Sexta, 15 de julho de 2016
Por
Clóvis Gruner*
Clóvis Gruner*
No dia 26 de janeiro deste ano, Miguel Nagib, advogado, fundador,
presidente e um dos principais ideólogos da organização “Escola sem
partido”, entrou com representação na Procuradoria Geral da República do
DF contra o presidente do INEP por “crime de abuso de autoridade e ato
de improbidade administrativa”. O motivo declarado foram as ilegalidades
contidas no edital do ENEM/2015, mais especificamente nas regras da
redação, cujo ponto foi a violência contra a mulher. Hábil, Nagib optou
pela dissimulação: ao longo das pouco mais de 12 páginas da peça
jurídica, dirigiu sua argumentação contra a afirmação do presidente do
INEP de que seria atribuída nota zero à redação que desrespeitasse os
direitos humanos, segundo o ideólogo, um “crime de abuso da autoridade,
previsto na Lei 4.898/65”. Nenhuma menção direta à redação e seu tema.
Na página da ESP, a notícia de que o Ministério Público determinou o
arquivamento da representação vem ilustrada com a imagem icônica de
representação da censura: visivelmente à força, mãos silenciam uma boca
que não pode falar e impedem, também violentamente, os olhos de ver. A
mensagem não podia ser mais clara: de acordo com a ideologia da ESP, o
respeito aos direitos humanos – no caso específico, o repúdio à
violência de gênero – é um ato de cerceamento à “liberdade de
consciência e de crença”, que obrigou candidatos a vagas nas
universidades a “dizerem o que não pensam”, como por exemplo – e é
lícito supor –, que a violência contra a mulher é aceitável.
Há inúmeros exemplos como esse no site da entidade, cujo propósito é
lutar contra o que chama de “doutrinação ideológica” em curso nas
escolas brasileiras. Entre as medidas sugeridas, além da ideologia e da
linguagem policialesca que pressupõe ser todo professor um criminoso
potencial, a organização oferece um modelo de Projeto de Lei a ser
reproduzido sem muito esforço – na verdade, sem esforço algum – por
qualquer legislador Brasil afora, bastando inserir ao texto original
data e lugar. É este molde padrão que o deputado federal Izalci Lucas
(PSDB/DF) usou para apresentar no Congresso Nacional o PL 867/2015, que
pretende incluir o “Programa Escola sem Partido” como parte das
diretrizes e bases da educação.
Hoje, projetos de lei que visam banir do ensino a “doutrinação
ideológica” e instituir uma “escola sem partido” seguem em andamento em
sete estados (RJ, GO, SP, ES, CE, RS, PA) e no DF. Em um, Alagoas, ele
já foi aprovado pela Assembléia Legislativa. A inconsistência do projeto
aparece já na argumentação que o justifica: o objetivo é “garantir a
neutralidade política, religiosa e ideológica” e, ao mesmo tempo, “a
pluralidade de ideias”. Bom, ou bem se é neutro, ou bem se é plural: ser
ao mesmo tempo duas coisas antagônicas e excludentes é bastante
difícil. Mas a contradição não é o único nem o maior problema do projeto
e da escola que ele pretende parir.
Pouco se fala da enorme coincidência entre a criação da ESP e uma
verdadeira batalha travada em torno ao negócio de livros didáticos, em
meados da década passada. Mas ela é uma das peças fundamentais para se
entender a visibilidade adquirida pela entidade e seus ideólogos nos
últimos anos, e que surge na esteira do interesse de grandes editoras,
como a nativa Abril e a espanhola Santillana, em abocanhar uma fatia de
um mercado altamente lucrativo, responsável por aproximadamente 50% do
faturamento da indústria editorial brasileira. Lucro, aliás, em parte
garantido graças aos vultosos investimentos públicos: iniciativas como o
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e o Programa Nacional
Biblioteca da Escola (PNBE), respondem por cerca de 25% das receitas do
setor.
Como é comum em nosso singular liberalismo, também o mercado de
livros didáticos se configurou, principalmente nas últimas duas décadas,
excessivamente dependente do Estado, além de monopolizado por grandes
grupos econômicos. Entre outros meios de pressão cujo objetivo era tirar
do mercado as pequenas editoras, tais grupos passaram a se valer das
mídias a eles associadas para questionar a qualidade dos livros
didáticos e, em seguida, a co-participação dos governos no financiamento
de material “ideológico” e “doutrinário”. Não sei se fruto ou não de
uma ação coordenada, mas a criação da ESP, em 2004, amplia esse debate,
ao mesmo tempo em que desloca o foco dos interesses mercadológicos e
econômicos para uma iniciativa de caráter civil e autônoma de
“estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação
político-ideológica das escolas brasileiras”. Nada mais enganoso.
Intolerância e autoritarismo – A principal estratégia da ESP é
apostar na ignorância não apenas intelectual de seu público – a
esmagadora maioria dos que denunciam a “doutrinação ideológica” ou
vociferam contra Paulo Freire não fazem a mais pálida ideia do que dizem
–, mas também empírica. Não há, da parte dos seus ideólogos, a
preocupação em mostrar dados estatísticos que suportem afirmações como
“um exército organizado de militantes travestidos de professores
prevalece-se da liberdade de cátedra (…) para impingir-lhes [aos alunos]
a sua própria visão de mundo”; ou “a imensa maioria dos educadores e
das autoridades, quando não promove ou apoia a doutrinação”; ou ainda
que “a instrumentalização do ensino para fins políticos, ideológicos e
partidários” é um “problema gravíssimo que atinge a imensa maioria das
escolas e universidades brasileiras”.
Não há informações precisas porque elas não são necessárias. Trata-se
de criar um clima de paranoia generalizada e, nesse caso, quanto mais
genérica a afirmação, mais eficiente ela é – o caso mais recente foi o
da professora de Sociologia uma escola pública de Curitiba, acusada de
“doutrinação” e afastada da escola após publicar um vídeo em que seus
alunos fazem uma paródia da música “Baile de favela” com conceitos
marxistas. E se já é duvidoso apresentar o excepcional como normal,
tática amplamente utilizada, a ESP vai mais longe.
As “provas” de que estamos diante de “um exército organizado de
militantes travestidos de professores” a deturpar seus alunos são sempre
fragmentárias: um recorte de revista utilizada em uma aula; uma ementa,
unidade ou tópico de um programa disciplinar; o depoimento de um ou uma
estudante que se sentiu prejudicado. Não há contexto, nem verificação,
nem acompanhamento, tampouco diálogo. Nada. A ESP não é apenas
desonesta, mas perversa: ela fabrica a exceção que tratará, em seguida,
de apresentar como regra; regra que servirá de prova a justificar e
sustentar seu empreendimento policialesco, moralizante e ideológico.
A sustentar essa prática desonesta e policialesca, está o temor,
alimentado especialmente entre grupos e indivíduos religiosos e
conservadores, de que a escola desvie seus alunos das condutas e
educação familiares. De acordo com essa argumentação, pais e mães tem o
direito de exigir que professores e professoras não ensinem aos seus
filhos e filhas nada que contrarie seus próprios valores. Mas eles não
tem. Pais e mães tem o direito de exigir o acesso universal à sala de
aula e de que a educação seja, de fato, um direito de todos e todas, por
exemplo. Pais, mães tem o direito de reivindicar e exigir escolas
equipadas e habitáveis; profissionais (professores, pedagogos, técnicos,
pessoal administrativo e de apoio) valorizados e bem pagos; uniforme,
material escolar e merenda garantidos pelos governos; esportes e
atividades culturais; escolas em período integral e abertas à comunidade
nos finais de semana, etc…
Mas não, pais e mães não tem o direito de exigir que a sala de aula
seja uma extensão do espaço doméstico e por uma razão, entre outras. As
escolas, mesmo as privadas, são parte da esfera pública, e seu papel,
além de apresentar o aluno ao chamado saber formal, é ampliar o
conhecimento e a compreensão que ele tem do mundo, complexificar e não
simplificar a sua existência. O convívio no espaço público favorece e
estimula a interação e a sociabilidade com indivíduos, grupos, valores e
crenças que não os familiares, e isso é fundamental para o
amadurecimento ético, o desenvolvimento intelectual e a um exercício
mais pleno, livre e crítico da cidadania.
Não é casual que nenhuma das exigências elencadas acima está na pauta
da ESP. À entidade, seus ideólogos e defensores, a precarização da
escola e do ensino nunca foi um problema a ser denunciado e combatido,
mas a ampliação dos direitos, liberdades e igualdade civis. Eles temem
uma sociedade mais plural e sensível às diferenças e a diversidade,
sejam elas étnicas, religiosas, de classe ou gênero, e sabem que uma
escola e uma educação de qualidade são condições imprescindíveis para a
construirmos. Por isso eles, a Escola sem Partido, seus ideólogos e
defensores, querem uma escola precarizada, sucateada, abandonada e
“neutra”. A ideologia por trás desse discurso é perversa, autoritária e
violenta. A quem preza e deseja a democracia e a liberdade, resta
resistir a ela.
* Clóvis Gruner é historiador e professor na Universidade Federal do Paraná
(da Revista Forum)