Segunda, 19 de maio de 2014
A partir deste final de semana o Psol de São Paulo está passando por um período de turbulência depois do seu Diretório "rechaçar" a candidatura a governador de Vladimir Safatle, que vinha construindo com movimentos sociais de vanguarda uma alternativa para os eleitores daquele estado. Leia a seguir a carta de Safatle, militante que levou uma rasteira burocrática da corrente majoritária do Psol paulista.
Aos militantes do PSOL
Eu gostaria de aproveitar esta
espaço para falar aos militantes do PSOL, este conjunto impressionante de
sujeitos conscientes de seu lugar na história de transformação pela qual nosso
país passará. Gostaria de falar com vocês com a segurança de quem sabe que
lutamos pelos mesmos desejos, que nos indignamos da mesma forma e com as mesmas
intensidades. Queremos as mesmas coisas e, certamente, estaremos juntos por
muito tempo. Tudo está apenas começando.
Sei que muitos de
vocês se entusiasmaram com a possibilidade de minha candidatura a governador em
São Paulo e se decepcionaram, alguns amargamente, quando leram uma “nota
interna” da executiva estadual anunciando minha pretensa renúncia. Certamente,
os motivos lhe pareceram ainda mais decepcionantes. Mais sei que muitos são
conscientes de como uma história só mostra seu verdadeiro sentido quando
juntamos todos os seus lados. E há um lado faltante que gostaria de acrescentar
a essa história. Por isto, àqueles que fizeram um juízo sobre o que ocorreu,
peço que o suspendam momentaneamente. A história é diferente daquela que
circulou nos últimos dias e só não me manifestei imediatamente porque esperava
que ela se resolvesse de outra forma.
Há alguns setores da
esquerda que, em momentos de crise, preferem ressuscitar velhos personagens de
romance político ruim, como o traidor, o egocêntrico que não se sacrifica como
os outros, o infiltrado, o entusiasta ingênuo, entre tantos outros que vocês já
viram mais de uma vez. Melhor seria compreender tais crises como exposição de
problemas estruturais que precisam ser abordados de frente caso queiramos
alcançar nossos objetivos de transformação social.
Fui
convidado a candidatar-me pelo partido no segundo semestre do ano passado.
Depois das manifestações de junho, eu e o partido estávamos de acordo da
necessidade de uma intervenção no debate eleitoral brasileiro tendo em vista a
defesa de uma pauta renovada de esquerda. Havia uma convergência a respeito da
importância de dar tradução programática ao profundo descontentamento social no
qual o Brasil entrou, principalmente desde 2013. Desde o momento que entrei no
PSOL, em outubro do ano passado (e esta era a primeira vez na vida que entrava
em um partido, o que demonstra a seriedade do ato e de minha implicação
subjetiva), usei o tempo para construir seminários sobre desafios de governo,
levar as ideias do partido à frente, participar de inúmeras atividades
partidárias, avaliar a pertinência da candidatura a partir da conjuntura e
conservar espaços na imprensa que me pareciam fundamentais para o debate que
gostaríamos de fazer. A ideia de deixar a decisão para abril era a mais
plausível. Vinte e quatro horas depois de me filiar ao PSOL fui mandado embora
da TV Cultura. Temia que a aceitação prematura da candidatura fechasse ainda
mais portas que usava para divulgar nossas posições na grande imprensa. Usei
este tempo também para refletir sobre o significado de uma candidatura, sobre o
que seria possível fazer e se, de fato, esta era a melhor escolha de atuação
política.
A partir de meados
de abril, começamos a discutir questões práticas como política de alianças e
infraestrutura para a campanha. Desde o início eu insistira na importância de
uma política ampla de alianças à esquerda. Engajei-me pessoalmente em discutir
com partidos como PSTU e militantes da Rede nestes últimos meses. Conversei
várias vezes com suas lideranças. As negociações com o PSTU prosperaram, o
interesse em constituir uma frente de esquerda era claro. Para mim, a
constituição de uma frente era condição fundamental para impor uma dinâmica
sólida de mobilização na campanha e para inaugurar uma outra forma de fazer
política que não fossem refém de interesses partidários imediatos. Por isto,
insisti que seria melhor definirmos inicialmente a frente antes de lançarmos a
candidatura. Sabia da resistência de certos setores do partido à ideia, mas não
via como concebível recuar nas alianças se o próprio PSTU lançara um manifesto,
o qual assinei, pedindo a constituição da frente.
Noto ainda que esta
posição se referia apenas à situação em São Paulo. Nunca interferi ou sugeri o
que deveria ser feito em outros estados, e seria delirante acreditar que
falaria algo a respeito. Enxergava que uma frente de esquerda nacional seria a
melhor resposta para a situação política atual. Continuo pensando que nada será
feito neste país sem uma política efetiva de frente que supere a fragmentação
fratricida e entediante à qual a esquerda parece querer sempre retornar.
Ninguém precisa de uma política especular, na qual procuramos apenas espelhos
de nós mesmos. Podemos atuar politicamente compondo com nossas dissonâncias.
Sei que muitos de vocês também acreditam neste pensamento.
No
entanto, ao discutirmos a infraestrutura descobri o ponto mais frágil. A “nota
interna” emitida pela executiva estadual a respeito de minha pretensa renúncia
à candidatura expõe tal questão como se tratasse praticamente de um delírio
megalomaníaco de minha parte. Ela passa a imagem de que o partido chegara a
exaustão de suas possibilidades e de que eu fora completamente insensível a
isto. Tal visão é simplesmente falsa.
Primeiro,
a minha última palavra não foi de renúncia, mas de aceitar a oficializar a
candidatura a partir do momento que o partido conseguisse assegurar condições
mínimas para o embate. Foi o partido que entendeu não haver mais tempo e que
melhor seria escolher outro nome. Ninguém faria diferente se, como eu, tivesse
descoberto, pela primeira vez apenas em abril, não haver nada em caixa para a
campanha e que apenas a televisão e o material gráfico estariam assegurados.
Durante meses ninguém me alertara para isto, expondo a real situação apenas na
reta final. Eu amo demais as ideias políticas para deixá-las naufragar por
falta de planejamento estratégico mínimo.
Nós
gostamos de dizer, como ouvimos pela primeira vez nos movimentos Occupy, que
representamos “os outros 99%”. Mas para tanto não é possível, ao menos em São
Paulo, continuar tendo 1% dos votos. Este 1% não nos representa e não temos o
direito de nos acomodar a ele. Durante várias vezes que discuti a
infra-estrutura para a campanha, ouvi que 2% de votos estaria bom. Não penso
assim, acho este raciocínio completamente equivocado e se pensasse desta forma,
não teria aceito entrar no debate em torno da candidatura. Queria saber a quem
interessa que nosso partido continue pequeno. Pensar assim é abrir o caminho
para a desqualificação de nossas ideias, dar a impressão de que elas não falam
com quase ninguém. Por isto, é verdade, agi como quem queria impedir o partido
se acomodar ao seu tamanho. Continuo acreditando que estava certo e espero que
outros também o façam.
No
entanto, creio que, no fundo, a candidatura para o governo não era uma
prioridade do partido. Senão seria difícil explicar porque o diretório estadual
nunca foi atrás de possíveis doadores que indiquei há semanas e porque ele
nunca aceitou discutir com membros da frente, como o PSTU, que estavam
claramente dispostos a contribuir financeiramente de maneira substancial para a
viabilidade financeira da campanha. Durante quase um mês, nada foi feito para
melhorar a situação de nossa infra-estrutura, mesmo depois que pedi um cuidado
especial com isto. Só quando disse não aceitar a candidatura nessas condições
que algo foi efetivamente feito. Sei que o diretório é composto de pessoas
extremamente dedicadas e engajadas, muitas das quais tenho real admiração, mas
creio que (e creio que em certos momentos devemos falar com amigos de maneira
clara), por várias razões, ouve uma falta de sensibilidade à importância deste problema.
O
que foi exigido por mim nos permitiria fazer o mínimo: organizar atividades,
contratar uma pequena equipe de pessoas que eu poderia trazer para a campanha,
acrescentando-a às forças do partido para auxiliar no planejamento da campanha,
na comunicação, assessoria jurídica (pois fora alertado por amigos em outras
campanhas que os processos se
avolumariam), assessoria de imprensa e na inteligência (montagem de dossiers
temáticos, checagem de dados, pesquisa sobre problemas). Eu sabia que essa campanha
seria particularmente violenta, pois se a candidatura crescesse, partidos como
o PT se voltariam de maneira maciça contra nós. Eu tinha informações de não ser
para eles pensável permitir que uma alternativa de esquerda demonstre densidade
eleitoral em São Paulo. O que queria era ter o mínimo de condições para
suportar o processo com o mínimo de planejamento de longo prazo sem obrigar as
pessoas envolvida e se submeterem a trabalho voluntários. Só.
Mas
os últimos dias foram a prova de que eu estava correto. Enquanto a executiva
estadual tornou pública uma “nota interna” que colocava toda a responsabilidade
do processo em minhas costas, eu mesmo ia atrás de recursos. Eu e outros
membros do PSOL conversamos com contatos que eu havia passado ao partido e que
nunca foram procurados, assim como conversamos com o PSTU que se dispôs, de
imediato, a contribuir com quase um terço do necessário caso fosse chamado para
uma reunião, que ao final nunca houve, a fim de discutir a viabilidade
financeira da campanha eleitoral. Ao final, havíamos conseguido metade do que
precisávamos. Esperava ter a oportunidade de sentar com as inúmeras alas do
partido e, com isto, procurar destravar a situação. Destravá-la é sempre
possível.
No
entanto, na última sexta descobri que, enfim o diretório estadual havia entrado
em contato com pessoas, que eu mesmo indiquei há semanas, dispostas a ajudar
financeiramente. Havia apenas um detalhe: eles entraram em contato para pedir
auxílio a outro candidato a governador. Se as possibilidades do partido haviam
chegado a exaustão, então porque só depois que minha candidatura foi descartada
membros do diretório estadual procuraram ir atrás de doadores que eu mesmo
indicara? Qual o sentido de uma atitude desta natureza?
Como
disse desde o começo, entrei no partido para ficar. Creio que esta é a melhor
alternativa para construirmos uma nova esquerda no Brasil e deslocarmos o eixo
do debate político. Eu aceitei colocar meu nome na disputa como uma
“intervenção cidadã”. Não tenho interesse em constituir uma carreira política,
sou um professor que gosta do que faz. Mas acredito que há momentos nos quais
devemos entrar no debate público a fim de abrir portas para que outros possam
passar por elas. Este, de fato, era meu objetivo. Por isto, não funciona comigo
o cálculo das ações eleitorais que se acumulam. Isto faz sentido para quem quer
construir uma carreira política. Meu objetivo era simplesmente ter as condições
básicas para fazer uma boa campanha capaz de mostrar a densidade eleitoral que
a esquerda pode ter. Sei que isto é possível e que por conta de esforços
pessoais e de dirigentes e militantes do partido estivemos a um passo de
concretizar essas condições básicas.
Como disse anteriormente, minha última palavra não foi a renúncia à
candidatura.
Apesar das
dificuldades dessa experiência, sei que muitos problemas nela ocorreram por
mal-entendidos e dificuldades que serão superadas com o tempo. Todos nos PSOL
lutam pelas mesmas coisas, talvez apenas de forma diferente, obedecendo a
tempos e dinâmicas distintos. Se desencontros são tão frequentes em
experiências afetivas, o que dirá dentro de um partido no qual as pessoas se
vinculam com o coração, empenhando seus desejos mais fortes. A história da
esquerda é cheia de divisões e, no que depender de mim, esta não será uma parte
de tal história. De toda forma, o mais importante de tudo foi ter a
oportunidade de me aproximar da militância e conhecer seus desejos, descobrir a
riqueza de seu engajamento e compromisso. Este é o grupo do qual quero fazer parte.
Como disse no início, tudo está apenas começando.
Vladimir Safatle