O golpe de estado contra o governo do presidente chileno Salvador Allende, faz este ano meio século, «pôs fim com uma violência brutal» ao rumo de vários países da América Latina em direcção à construção de um estado de bem-estar social e de soberania sobre os seus recursos naturais. «O Chile foi o prenúncio do que iria acontecer em todo o mundo nos 10 anos seguintes: a ofensiva, vinda do Norte, contra as políticas redistributivas dos rendimentos [pt-br: da renda], contra o desenvolvimento industrial endógeno e a construção do que se costuma chamar o estado de bem-estar social», afirma Éric Toussaint, fundador do Comité para a Anulação das Dívidas Ilegítimas (CADTM), rede internacional sediada na Bélgica, e membro do conselho científico da Associação para a Tributação das Transacções Financeiras (ATTAC) de França [ver ATTAC Portugal ou ATTAC no Mundo].
Visto a 50 anos de distância, o golpe contra o governo legitimamente eleito de Salvador Allende «é um marco histórico: impôs um modelo, apelidado neoliberal, através do exercício de uma violência brutal contra as classes populares», acrescenta Toussaint na entrevista a La Jornada.
«O modelo neoliberal – seja na versão chilena de Pinochet, na argentina de Carlos Menem, ou na mexicana de Carlos Salinas de Gortari – descambou em fracasso, apesar de todos os discursos sobre o suposto milagre. Do ponto de vista histórico, para a América Latina representou a privatização das suas economias e a «reprimarização» [1] (= regressão de uma economia que passou por um processo de industrialização diversificada, tornando-se mais dependente das suas exportações de matérias-primas - petróleo, gás, minerais sólidos, produtos agrícolas)», aponta Toussaint, crítico das políticas dos organismos financeiros internacionais em relação aos países do Sul, internacionalista e animador de movimentos como o Fórum Social Mundial.
O golpe de estado contra Salvador Allende impôs um modelo económico contrário às classes populares
- Golpe de Estado no Chile em 11 de setembro de 1973.
- Bombardeamento do Palácio de La Moneda
- (Palácio do Governo). Biblioteca do Congresso Nacional.
- CC BY 3.0 cl,
- https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=16325488
Com o regime ditatorial de Augusto Pinochet, o general que encabeçou o golpe contra o presidente Allende, «inaugurou-se a onda neoliberal e a aplicação não só de um modelo económico, mas também político». O Chile, considera Toussaint, foi o laboratório para a imposição desse modelo, baseado, entre outras acções, em uma redução da intervenção do sector público na regulação das actividades económicas, acrescida da privatização de recursos estratégicos e da transferência para o sector privado de serviços como a saúde e a educação. [2]
Em matéria de políticas económicas, o golpe militar chileno ocorreu num contexto específico, segundo Toussaint: as décadas anteriores foram marcadas por políticas de crescimento e desenvolvimento orientadas pelo Estado, lançadas após o fim da Segunda Guerra Mundial nos países do Norte. O Chile serviu de laboratório para a imposição do modelo neoliberal: redução da intervenção pública na regulação económica; privatização dos recursos estratégicos; transferência de serviços públicos para as empresas privadas
Nesse contexto, economistas como Milton Friedman, que na Universidade de Chicago formou os principais economistas que levaram a cabo o modelo económico da ditadura chilena, «ou pensadores reaccionários» inspirados na chamada Escola Austríaca, ambicionavam, nos inícios da década de 1970, pôr fim a um período de mais de três décadas – consoante as regiões – e impor uma reviravolta a favor dos interesses das grandes empresas – interesses esses que, no caso do Chile, foram impostos literalmente à ponta de baioneta.
As políticas impostas no Chile a partir de 1973 «pretendiam acabar com um período, consoante as regiões, de cerca de 35 anos de políticas keynesianas no Norte e no Sul [3]; de políticas que afirmavam uma certa autonomia face ao imperialismo. Refiro-me a um período que na América Latina inclui Lázaro Cárdenas no México; Juan Domingo Perón na Argentina; e, no Brasil, Getúlio Vargas seguido de Juscelino Kubitschek et João Goulart. Ou seja, o Chile antecipa o que vai acontecer nos anos que se seguiram ao golpe de estado. É um marco histórico, porque assinala o início generalizado da ofensiva contra as políticas keynesianas de promoção do desenvolvimento promovido pelo Estado; contra as políticas de desenvolvimento levadas a cabo na América Latina, como propunha a Comissão Económica para a América Latina e Caraíbas (CEPAL) [pt-br: Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe]».
O golpe de estado de Pinochet foi o ponto de partida para uma viagem ao inferno neoliberal, que passou por novas etapas com a chegada ao poder de Margaret Thatcher no Reino Unido, em 1979, e Ronald Reagan na Casa Branca, em 1980
O golpe de Pinochet foi «o início de uma viagem» que teve outros dois marcos com a chegada ao poder de Margaret Thatcher no Reino Unido, em 1979, e de Ronald Reagan na Casa Branca, em 1980. «Trata-se de marcos históricos, da imposição de um modelo económico através do uso de uma violência brutal contra as classes populares e os movimentos de esquerda, como também aconteceu no Uruguai e na Argentina». Foi, acrescenta, «um período terrível de repressão na América Latina. Por isso falamos de um modelo económico, o neoliberal, com uma dimensão política muito clara, conservadora e inclusivamente acompanhada de repressão massiva, como aconteceu no Chile e na Argentina, por parte das forças armadas».
Toussaint chama a atenção para o facto de, em concomitância com o golpe de estado no Chile, ter havido não só o apoio dos EUA, do seu exército e das suas organizações de espionagem, mas também de organismos financeiros como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
– Quais foram alguns dos interesses económicos que criaram condições ou apoiaram o golpe contra o presidente Allende?
– Uma das razões para derrubar o o governo de Allende foi a nacionalização do cobre. Ela afectou as grandes empresas norte-americanas, que pressionaram o governo dos EUA e sustentaram os militares da direita chilena. Depois começou-se a implantar o modelo a partir de privatizações massivas, reprivatização, liberalização dos investimentos e contracção de dívida externa. Tudo isto seguindo o princípio de que para atrair investimentos, há que privatizar e aprovar leis para «proteger» esses investimentos contra qualquer nacionalização. Com o passar dos anos, até os responsáveis pela política económica chegaram a defender que havia outras soluções além desse tipo de políticas económicas.
A América Latina privatizou as suas economias e tornou-se uma exportadora de matérias-primas, quando nas décadas anteriores ao golpe estava em curso um processo de industrialização em vários países
Eu diria que não havia outro caminho para o inferno. Para percorrer esse caminho foi feita propaganda assente na presunção do milagre do modelo chileno, seguido da propaganda sobre o suposto milagre de Salinas de Gortari no início dos anos 1990 no México. Mas todos esses modelos fracassaram. No Chile, houve uma crise geral dos bancos, sob a ditadura de Pinochet, que tiveram de ser resgatados, assim como no México, Equador e noutros países. A América Latina privatizou as suas economias e tornou-se exportadora de matérias-primas ou sede de fábricas de montagem [de baixo valor acrescentado]. Por exemplo, fábricas de automóveis onde não são produzidas as peças, apenas são importadas e montadas por operários/as pouco qualificados e mal pagos. Ora, nas décadas anteriores ao golpe, estava em curso um processo de industrialização em vários países.
- General Augusto Pinochet, chefe da ditadura militar. Biblioteca do Congresso
- Nacional do Chile.
- CC BY 3.0 cl
– Que se passa agora com essa forma de conceber a política económica?
– O nível de reprovação das maiorias nos países da América Latina começou a expressar-se claramente depois das ditaduras e da crise da dívida dos anos Oitenta do século passado. Podemos citar os protestos na Venezuela em 1989 (conhecidos como Caracazo), movimentos como o dos zapatistas no México (a partir de 1994) e as eleições de Hugo Chavez na Venezuela, de Rafael Correa no Equador, e Evo Morales na Bolívia, entre finais dos anos 1990 e inícios deste século. Há uma nova vaga de governos progressistas, mas não vemos uma ruptura com o modelo económico
O factor comum foi a retoma do controlo dos recursos naturais, como o petróleo e o gás. Recentemente assistimos às vitórias eleitorais de Andrés Manuel López Obrador, no México, em 2018; Alberto Fernández, na Argentina, em 2019; e, mais recentemente, em 2022 e 2023, Gabriel Boric, Gustavo Petro e Lula, respectivamente no Chile, na Colômbia e no Brasil.
Há uma nova onda de governos progressistas, mas não vemos uma ruptura com o modelo económico. O que fazem é erguer uma política assistencialista, que é importante, sem dúvida, mas não vemos qualquer vontade de imprimir uma mudança estrutural.