Sábado, 11 de março de 2017
Por
Aldemario Araujo Casto*
Brasília, 11 de março de 2017

São inúmeros os enfoques e implicações de alterações
significativas na estrutura da Seguridade Social, notadamente nas áreas da
Previdência e da Assistência. A considerável complexidade é uma das marcas
registradas do debate em torno do tema. Os poderosos interesses envolvidos,
legítimos ou não, também ofertam um colorido especial para a discussão do
assunto.
Parece, numa análise sensata, que a Previdência Social, ou a
Seguridade Social, numa visão mais ampla, reclama reformas ou ajustes. Esse
movimento abarca inúmeros países pelo mundo afora em função de um saudável
aumento da expectativa de vida (ou sobrevida). A realidade brasileira, segundo
vários dados demográficos, integra esse fenômeno de âmbito internacional.
Ademais, observam-se inúmeros exemplos de privilégios inaceitáveis
na previdência social brasileira. Em condições normais de exercício laboral não
é razoável a existência de aposentadorias, dentro e fora do serviço público,
com duas dezenas, ou menos, de anos de contribuição ou mesmo com idades que
sequer chegam aos 50 anos. Essas situações precisam ser devidamente suprimidas.
Nesse sentido, as questões mais relevantes nesse momento e nesse
contexto são justamente as seguintes: a) até que ponto as reformas são
necessárias e b) a partir de que ponto as mudanças são excessivas e
representativas de desnecessárias fragilizações de direitos (abrindo espaço
para a atuação de poderosos interesses da previdência privada).
Em escrito anterior, denominado PREVIDÊNCIA, DÉFICIT E DRU (http://www.aldemario.adv.br/ previdenciadeficitdru.pdf),
demonstrei, com base em dados e análises consistentes de inúmeros atores da
sociedade civil, que não existe uma situação emergencial e catastrófica nas contas
da Seguridade Social. O debate em torno das mudanças necessárias, em especial
na Previdência Social e na Assistência Social, pode e deve ser conduzido de
forma ampla, profunda e sem açodamentos. Ademais, precisam ser devidamente
considerados os seguintes aspectos: a) a atual conjuntura econômica recessiva
que contabiliza quase treze milhões de desempregados; b) as bilionárias
desonerações no campo das contribuições para a Seguridade Social; c) a ausência
de ações organizadas e sistemáticas contra a sonegação fiscal, o planejamento
tributário, a recuperação de valores inscritos em Dívida Ativa e as fraudes; d)
a revisão da DRU - Desvinculação das Receitas da União e e) a inserção da
discussão sobre as contas da Seguridade Social no panorama mais amplo da
política econômica, notadamente envolvendo as vertentes monetária e cambial.
Tudo indica que a PEC n. 287/2016 ultrapassa, em larga medida, a
fronteira das mudanças necessárias. Os excessos, abusos mesmo, da proposição em
curso no Congresso Nacional são evidentes. A grande maioria da população,
notadamente os trabalhadores, paulatinamente percebe os enormes malefícios da
tal “Reforma da Previdência”, apesar dos esforços contrários protagonizados
pelos atores governamentais e pela grande mídia completamente comprometida com
uma agenda de desmonte de importantíssimos mecanismos de efetivação da justiça
social no Brasil.
Beira as raias do ridículo o discurso oficial de que o crescimento
econômico somente será retomado se forem dadas fortes demonstrações, ao “todo-poderoso
mercado”, de austeridade na condução das despesas públicas. É a velha e surrada
narrativa baseada na “fada da confiança”. Essa entidade imaginária (pra lá de
estranha) influenciará a decisão de investimento dos principais atores
econômicos a partir de indicativos de fortíssimas restrições nos gastos
públicos. Com essa linha de raciocínio renega-se, inclusive, as mais
importantes lições keynesianas, baseadas no efeito profundamente positivo do
aumento do gasto público em ambiente de retração econômica, responsáveis por
vários episódios de “salvamento” do capitalismo no século XX.
Serão destacados, na sequência, três emblemáticos pontos da
“Reforma da Previdência”. Eles demonstram, com toda clareza, a verdadeira
natureza das modificações apresentadas. Não se tratam de ajustes voltados para
sustentabilidade do sistema. São, em verdade, definições vocacionadas para
restringir de forma radical os mais básicos direitos no campo da Seguridade
Social.
A proposta governamental estabelece a idade mínima de 65 anos para
as todas as aposentadorias ordinárias (não especiais), abrangendo homens,
mulheres, trabalhadores urbanos, trabalhadores rurais, servidores públicos e
empregados perante a iniciativa privada. Os principais problemas com essa
definição são os seguintes: a) desconsidera as condições de inserção da mulher
no mercado de trabalho (com remunerações menores em boa parte dos casos e
submetida majoritariamente a uma dupla jornada quando considerados os afazeres
domésticos); b) não atenta para as realidades laborais profundamente
desgastantes no meio rural; c) não observa distinções significativas das
condições de trabalho nas cidades. Somente para ilustrar a afirmação genérica,
existem milhões de trabalhadores urbanos que “gastam” quatro ou mais horas do
dia em transportes coletivos de baixa qualidade nos trajetos entre as moradias e os locais de trabalho e d) a
realidade de outros países, notadamente europeus, não pode ser automaticamente
transposta para o Brasil. Esses países experimentam condições socioeconômicas
muito mais avançadas. Afinal, o Estado do Bem-Estar Social (o chamado Welfare State) não aportou no
Brasil para a grande maioria de sua população. Uma das demonstrações dessa
circunstância, destacada pela UNAFISCO NACIONAL - Associação Nacional dos Auditores
Fiscais da Receita Federal do Brasil (http://s.conjur.com.br/dl/ nota-tecnica-unafisco.pdf),
consiste na diferença de expectativa de vida entre o Brasil e os países da OCDE
- Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, onde a idade média
para a aposentadoria é de 64,5 anos. Enquanto essa expectativa alcança o
patamar de 75 anos no Brasil, a média nos países da OCDE, na primeira linha de
desenvolvimento socioeconômico no mundo, é de 81,2 anos.
Não custar pontuar, apesar de amplamente difundida e rejeitada, a
exigência absurda, presente no texto da “Reforma da Previdência”, de combinar a
idade mínima de 65 anos com 49 anos de contribuição para garantia de
aposentadoria integral.
Se adotada a sistemática de idade mínima para a aposentadoria,
combinada com tempo mínimo de contribuição, o raciocínio mais elementar,
informado pelos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana,
solidariedade, justiça social e bem-estar (arts. 1o, incisos
III e IV; 3o, incisos I, III e IV; 6o, 7o,
193, 194, 195), parece apontar para a necessidade de fixação de parâmetros
distintos, considerando as várias realidades socioeconômicas dos trabalhadores
num país continental e profundamente complexo. Um só piso etário para a
aposentadoria, excessivamente elevado para a maioria dos trabalhadores, em
função das condições laborais efetivamente experimentadas, consagrará uma das
mais escancaradas injustiças sociais já vistas neste país.
Destaque-se que a proposta de “Reforma da Previdência” ainda
contempla uma definição adicional voltada para o agravamento da regra de idade
mínima de 65 anos. Esse limite será majorado sempre que verificado o incremento
mínimo de um ano na média nacional única correspondente à expectativa de
sobrevida da população brasileira.
A regra de transição para a aposentadoria dos servidores públicos
federais, estaduais, distritais e municipais envolve dois pecados capitais. Ao
fixar um parâmetro de idade a ser aferido na data de eventual promulgação da
emenda resultante da PEC n. 287/2016, viabiliza tratamentos radicalmente
distintos em função de dias, semanas ou meses de diferenças de idade. Um
exemplo simples é bem ilustrativo. Aquele servidor que completar cinquenta anos
no dia, na semana ou no mês anterior à data de promulgação da emenda usufruirá
de uma regra de transição. Por outro lado, o servidor que integralizar
cinquenta anos no dia, na semana ou no mês seguinte à data de promulgação da
emenda não contará com regra de transição. O mesmo exemplo vale para as
servidoras com o parâmetro de idade na casa dos quarenta e cinco anos. Ademais,
a exigência de um período adicional de contribuição equivalente a 50%
(cinquenta por cento) do tempo que, na data de promulgação, faltaria para
atingir o nível mínimo de contribuição é bastante draconiana. Essa percepção já
começa a ganhar corpo no Congresso Nacional. São várias as fórmulas cogitadas
para flexibilizar essa duríssima regra de transição (http://istoe.com.br/regra-de- transicao-na-previdencia-pode- ser-escalonada).
As mudanças propostas para o benefício de prestação continuada,
conhecido pela sigla BPC, são irrazoáveis e visceralmente desumanas. Custa crer
que algo tão monstruoso tenha sido urdido nos laboratórios governamentais
confortavelmente refrigerados e encaminhado de forma protocolar ao Congresso
Nacional.
O BPC está previsto no art. 203, inciso V, da Constituição. O
constituinte originário fixou: “a garantia de um salário mínimo de benefício
mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir
meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família,
conforme dispuser a lei”. Tal
benefício está voltado para uma contingente extremamente vulnerável da
sociedade brasileira de quase 5 milhões de pessoas.
A PEC 287/2016 eleva a idade mínima para percepção do BPC. Os
atuais 65 anos, previstos no art. 20 da Lei n. 8.742, de 1993, são substituídos
pelo patamar de 70 anos com possibilidade de incremento em razão do aumento da
expectativa de sobrevida da população. Os efeitos dessa mudança, se vingar,
são, no mínimo, perversos. Com efeito, aproximadamente 90% (noventa por cento)
dos benefícios dessa natureza começam a ser usufruídos antes de completados os
70 anos de idade. A idade média de concessão, em 2014, foi de 66,5 anos e a
duração da percepção, em média, de 7,9 anos (Dados
colhidos em: http:// plataformapoliticasocial.com. br/wp-content/uploads/2017/02/ Previdencia_Doc_Sintese.pdf).
Assim, o governo de plantão busca realizar uma residual economia de recursos penalizando um
dos segmentos mais sofridos da sociedade brasileira.
Como fecho desse breve escrito, deve ser destacado que a Seguridade
Social não pode ser tratada de forma isolada. É crucial inserir esse conjunto
de atividades absolutamente fundamentais para a realização da justiça social e
o bem-estar da população no panorama mais amplo da realidade brasileira. São
profundas e inafastáveis as relações entre a Previdência Social e: a) os
gravíssimos problemas de segurança pública; b) a violência no trânsito; c) as
condições de trabalho que resultam em acidentes, invalidez e afastamentos por
doença; d) a precariedade do sistema de saúde; e) o sistema educacional (como
fator de prevenção de ocorrências gravosas); f) as crônicas deficiências em
políticas públicas, notadamente no campo do transporte coletivo, esporte,
cultura e lazer e g) a efetiva adoção de políticas econômicas promotoras do
desenvolvimento nacional, da erradicação da pobreza e do fim da marginalização
social.
*Aldemario Araujo Castro, Advogado, Mestre em Direito, Procurador da Fazenda Nacional, Professor da Universidade Católica de Brasília
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