Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 11 de julho de 2020

A centenária cultura brasileira de levar vantagem contra tudo e contra todos

Sábado, 11 de julho de 2020
Por
Aldemario Araujo Castro

Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 11 de julho de 2020

Relatório do TCU mostra que 620 mil pessoas receberam auxílio emergencial sem ter direito. Documento obtido com exclusividade pelo programa Fantástico mostra que entre os beneficiários estão empresários, parentes de políticos e até pessoas que já morreram./Um levantamento obtido com exclusividade pelo programa Fantástico, da TV Globo, mostra que 620 mil pessoas, inclusive mortos, receberam o auxílio emergencial do governo federal sem ter direito./Segundo o primeiro relatório de acompanhamento de dados, relacionados às ações de combate à Covid-19, feito pelo Tribunal de Contas da União, caso esses pagamentos indevidos não sejam interrompidos, podem gerar um prejuízo de mais R$ 1 bilhão aos cofres públicos./O benefício é destinado apenas para quem está enfrentando dificuldades financeiras durante a pandemia, mas o relatório mostra que até milionários receberam” (Site G1).

“O governo anunciou que excluiu do auxílio emergencial 565 mil pessoas. Na lista estão presos e brasileiros que moram no exterior. O grupo de quem recebeu indevidamente tem quase 400 mil funcionários públicos./A Controladoria-Geral da União descobriu as fraudes cruzando dados do governo federal com os Tribunais de Contas dos estados e identificou que 395 mil servidores públicos em todo o Brasil receberam indevidamente uma ou até duas parcelas do auxílio emergencial, benefício que só deveria ser pago a microempreendedores, autônomos, desempregados ou trabalhadores informais que tiveram a renda comprometida por causa da pandemia” (Site G1).

Essas notícias, veiculadas respectivamente nos dias 28 de junho e 7 de julho de 2020, estarreceu a grande maioria dos brasileiros. Elas demonstram como a falta de ética (especificamente, a cultura de “levar vantagem”), o patrimonialismo e uma forte inclinação pelas fraudes, corrupções e malversações da coisa pública são disseminadas para muito além do mundo da política profissional.

A cultura de levar vantagem contra tudo e contra todos, em que a corrupção em sentido estrito constitui seu ápice, é um dos principais problemas na atual quadra histórica da nação brasileira. Nesse sentido, apontam passeatas, correntes na internet, blogs, sites, atuação de várias instituições de controle e do Judiciário e uma intensa movimentação nas redes sociais mais concorridas.

De todos, creio que o mais relevante dos problemas brasileiros consiste na apropriação profundamente desigual da riqueza produzida, viabilizada por um conjunto de mecanismos políticos, sociais e econômicos cuidadosamente construídos e mantidos pelas elites dirigentes dos espaços político e econômico. A desigualdade socioeconômica no Brasil atinge níveis surreais. Temos por aqui um “belo” exemplo de capitalismo selvagem.

Cumpre observar que as passeatas, correntes na internet e outras iniciativas nessa linha são providências necessárias, mas insuficientes, no longo e penoso processo de combate à corrupção. São necessárias porque mantêm o assunto na “ordem do dia” e definem o campo social (quero crer majoritário) contra a corrupção e as malversações. São insuficientes porque não atacam as condições objetivas viabilizadoras dos atos concretos de corrupção que chegam (minoria), e que não chegam (imensa maioria), ao noticiário da grande imprensa.

Ademais, não é possível alimentar a ilusão de que o combate à corrupção se constitui numa cruzada ética contra os degenerados morais para convertê-los para o lado bom da “Força” ou serem literalmente jogados nos porões das piores prisões existentes em território nacional. Trata-se de desenvolver uma ação planejada, organizada, enérgica e permanente dos cidadãos e das organizações sociais comprometidas com práticas sociais sadias e de respeito à coisa pública. Somente essa ação firme dos não-corruptos poderá reduzir e praticamente eliminar, numa perspectiva de longo prazo, o campo de atuação dos corruptos.

Não se pode perder de vista, também, que o combate à corrupção envolve um sério (seriíssimo, melhor dizendo) enfrentamento à tolerância histórica com essa prática e outros procedimentos similares. Está enraizada na formação da sociedade brasileira e na própria construção do Estado a ideia de que o “esperto”, aquele que leva todo tipo de vantagem (lícita e ilícita, em espaços públicos e privados), é merecedor de todos os elogios e é sinônimo de sucesso. Vigora, de forma ampla, a hipocrisia de que “os outros” são corruptos, “os meus” são “espertos”, “competentes”, “desenrolados”, “jeitosos”, “maleáveis”, “flexíveis”, “compreensivos”, “habilidosos” ou coisa que o valha. Até o conhecido “jeitinho brasileiro”, em inúmeros casos e situações, descamba para justificar as mazelas mais condenáveis no cotidiano da sociedade.

Exemplifico, nessa linha, um conjunto de condutas, “socialmente aceitas”, que merecem profunda reflexão justamente em função dessa “aceitação”: a) “colar” em provas; b) transcrever textos acadêmicos sem declinar a autoria; c) viajar em transportes urbanos sem pagar; d) estacionar em fila dupla; e) dirigir sob a influência de bebidas alcoólicas; f) fabricar atestados médicos; g) modificar dados em documentos; h) “capturar” o sinal da tv a cabo; i) criar e alimentar várias modalidades de “gatos”; j) jogar (ou mais propriamente, arremessar) toda espécie de lixo nas vias públicas; k) “encomendar” a elaboração de trabalhos acadêmicos; l) responder chamadas escolares por colegas; m) tentar subornar autoridades de trânsito e n) embolsar o troco em excesso. Esses e outros comportamentos criam um ambiente propício ao desenvolvimento de praticamente tudo que não presta nos vários níveis de atuação social.

Lembro de um episódio emblemático relatado pelo professor Audemaro Araujo Silva, quando trabalhou na Prefeitura Municipal de Maceió e participou de grupo de trabalho voltado para identificar irregularidades na folha de pagamento da municipalidade. Uma pérola foi constatada. Em certo órgão público municipal, vários funcionários recebiam 1/3 de férias por meses a fio. Ademais, o cálculo do terço de uma remuneração de mil reais passava de quinhentos reais. Houve uma considerável reação contra o fim da “vantagem”. Afirmava-se, nos corredores do órgão público em questão, com ênfase, convicção e indignação: "Se o presidente, governador, prefeito, roubam (e muito!), então roubemos todos. Para quem vai ficar a nossa parte?".

Alinho algumas ideias e propostas, a serem implementadas pelos não-corruptos, para subtrair o oxigênio da corrupção. Em outras palavras, são algumas importantes providências com um considerável potencial de evitar ou reduzir os atos concretos de malversação na seara do Poder Público. São elas: a) redução drástica dos cargos comissionados (de livre nomeação) na Administração Pública e adoção de processos seletivos para os preenchimentos; b) aumento considerável e contínuo dos níveis de transparência no âmbito do Poder Público; c) fortalecimento institucional dos órgãos de controle interno e externo (autonomia funcional, recursos orçamentário-financeiros em níveis apropriados, quadro de pessoal em número suficiente, capacitação permanente dos servidores, etc); d) incentivo aos controles sociais por intermédio de organizações da sociedade civil; e) atenção decuplicada e monitoramento estrito e concomitante das licitações, dispensas, inexigibilidades e pagamentos realizados; f) amplo programa de conscientização no âmbito das escolas fundamentais e médias; g) tratamento adequado para as denúncias anônimas; h) seguro em contratos públicos de valores significativos; i) regulação estrita de circulação de dinheiro em espécie; j) profunda reformulação do instituto do foro privilegiado; k) criminalização da improbidade administrativa por enriquecimento sem causa lícita; l) aprimoramento do sistema de declaração de bens e direitos dos servidores públicos e seu núcleo familiar e o consequente cruzamento com os dados de movimentação financeira e m) profunda alteração no sistema de escolhas de membros de tribunais (no Judiciário e nas Cortes de Contas).

Afirmo, e reafirmo, que não existe combate à corrupção meramente retórico ou como uma cruzada moral para converter os degenerados. Essa empreitada exige medidas e providências concretas que reduzam ou eliminem o oxigênio alimentador das mais vis formas de malversação da coisa pública.