Por Aldemario Araujo Castro*

A
Constituição brasileira de 1988, uma das mais avançadas do mundo, festejada
como exemplo de uma carta política comprometida com profundas transformações
sociais, estabelece que são objetivos da República Federativa do Brasil: a)
construir uma sociedade livre, justa e solidária; b) garantir o desenvolvimento
nacional; c) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais e d) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3o).
Esses fins devem ser buscados, inclusive na formulação de políticas públicas,
sob importantes fundamentos, entre eles: a) a dignidade da pessoa humana e b)
os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1o).
“A
Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (22) por 231 votos a favor, 188
contra e 8 abstenções o texto-base do projeto de lei que autoriza o trabalho
terceirizado de forma irrestrita para qualquer tipo de atividade./Os principais
pontos do projeto são os seguintes: - A terceirização poderá ser aplicada a
qualquer atividade da empresa. Por exemplo: uma escola poderá terceirizar
faxineiros (atividade-meio) e professores (atividade-fim). - A empresa
terceirizada será responsável por contratar, remunerar e dirigir os
trabalhadores. - A empresa contratante deverá garantir segurança, higiene e
salubridade dos trabalhadores terceirizados. - O tempo de duração do trabalho
temporário passa de até três meses para até 180 dias, consecutivos ou não. -
Após o término do contrato, o trabalhador temporário só poderá prestar
novamente o mesmo tipo de serviço à empresa após esperar três meses” (https://goo.gl/1ficpE)
(https://goo.gl/6pfLEn).
A
aprovação do “PL da terceirização” provocou, como era de se esperar, fortes
reações contrárias. As manifestações favoráveis também foram numerosas e
enérgicas. Importa, pois, identificar se o projeto aprovado está alinhado com
os objetivos constitucionais de redução de desigualdades sociais ou, ao revés,
milita no sentido agravar as condições socioeconômicas de dezenas de milhões de
trabalhadores.
Para
chegar, de forma minimamente racional, a um dos dois resultados acima cogitados
vamos realizar um simples exercício mental. Imaginemos um empresário que
pretende constituir uma empresa de transporte de bens móveis. Para tanto, entre
providências de várias ordens, o dono do negócio precisa dispor da força de
trabalho de 30 (trinta) motoristas.
O
caminho natural ou tradicional a ser trilhado consiste na contratação direta,
mediante vínculos jurídicos regidos pela legislação trabalhista, desses 30
(trinta) trabalhadores. Vamos supor que o custo mensal de cada empregado,
considerando o salário e encargos de diversas naturezas, atinja o patamar de 3
(três) mil reais.
A
terceirização coloca uma alternativa de contratação de mão-de-obra para o
referido empresário da área de transportes. A solução seria fazer um ajuste com
uma “empresa prestadora de serviços a terceiros”, como tratada no projeto de
lei aprovado pela Câmara dos Deputados. Trata-se de uma “pessoa jurídica de
direito privado destinada a prestar à contratante serviços determinados e
específicos”. Em outras palavras, essa empresa fornecerá mão-de-obra para a
contratante.
Ocorre
que só faz sentido a alternativa da terceirização, em relação à contratação
direta dos trabalhadores, se o custo dessa contratação for menor. Se, por
hipótese, a contratação direta envolve um custo de 3 (três) mil reais por
trabalhador, a alternativa via terceirização precisa apontar para um custo por
trabalhador inferior ao patamar mencionado.
A
empresa de terceirização, fornecedora de mão-de-obra, somente poderá oferecer
um custo inferior por trabalhador se praticar um salário menor, bem menor, do
que aquele que seria pago na contratação direta pela empresa de transporte.
Graficamente, teríamos algo assim:
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Percebe-se,
com facilidade, a fixação de uma tendência de longo prazo na economia voltada
para a redução da massa salarial. Trata-se de uma engenhosa fórmula de redução
do peso dos salários no conjunto da atividade econômica e a apropriação da
diferença resultante, ao menos em parte, como capital.
Obviamente,
não existe a pura e simples supressão de direitos trabalhistas no âmbito dessa
experiência de terceirização. O que ocorrerá, ao longo do tempo, é a já
referida redução do estoque de salários no conjunto da economia e a clara
precarização das relações de trabalho. Essa precarização decorre, além da
diminuição das remunerações, da degradação das condições de trabalho conduzida
por um tipo de empresa com altos índices de rotatividade e de encerramento irregular
de atividades (deixando pendências trabalhistas consideráveis).
O
aumento da “pejotização” é outra clara consequência da aprovação do “PL da
terceirização”. Esse termo aparece na jurisprudência especializada para
designar a contratação de serviços pessoais, exercidos por pessoas físicas com
subordinação, continuidade e onerosidade, mas realizada por meio de pessoa
jurídica constituída especialmente para essa finalidade. Assim, são disfarçadas
ilicitamente as efetivas relações de emprego e os direitos trabalhistas
literalmente desaparecem. Embora não autorize diretamente a “pejotização”, o
projeto aprovado cria um ambiente nitidamente favorável a adoção de todos os
expedientes, lícitos e ilícitos, voltados para redução de direitos trabalhistas
e encargos sociais.
Outra
possível consequência do projeto aprovado poderá ser sentida a médio e longo
prazos. Com efeito, os índices de encerramento irregular de atividades por
parte de empresas terceirizadoras (a “empresa prestadora de serviços a
terceiros”) são altíssimos. Perseguindo uma redução imediata de custos
(salários e encargos), os empresários podem perder de vista os consideráveis
riscos de “pagamento dobrado” por intermédio da responsabilidade subsidiária
expressamente consagrada no projeto aprovado (“A empresa contratante é
subsidiariamente responsável pelas obrigações trabalhistas referentes ao
período em que ocorrer a prestação de serviços, e o recolhimento das
contribuições previdenciárias observará o disposto no art. 31 da Lei nº 8.212,
de 24 de julho de 1991”).
Eventualmente,
existirá um ou outro aspecto positivo e secundário com a terceirização
relacionado com a especialização ou aproveitamento mais intenso de certas
funções laborais. No cômputo geral, os malefícios da terceirização são
evidentemente bem mais relevantes que algumas vantagens pontuais.
A
repentina aprovação do “PL da terceirização” não é um fato isolado. Trata-se de
mais um capítulo da novela de terror encenada pelo governo
Temer-Meirelles-Padilha contra os mais lídimos interesses da grande maioria da
população brasileira, notadamente os trabalhadores. Recentemente, tivemos a
aprovação da Emenda Constitucional n. 95, de 2016 (“Novo Regime Fiscal”). Essa
medida representa o instrumento mais forte de arrocho fiscal contra as despesas
de cunho social jamais visto na história brasileira (https://goo.gl/au2ZeS).
Outra clara demonstração de desprezo pelos segmentos mais sofridos da população
brasileira está muito bem representado numa “Reforma da Previdência”
profundamente injusta e draconiana (https://goo.gl/MXI94k).
Curiosamente,
todos esses movimentos são realizados em nome da construção da confiança do
“investidor”, notadamente estrangeiro. O surrealismo do discurso oficial é
evidente. A “fada da confiança”, movida por fortes demonstrações de austeridade
na gestão das contas públicas, “tocará” os corações dos “investidores” em
direção ao crescimento econômico !?!?!? A construção de uma sociedade justa e
solidária, baseada numa rede crescente de direitos sociais, como expressamente
previsto na Constituição (arts. 7O, 193 e 194, entre outros),
é solenemente ignorada, inclusive pelo “constitucionalista” instalado no
Palácio do Planalto.
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*Aldemario Araujo Castro é Advogado, Mestre em Direito, Procurador da Fazenda Nacional, Professor da Universidade Católica de Brasília