levar em consideração e respeitar o direito a
moradia para todos. Acredito que os procedimentos ao longo desses anos,
devido a própria organização das populações atingidas, aos comitês em
torno da Copa, à sensibilidade dos meios de comunicação para reportar
esse tema, estão melhorando. Nos primeiros casos que vi no Rio de
Janeiro, o trator já ia derrubando as casas com as coisas das pessoas
dentro. Houve aumento no valor dos benefícios, acabou de sair uma
portaria do governo federal em relação a essa questão, mas isso ainda é
insuficiente em relação aos desafios que temos nesse campo.