Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)
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terça-feira, 20 de agosto de 2024

Os empréstimos envenenados do Banco Mundial e do FMI ao Equador; Da Série: 1944-2024, 80 anos de intervenção do Banco Mundial e do FMI, basta!

 Terça, 20 de agosto de 2024







14 de Agosto por Eric Toussaint

O FMI e o Banco Mundial têm 80 anos. 80 anos de neocolonialismo financeiro e de imposição de políticas de austeridade em nome do pagamento da dívida. 80 anos já bastam! As instituições de Bretton Woods devem ser abolidas e substituídas por instituições democráticas ao serviço de uma bifurcação ecológica, feminista e antirracista. Para assinalar estes 80 anos, publicamos todas as quartas-feiras, até julho, uma série de artigos que analisam em pormenor a história e os danos causados por estas duas instituições.

  1. As origens das instituições de Bretton Woods
  2. O Banco mundial ao serviço dos poderosos num clima de caça às bruxas
  3. Os conflitos entre a ONU e a dupla Banco Mundial/FMI desde as origens até aos anos setenta
  4. SUNFED versus Banco Mundial
  5. Porquê o Plano Marshall?
  6. Porque não é reproduzível a anulação da dívida alemã de 1953 no caso da Grécia e dos países em desenvolvimento?
  7. A Supremacia dos Estados Unidos no Banco Mundial
  8. Banco Mundial/FMI : o apoio às ditaduras
  9. O Banco Mundial e as Filipinas
  10. O apoio do Banco Mundial à ditadura turca (1980-1983)
  11. O Banco Mundial e o FMI na Indonésia: Uma intervenção emblemática
  12. As mentiras teóricas do Banco Mundial
  13. Coreia do Sul e o milagre desvendado
  14. A armadilha do endividamento
  15. O Banco Mundial apercebe-se da chegada da crise da dívida externa
  16. A crise da dívida mexicana e o Banco Mundial
  17. O Banco Mundial e o FMI: As agências financeiras dos credores
  18. Os presidentes Barber Conable e Lewis Preston (1986-1995)
  19. A operação de sedução de James Wolfensohn (1995-2005)
  20. A Comissão Meltzer sobre as Instituições Financeiras Internacionais no Congresso dos Estados Unidos em 2000
  21. As contas do Banco Mundial
  22. De Paul Wolfowitz (2005-2007) a Ajay Banga (2023-...): os homens de mão do presidente dos EUA continuam à frente do Banco Mundial
  23. O Banco Mundial e o FMI deitaram mão a Timor-Leste, um estado oficialmente nascido em maio de 2002
  24. Crise climática ecológica: os aprendizes de feiticeiro do Banco Mundial e do FMI
  25. O ajuste estructural e o consenso de Washington não foram abandonados
  26. Os empréstimos envenenados do Banco Mundial e do FMI ao Equador









O Equador oferece o exemplo de um governo que toma a decisão soberana de investigar o processo de endividamento a fim de identificar as dívidas ilegítimas para depois suspender o pagamento. A suspensão do pagamento de uma grande parte da dívida comercial, seguida da sua recompra a menor custo, mostra que o governo não se limitou a denúncias retóricas. Conduziu de facto uma reestruturação unilateral de parte da sua dívida externa e obteve uma vitória contra os credores privados, principalmente bancos. Em 2007, o governo do Equador, no início da presidência de Rafael Correa, entrou em conflito com o Banco Mundial. Neste capítulo, começamos por analisar os empréstimos concedidos pelo Banco Mundial e pelo FMI e depois relatamos a acção do Governo, principalmente em relação à auditoria da dívida e à suspensão do pagamento de parte da dívida. Em seguida, discutiremos os limites da acção do governo de Rafael Correa e do seu sucessor Lenin Moreno.

No Equador, o FMI vem impondo desde 1983 o seu programa de estabilidade macroeconómica de curto prazo, a fim de restaurar a capacidade do país para pagar as suas dívidas. Este programa materializou-se na assinatura de uma «carta de intenções» entre o país endividado e o FMI, que planeou uma política antissocial (austeridade fiscal, desvalorização, liberalização dos preços, etc.). Entre 1983 e 2003, o Equador assinou 13 cartas de intenção. Sucessivos governos à frente do Equador, até a eleição de Rafael Correa em novembro de 2006, não hesitaram em assinar tais documentos, apesar do impacto largamente negativo das medidas preconizadas sobre a maioria da população. Desde 2017, o Presidente Lenin Moreno voltou totalmente ao seio do FMI e do Banco Mundial, o que levou a grandes mobilizações populares, particularmente em outubro de 2019.

A reviravolta neoliberal radical aprofundou-se especialmente na década de noventa, época da «consagração» do consenso de Washington e da entrada da economia equatoriana na economia globalizada, especialmente a partir da presidência de Sixto Durán Ballén, em 1992. Isto coincide com a agenda do Banco Mundial, que aumenta muito a sua actividade e influência no Equador a partir do final dos anos oitenta e início dos anos noventa. No Equador, como em muitos países em desenvolvimento, o Banco concedeu empréstimos ligados a medidas visando a abertura dos mercados, a redução do papel do Estado na gestão da economia e o aumento do poder dos bancos privados na regulação dos fluxos monetários.

O Banco compartilha, ao lado de uma classe política cúmplice, a responsabilidade de um endividamento fraudulento e ilegítimo, feito em detrimento dos direitos humanos fundamentais e da soberania do Estado.

  A dívida do Equador ao Banco Mundial (BIRD)

Entre 1990 e julho de 2007, o Banco Mundial (BIRD) desembolsou 1,44 mil milhões US$ para o Equador, enquanto durante o mesmo período o governo equatoriano reembolsou a essa instituição 2,51 mil milhões US$. Isto significa que durante o período de 1990 a julho de 2007, o Banco Mundial teve um lucro de 1,07 mil milhões US$ às custas do povo equatoriano. O Banco Mundial tem sido mais do que reembolsado. O saldo da dívida pública com esse organismo era de 704,4 milhões US$ em 30 de novembro de 2007.

Se o Equador tivesse decidido em 2008 repudiar toda sua dívida ao Banco Mundial (704,4 milhões US$), como foi recomendado pela Comissão de Auditoria da Dívida (ver abaixo), essa decisão teria economizado mais de mil milhões US$ (uma vez que ao principal a ser pago deveriam ser acrescentados os juros). Tal quantia teria financiado durante 15 anos o pequeno-almoço e o almoço de 1,28 milhões de crianças em idade escolar [1] . O montante economizado representa cinco anos de cobertura sanitária para a população pobre e indigente do país [2].

segunda-feira, 11 de março de 2024

Banco Mundial/FMI : o apoio às ditaduras

Segunda, 11 de março de 2024

Em julho de 2024, o Banco Mundial e o FMI completarão 80 anos. 80 anos de neocolonialismo financeiro e de imposição de políticas de austeridade em nome do pagamento da dívida. 80 anos já bastam! As instituições de Bretton Woods devem ser abolidas e substituídas por instituições democráticas ao serviço de uma bifurcação ecológica, feminista e antirracista. Para assinalar estes 80 anos, publicamos todas as quartas-feiras, até julho, uma série de artigos que analisam em pormenor a história e os danos causados por estas duas instituições.

Do 








por Eric Toussaint —Artigo de  6 de março de 2024

Após a Segunda Guerra Mundial, numa zona cada vez maior do Terceiro Mundo, as políticas implementadas viram as costas às antigas potências coloniais. Essa orientação esbarra contra a oposição firme dos governos dos grandes países capitalistas industrializados, que exercem uma influência determinante sobre o Banco Mundial e sobre o FMI. Os projetos do Banco possuem uma vertente política acentuada: refrear o desenvolvimento de movimentos que ponham em causa o poder das grandes potências capitalistas. A proibição de apresentar justificações “políticas” e “não económicas” nas operações do Banco (uma das mais importantes cláusulas dos seus estatutos) é sistematicamente contornada. A parcialidade política das instituições de Bretton Woods é demonstrada pelo apoio financeiro dado, em especial, às ditaduras que assolaram o Chile, o Brasil, a Nicarágua, o Congo-Kinshasa e a Roménia.

1.A revolta anticolonial e anti-imperialista do Terceiro Mundo

Após 1955, o espírito da Conferência de Bandung (Indonésia) [1] sopra sobre grande parte do planeta. A conferência acontece na sequência do fracasso francês no Vietname e precede a nacionalização do canal do Suez por Nasser (1956). Depois surgem as revoluções cubana (1959) e argelina (1954-1962) e o retomar da luta pela emancipação do Vietname... Numa zona cada vez mais alargada do Terceiro Mundo, as políticas implementadas viram as costas às antigas potências coloniais. Nota-se uma tendência para a substituição de importações e para o desenvolvimento de políticas voltadas para o mercado interno. Essa orientação esbarra contra a oposição firme dos governos dos grandes países capitalistas industrializados, que têm uma influência determinante no Banco Mundial e no FMI. Avoluma-se a onda de regimes nacionalistas burgueses que adotam políticas populares (Nasser no Egito, Nehru na Índia, Perón na Argentina, Goulart no Brasil, Sukarno na Indonésia, Nkrumah no Gana...) e de regimes com orientação explicitamente socialista (Cuba, República Popular da China).

Nesse contexto, os projetos do Banco Mundial têm um forte pendor político: refrear o desenvolvimento de movimentos que coloquem em causa a dominação exercida pelas grandes potências capitalistas.

2.Poder de intervenção do Banco Mundial nas economias nacionais

Desde os anos cinquenta, o Banco criou uma rede de influência que lhe seria muito útil mais tarde. Estimulou a procura dos seus serviços no Terceiro Mundo. A ascendência que o Banco dispõe decorre, em grande parte, da rede de agências que construiu nos Estados que se tornaram seus clientes e, ao mesmo tempo, devedores. O Banco exerce uma verdadeira política de influência para sustentar a sua rede de empréstimos.

A partir dos anos cinquenta, um dos primeiros objetivos do Banco é a “construção de instituições” que assumem frequentemente a forma de agências para-governamentais nos países clientes do Banco. [2] Tais agências são fundadas com a intenção de serem relativamente independentes em termos financeiros dos seus governos e de estarem fora do controlo das instituições políticas locais, especialmente dos parlamentos nacionais. Constituem pontos naturais de apoio do Banco, a quem devem muito, a começar pela sua existência e, em certos casos, o seu financiamento.

A criação de tais agências foi uma das mais importantes estratégias do Banco Mundial para se integrar nas economias políticas do Terceiro Mundo.

Funcionando segundo regras próprias (frequentemente elaboradas de acordo com as sugestões do Banco), repletas de tecnocratas simpatizantes do banco, incentivados e apoiados por ele, essas agências são uma fonte estável e digna de confiança para satisfazer as necessidades do Banco: elaboram propostas de empréstimo “viáveis”. Fornecem também ao Banco as bases do poder paralelo, que permitiram transformar as economias nacionais, e, de facto, sociedades inteiras, sem recorrer ao procedimento exigente do controlo democrático e sem debates do contraditório.

O Banco funda, em 1956, com o apoio financeiro importante das Fundações Ford e Rockefeller, o Instituto de Desenvolvimento Económico (Economic Development Institute), que oferece estágios de formação, de seis meses, aos delegados oficiais dos países membros. “Entre 1956 e 1971, mais de 1300 delegados oficiais passaram pelo Instituto; alguns deles atingiram posições de primeiro-ministro, ministro do Planeamento e ou das Finanças”. [3]

As implicações dessa política são inquietantes: o estudo realizado pelo International Legal Center (ILC) de Nova York, sobre a ação do Banco na Colômbia, entre 1949 e 1972, concluiu que as agências autónomas criadas pelo Banco têm um impacto profundo na estrutura política e na evolução social de toda a região, enfraquecendo “o sistema dos partidos políticos e minimizando o papel do legislativo e do judiciário”.

Pode-se considerar que, desde os anos sessenta, o Banco estabeleceu mecanismos únicos e novos, tendo em vista uma intervenção permanente nos assuntos internos dos países que pediam empréstimos. No entanto, o Banco nega vigorosamente que tais intervenções sejam políticas: ao contrário, insiste no facto de a sua política nada ter a ver com as estruturas de poder e de os assuntos políticos e económicos existirem separadamente.

3.A política de empréstimos do Banco Mundial é influenciada por considerações políticas e geoestratégicas.

O artigo IV, secção 10, estipula: “O Banco e os seus responsáveis não interferirão nos assuntos políticos de nenhum dos membros e é-lhes proibido deixarem-se influenciar nas suas decisões pelas caraterísticas políticas do membro ou dos membros em questão. Só considerações económicas podem influenciar as suas decisões e essas considerações devem ser avaliadas sem ideias pré-concebidas, a fim de se atingirem os objetivos (fixados pelo Banco) estipulados no artigo 1º”.

Apesar disso, a proibição de apresentar justificações “políticas” e “não económicas” nas operações do Banco, uma das cláusulas mais importantes dos seus estatutos, é contornada sistematicamente. E desde o início da sua atividade. Recorde-se que o Banco recusou emprestar à França, após a libertação, enquanto os comunistas estivessem no governo (alguns dias após a saída dos comunistas do governo, em maio de 1947, o empréstimo solicitado e bloqueado até então foi concedido).

O Banco age recorrentemente contrariando o artigo IV dos estatutos. De facto, com regularidade, as escolhas feitas têm como justificação considerações políticas. A qualidade das políticas económicas não é condição determinante das suas opções. O Banco empresta regularmente dinheiro a países sem ter em conta a má qualidade da sua política económica e o elevado nível de corrupção: a Indonésia e o Zaire são dois casos emblemáticos. Mais precisamente, as escolhas do Banco, em relação a países que assumem posições políticas de maior relevância para os principais acionistas, estão com frequência relacionadas com os interesses e as orientações desses acionistas, a começar pelos Estados Unidos.

As escolhas do Banco e do seu irmão gêmeo, o FMI, desde 1947 até a derrocada do bloco soviético [4], são amplamente determinadas pelos seguintes critérios:

- evitar a manutenção dos modelos autocentrados;
- apoiar financeiramente grandes projetos (Banco Mundial) ou políticas (FMI), que permitam aumentar as exportações dos principais países industrializados;
- recusar ajuda a regimes considerados como uma ameaça pelo governo dos Estados Unidos e por outros acionistas importantes;
- tentar modificar a política de certos países ditos socialistas, a fim de enfraquecer a coesão do bloco soviético. É nesse contexto que foi concedido apoio à Jugoslávia, que saiu do bloco dominado por Moscovo a partir de 1948, ou à Romênia a partir dos anos setenta, quando Ceausescu manifestava intenção de se distanciar do COMECON e do Pacto de Varsóvia;
- apoiar aliados estratégicos do bloco capitalista ocidental, dos Estados Unidos em particular (exemplos: a Indonésia, de 1965 até hoje; o Zaire de Mobutu, de 1965 a 1977; as Filipinas sob o governo de Marcos; o Brasil da ditadura a partir de 1964; a Nicarágua do ditador Somoza; a África do Sul do Apartheid);
- procurar evitar ou limitar, tanto quanto possível, um aproximação dos governos dos PED ao bloco soviético ou à China: tentar, por exemplo, afastar a Índia e a Indonésia, dos tempos de Sukharno, da URSS;
- procurar, a partir de 1980, integrar a China no jogo de alianças dos Estados Unidos.

Para implementar essa política, o Banco Mundial e o FMI adotam uma tática generalizada: tornam-se mais flexíveis em relação aos governos de direita (menos exigentes em termos de políticas de austeridade antipopulares), que se confrontam com uma forte oposição de esquerda, do que em relação aos governos de esquerda, que se confrontam com uma forte oposição de direita. Concretamente, isso significa que essas instituições pretendem dificultar a vida aos governos de esquerda, confrontados com uma oposição de direita, de modo a enfraquecê-los e a favorecerem a ascensão da direita ao poder. Segundo a mesma lógica, serão menos exigentes com os governos de direita, que se confrontam com oposições de esquerda, de modo a evitarem enfraquecê-los e impedindo a esquerda de ascender ao poder. A ortodoxia monetarista possui uma geometria variável: as variações dependem muito de fatores políticos e geoestratégicos.

Alguns casos concretos – o Chile, o Brasil, a Nicarágua, o Zaire e a Roménia – ilustram o que ficou dito: trata-se, em simultâneo, de escolhas do Banco e do FMI, porque essas escolhas são determinadas, grosso modo, pelas mesmas considerações e são submetidas às mesmas influências.

O FMI e o Banco Mundial não hesitam em apoiar as ditaduras, quando (tal como outras grandes potências capitalistas) acham oportuno. Os autores do Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento Humano, realizado pelo PNUD (edição de 1994), afirmam claramente isso: “De facto, a ajuda dada pelos Estados Unidos, durante os anos oitenta, é inversamente proporcional ao respeito pelos direitos humanos. Os doadores multilaterais também não parecem muito incomodados com tais justificações. Parecem, de facto, preferir os regimes autoritários, aceitando sem pestanejar que esses regimes favorecem a estabilidade política e gerem melhor a economia. Logo que o Bangladesh e as Filipinas puseram fim à lei marcial, as parcelas respetivas nos empréstimos do Banco Mundial diminuíram”. [5]

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

O Banco mundial ao serviço dos poderosos num clima de caça às bruxas.

Sexta, 19 de janeiro de 2024
Da Série: 1944-2024, 80 anos de intervenção do Banco Mundial e do FMI, basta!  




Da 



Em 17 de Janeiro por Eric Toussaint

Em julho de 2024, o Banco Mundial e o FMI completarão 80 anos. 80 anos de neocolonialismo financeiro e de imposição de políticas de austeridade em nome do pagamento da dívida. 80 anos já bastam! As instituições de Bretton Woods devem ser abolidas e substituídas por instituições democráticas ao serviço de uma bifurcação ecológica, feminista e antirracista. Para assinalar estes 80 anos, publicamos todas as quartas-feiras, até julho, uma série de artigos que analisam em pormenor a história e os danos causados por estas duas instituições.



Ao longo dos primeiros dezassete anos de existência, os projetos apoiados pelo Banco Mundial consistem na melhoria das infraestruturas de comunicação e de produção de energia elétrica. O dinheiro emprestado pelo banco aos países em desenvolvimento deve, sobretudo, ser gasto aos países industrializados. Os projetos apoiados devem melhorar a capacidade de exportação do Sul para o Norte, a fim de satisfazerem as necessidades deste último e de enriquecerem um conjunto de multinacionais, no âmbito dos setores referidos. Durante este período, os projetos relativos à saúde, ao acesso à água potável e ao saneamento básico são inexistentes.

Desde o início, as missões do banco visam essencialmente aumentar a sua capacidade de influenciar as decisões tomadas pelas autoridades de um determinado país, favorecendo as grandes potências acionistas e a suas empresas.

A política do Banco Mundial evolui tendo em conta o perigo de contágio revolucionário e a Guerra Fria. O contexto político interpela os dirigentes do Banco: os seus debates internos demonstram que eles respondem a esse contexto em função dos interesses de Washington ou de outras metrópoles industrializadas.

A atividade do Banco Mundial começa em 1946. Em 18 de junho desse ano, Eugene Meyer, editor do Washington Post, ex-banqueiro, assume funções como primeiro Presidente do Banco. Permanecerá no cargo durante seis meses.

Os primeiros passos do Banco foram, de facto, difíceis. A hostilidade de Wall Street não diminuiu desde a morte de Franklin Roosevelt, em abril de 1945. Os banqueiros não confiavam numa instituição que, a seus olhos, ainda era demasiado influenciada pela política do New Deal, intervencionista demais e pública demais. Eles teriam preferido que os Estados Unidos desenvolvessem apenas o Export Import Bank. Regozijaram-se com a saída de Henry Morgenthau que deixou de ser secretário do Tesouro; não se opunham especificamente a Eugene Meyer, presidente do Banco, porém não apreciavam, de todo, os defensores do controlo público, como Emilio Collado e Harry White, diretores-executivos respectivamente do Banco Mundial e do FMI.

A partir de 1947, as alterações na direção do Banco satisfazem os banqueiros já que, daí em diante, um trio favorável a Wall Street toma as rédeas do poder: John J. McCloy é nomeado presidente do Banco Mundial em fevereiro de 1947, secundado por Robert Garner, vice-presidente, e Eugene Black assume o lugar de Emilio Collado. John J. McCloy tinha sido um grande advogado de negócios em Wall Street, Robert Garner era vice-presidente da General Foods Corporation e Eugene Black, vice-presidente do Chase National Bank. No FMI, Harry White é demitido. Wall Street está plenamente satisfeita. Com a saída forçada de Emilio Collado e de Harry White, desaparecem os últimos defensores da intervenção nos movimentos de capitais e do seu controlo público. Os “negócios” podem começar.

A caça às bruxas

A vida do Banco Mundial e a do FMI foram fortemente influenciadas pela Guerra Fria e pela caça às bruxas lançada, nos Estados Unidos, principalmente pelo senador republicano de Wisconsin, Joseph McCarthy. Harry White, pai do Banco Mundial e diretor-executivo dos Estados Unidos no FMI, foi objeto de uma investigação do FBI (Agência Federal de Investigação), em 1945, por espionagem em benefício da URSS. Em 1947, o seu caso foi submetido ao Grande Júri Federal, que recusa abrir um processo. Em 1948, é ouvido pelo Comité de Investigação de Atividades Antiamericanas (Un-American Activities Committee). Vítima de uma campanha agressiva, morre de ataque cardíaco em 16 de agosto de 1948, três dias após ter comparecido perante o comité. Em novembro de 1953, durante a presidência de Eisenhower, o procurador-geral condena, de forma póstuma, Harry White como espião soviético. Acusa igualmente o Presidente Truman de ter designado Harry White como diretor-executivo do FMI em 1946, sabendo que ele era um espião soviético.

A caça às bruxas afeta também o conjunto das Nações Unidas e as suas agências especializadas, porque, no final do seu mandato, em 09 de janeiro de 1953, o Presidente Truman faz sair um decreto solicitando, ao Secretário-Geral das Nações Unidas e aos dirigentes das agências especializadas, que comuniquem, ao governo dos Estados Unidos, informações sobre as candidaturas de emprego às Nações Unidas, entregues por cidadãos dos Estados Unidos. Os Estados Unidos encarregam-se de realizar uma investigação completa para detectar se as pessoas em questão são suscetíveis de se dedicarem à espionagem ou a ações subversivas (tais como “defender a revolução para alterar a forma constitucional de governo dos Estados Unidos”).

Nessa época, o termo “un-american” é um eufemismo corrente para caracterizar os comportamentos subversivos. Um elemento subversivo não pode ser admitido pela ONU. A interferência dos Estados Unidos nos assuntos internos da ONU é muito forte. São testemunhos disso o tom e o conteúdo da correspondência enviada ao presidente do Banco Mundial, Eugene Black, pelo secretário de Estado da administração Eisenhower, J. F. Dulles: “O secretário de Estado Dulles solicitou-me (escreve o seu assistente) que fizesse saber a grande importância dada por ele à obtenção de total cooperação por parte dos responsáveis pelas agências especializadas das Nações Unidas para a execução do decreto presidencial 10422. Ele está convencido que, sem essa total cooperação, os objetivos do decreto não serão alcançados e que, sem essa condição, os Estados Unidos não poderão continuar a apoiar estas organizações”.

O Banco Mundial, para emprestar dinheiro aos países membros, deve começar por pedir emprestado a Wall Street sob a forma de obrigações. Os banqueiros privados exigem garantias antes de concederem um empréstimo a um organismo público, visto que, no início de 1946, 87% dos títulos europeus estão em situação de incumprimento de pagamento e o mesmo acontece com 60% dos títulos latino-americanos e com 56% dos títulos do Extremo Oriente.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Segundo o Banco Mundial, os «países em desenvolvimento» estão presos em uma nova crise da dívida: como se explica isso? – CADTM

Quinta, 28 de dezembro de 2023

24 de Dezembro por Eric Toussaint

O último relatório do Banco Mundial sobre as dívidas dos «países em desenvolvimento», publicado em 13 de dezembro de 2023 [1], revela uma realidade alarmante: em 2022, os países em desenvolvimento, em seu conjunto, gastaram um valor recorde de 443,5 bilhões de dólares para garantir o pagamento de sua dívida pública externa. No mesmo ano de 2022, os 75 países de baixa renda que têm acesso a empréstimos da Associação Internacional de Desenvolvimento (AID), a instituição do Banco Mundial que concede empréstimos aos países mais pobres, pagaram um valor recorde de US$ 88,9 bilhões a seus credores. A dívida externa total desses 75 países atingiu o recorde de US$ 1.100 bilhões, mais do que o dobro de 2012. De acordo com o comunicado de imprensa do Banco Mundial, entre 2012 e 2022 esses países viram sua dívida externa aumentar em 134 %, uma taxa maior do que o aumento de sua renda nacional bruta (RNB), que foi de 53 %.



O Banco Mundial acrescenta: «O aumento das taxas de juros exacerbou as vulnerabilidades relacionadas à dívida em todos os países em desenvolvimento. Somente nos últimos três anos, houve 18 inadimplências soberanas em dez países em desenvolvimento, mais do que nas duas décadas anteriores. Atualmente, cerca de 60 % dos países de baixa renda correm um alto risco de endividamento ou já estão nessa situação.»

Por esse motivo, o Banco Mundial está soando o alarme: uma nova crise da dívida começou. Grandes somas estão sendo gastas para pagar os credores às custas de atender às necessidades crescentes de centenas de milhões de pessoas que precisam de ajuda vital. De acordo com outro relatório do Banco Mundial citado pelo Financial Times [2], entre 2019 e 2022 mais de 95 milhões de pessoas caíram na pobreza extrema.

O Banco Mundial (BM) reconhece que os credores privados começaram a fechar a torneira do crédito para os países em desenvolvimento em 2022, enquanto continuam a exercer pressão para obter o máximo de pagamentos. De acordo com o BM, os novos empréstimos concedidos por credores privados a autoridades públicas nos países em desenvolvimento caíram 23 %, para 371 bilhões de dólares, seu nível mais baixo em dez anos. Por outro lado, esses mesmos credores privados coletaram US$ 556 bilhões em reembolsos. Isso significa que, em 2022, eles receberam US$ 185 bilhões a mais em reembolsos do que desembolsaram em empréstimos. De acordo com o Banco Mundial, essa é a primeira vez desde 2015 que os credores privados receberam mais fundos do que injetaram nos países em desenvolvimento.

O Banco Mundial não explica como chegamos até aqui, porque isso significaria questionar o modelo e o sistema econômico que ele promove e que considera ser a única opção possível. Isso também significaria apontar claramente o dedo da culpa para os bancos centrais da América do Norte e da Europa Ocidental e, portanto, para as autoridades das principais potências ocidentais que dominam o Banco Mundial e o FMI.

Como explicar a atual crise da dívida que afeta os elos mais fracos da economia capitalista mundial?

É a primeira vez desde 2015 que os credores privados recebem mais fundos do que injetaram nos países em desenvolvimento

Para entender a crise atual, precisamos fazer uma retrospectiva dos últimos 15 anos.

A partir de 2010 a 2012, a redução gradual das taxas de juros no Norte reduziu o custo da dívida no Sul. Os bancos centrais dos países mais industrializados reduziram as taxas de juros para 0 %. O objetivo dessa política era manter os mercados financeiros à tona, em particular, e as grandes empresas privadas, em geral. Também se destinava a facilitar o gerenciamento e o refinanciamento da dívida pública no Norte. Essa política de taxas de juros muito baixas praticada pelas principais potências capitalistas incentivou o financiamento de gastos por meio de dívidas e levou a um aumento acentuado das dívidas públicas e privadas no Norte e no Sul do planeta. Isso também reduziu o custo de refinanciamento para os países em desenvolvimento. Esse financiamento de baixo custo, combinado com o influxo de capital do Norte em busca de melhores retornos em face das baixas taxas de juros no Norte e das altas receitas de exportação (porque o preço das matérias-primas exportadas do Sul para o Norte permaneceu alto), deu aos governos dos países em desenvolvimento, inclusive os mais pobres, uma perigosa sensação de segurança. Os países pobres da África Subsaariana, que nunca haviam tido a oportunidade de imprimir e vender sua dívida soberana nos mercados financeiros internacionais, conseguiram encontrar compradores para sua dívida com facilidade. Fundos de investimento e bancos do Norte compraram os títulos.

Sem dificuldade, os países pobres emitiram e venderam sua dívida externa nos mercados internacionais. Ruanda é um caso emblemático. Embora seja um dos países mais pobres do planeta e tenha sido marcado pelo genocídio de 1994, conseguiu emitir títulos de dívida soberana e vendê-los em Wall Street pela primeira vez em sua existência. Esse foi o caso em 2013, 2019, 2020 e 2021. O Senegal também conseguiu emitir 6 títulos internacionais entre 2009 e 2021, em 2009, 2011, 2014, 2017, 2018 e 2021. A Etiópia, também um país muito pobre, conseguiu emitir um título internacional em 2014. Benin teve acesso mais recentemente e emitiu 3 títulos nos mercados internacionais em 2019, 2020 e 2021. A Costa do Marfim, que saiu de uma guerra civil há apenas alguns anos, também emitiu títulos todos os anos de 2014 a 2021, embora também seja um país pobre altamente endividado. Há ainda os empréstimos do Quênia (2014, 2018, 2019, 2021), Zâmbia (2012, 2014, 2015), Gana (2013 a 2016, 2018 a 2021), Gabão (2007, 2013, 2015, 2017, 2020, 2021), Nigéria (2011, 2013, 2014, 2017, 2018, 2021, 2022), Angola (2015, 2018, 2019, 2022) e Camarões (2014, 2015, 2021). nunca se tinha visto tal coisa nos últimos 60 anos. Isso reflete uma situação internacional muito especial: os investidores financeiros do Norte estavam cheios de dinheiro e, com as taxas de juros muito baixas em sua região, estavam em busca de retornos atraentes. Senegal, Zâmbia e Ruanda prometiam rendimentos de 6 a 8 % em seus títulos, por isso atraíram empresas financeiras que buscavam investir temporariamente seu dinheiro, mesmo que os riscos fossem altos. Os governos dos países pobres ficaram eufóricos e tentaram fazer com que suas populações acreditassem que a felicidade estava logo ali ao virar da esquina, embora de facto a situação pudesse mudar radicalmente. A imprensa internacional falou do afro-otimismo sucedendo o afro-pessimismo [3]. Os líderes africanos se vangloriavam de suas histórias de sucesso, atribuídas à sua capacidade de se adaptar à globalização neoliberal, à abertura dos mercados. O Banco Mundial, o FMI e o Banco Africano de Desenvolvimento (AfDB) os parabenizaram. No entanto, esses governos acumularam dívidas excessivas sem consultar seus cidadãos. Quando os bancos centrais decidiram aumentar as taxas de juros a partir de 2022, a situação financeira se deteriorou drasticamente.

domingo, 10 de setembro de 2023

Chile: 50 anos após a ignomínia — O neoliberalismo imposto a força de bala

Domingo, 10 de setembro de 2023

por Eric Toussaint , Roberto González Amador


Manifestação de jovens contrários à ditadura, após uma manifestação organizada pelo Comando Nacional dos Trabalhadores, 1 de maio de 1984. Arquivo Histórico Geral do Ministério das Relações Exteriores. Creative Commons Attribution 2.0 Chile

Com o golpe contra Salvador Allende, foi imposto um modelo económico contrário aos interesses das classes populares. O famoso «milagre» económico baseado nas privatizações revelou-se um verdadeiro inferno.



O golpe de estado contra o governo do presidente chileno Salvador Allende, faz este ano meio século, «pôs fim com uma violência brutal» ao rumo de vários países da América Latina em direcção à construção de um estado de bem-estar social e de soberania sobre os seus recursos naturais. «O Chile foi o prenúncio do que iria acontecer em todo o mundo nos 10 anos seguintes: a ofensiva, vinda do Norte, contra as políticas redistributivas dos rendimentos [pt-br: da renda], contra o desenvolvimento industrial endógeno e a construção do que se costuma chamar o estado de bem-estar social», afirma Éric Toussaint, fundador do Comité para a Anulação das Dívidas Ilegítimas (CADTM), rede internacional sediada na Bélgica, e membro do conselho científico da Associação para a Tributação das Transacções Financeiras (ATTAC) de França [ver ATTAC Portugal ou ATTAC no Mundo].

Visto a 50 anos de distância, o golpe contra o governo legitimamente eleito de Salvador Allende «é um marco histórico: impôs um modelo, apelidado neoliberal, através do exercício de uma violência brutal contra as classes populares», acrescenta Toussaint na entrevista a La Jornada.

«O modelo neoliberal – seja na versão chilena de Pinochet, na argentina de Carlos Menem, ou na mexicana de Carlos Salinas de Gortari – descambou em fracasso, apesar de todos os discursos sobre o suposto milagre. Do ponto de vista histórico, para a América Latina representou a privatização das suas economias e a «reprimarização» [1] (= regressão de uma economia que passou por um processo de industrialização diversificada, tornando-se mais dependente das suas exportações de matérias-primas - petróleo, gás, minerais sólidos, produtos agrícolas)», aponta Toussaint, crítico das políticas dos organismos financeiros internacionais em relação aos países do Sul, internacionalista e animador de movimentos como o Fórum Social Mundial.

O golpe de estado contra Salvador Allende impôs um modelo económico contrário às classes populares

Golpe de Estado no Chile em 11 de setembro de 1973.
Bombardeamento do Palácio de La Moneda
(Palácio do Governo). Biblioteca do Congresso Nacional.
CC BY 3.0 cl, 
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=16325488

Com o regime ditatorial de Augusto Pinochet, o general que encabeçou o golpe contra o presidente Allende, «inaugurou-se a onda neoliberal e a aplicação não só de um modelo económico, mas também político». O Chile, considera Toussaint, foi o laboratório para a imposição desse modelo, baseado, entre outras acções, em uma redução da intervenção do sector público na regulação das actividades económicas, acrescida da privatização de recursos estratégicos e da transferência para o sector privado de serviços como a saúde e a educação. [2]

Em matéria de políticas económicas, o golpe militar chileno ocorreu num contexto específico, segundo Toussaint: as décadas anteriores foram marcadas por políticas de crescimento e desenvolvimento orientadas pelo Estado, lançadas após o fim da Segunda Guerra Mundial nos países do Norte. O Chile serviu de laboratório para a imposição do modelo neoliberal: redução da intervenção pública na regulação económica; privatização dos recursos estratégicos; transferência de serviços públicos para as empresas privadasNesse contexto, economistas como Milton Friedman, que na Universidade de Chicago formou os principais economistas que levaram a cabo o modelo económico da ditadura chilena, «ou pensadores reaccionários» inspirados na chamada Escola Austríaca, ambicionavam, nos inícios da década de 1970, pôr fim a um período de mais de três décadas – consoante as regiões – e impor uma reviravolta a favor dos interesses das grandes empresas – interesses esses que, no caso do Chile, foram impostos literalmente à ponta de baioneta.

As políticas impostas no Chile a partir de 1973 «pretendiam acabar com um período, consoante as regiões, de cerca de 35 anos de políticas keynesianas no Norte e no Sul [3]; de políticas que afirmavam uma certa autonomia face ao imperialismo. Refiro-me a um período que na América Latina inclui Lázaro Cárdenas no México; Juan Domingo Perón na Argentina; e, no Brasil, Getúlio Vargas seguido de Juscelino Kubitschek et João Goulart. Ou seja, o Chile antecipa o que vai acontecer nos anos que se seguiram ao golpe de estado. É um marco histórico, porque assinala o início generalizado da ofensiva contra as políticas keynesianas de promoção do desenvolvimento promovido pelo Estado; contra as políticas de desenvolvimento levadas a cabo na América Latina, como propunha a Comissão Económica para a América Latina e Caraíbas (CEPAL) [pt-br: Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe]».

O golpe de estado de Pinochet foi o ponto de partida para uma viagem ao inferno neoliberal, que passou por novas etapas com a chegada ao poder de Margaret Thatcher no Reino Unido, em 1979, e Ronald Reagan na Casa Branca, em 1980
O golpe de Pinochet foi «o início de uma viagem» que teve outros dois marcos com a chegada ao poder de Margaret Thatcher no Reino Unido, em 1979, e de Ronald Reagan na Casa Branca, em 1980. «Trata-se de marcos históricos, da imposição de um modelo económico através do uso de uma violência brutal contra as classes populares e os movimentos de esquerda, como também aconteceu no Uruguai e na Argentina». Foi, acrescenta, «um período terrível de repressão na América Latina. Por isso falamos de um modelo económico, o neoliberal, com uma dimensão política muito clara, conservadora e inclusivamente acompanhada de repressão massiva, como aconteceu no Chile e na Argentina, por parte das forças armadas».

Toussaint chama a atenção para o facto de, em concomitância com o golpe de estado no Chile, ter havido não só o apoio dos EUA, do seu exército e das suas organizações de espionagem, mas também de organismos financeiros como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

– Quais foram alguns dos interesses económicos que criaram condições ou apoiaram o golpe contra o presidente Allende?

– Uma das razões para derrubar o o governo de Allende foi a nacionalização do cobre. Ela afectou as grandes empresas norte-americanas, que pressionaram o governo dos EUA e sustentaram os militares da direita chilena. Depois começou-se a implantar o modelo a partir de privatizações massivas, reprivatização, liberalização dos investimentos e contracção de dívida externa. Tudo isto seguindo o princípio de que para atrair investimentos, há que privatizar e aprovar leis para «proteger» esses investimentos contra qualquer nacionalização. Com o passar dos anos, até os responsáveis pela política económica chegaram a defender que havia outras soluções além desse tipo de políticas económicas.
A América Latina privatizou as suas economias e tornou-se uma exportadora de matérias-primas, quando nas décadas anteriores ao golpe estava em curso um processo de industrialização em vários países
Eu diria que não havia outro caminho para o inferno. Para percorrer esse caminho foi feita propaganda assente na presunção do milagre do modelo chileno, seguido da propaganda sobre o suposto milagre de Salinas de Gortari no início dos anos 1990 no México. Mas todos esses modelos fracassaram. No Chile, houve uma crise geral dos bancos, sob a ditadura de Pinochet, que tiveram de ser resgatados, assim como no México, Equador e noutros países. A América Latina privatizou as suas economias e tornou-se exportadora de matérias-primas ou sede de fábricas de montagem [de baixo valor acrescentado]. Por exemplo, fábricas de automóveis onde não são produzidas as peças, apenas são importadas e montadas por operários/as pouco qualificados e mal pagos. Ora, nas décadas anteriores ao golpe, estava em curso um processo de industrialização em vários países.

General Augusto Pinochet, chefe da ditadura militar. Biblioteca do Congresso
Nacional do Chile.
CC BY 3.0 cl

– Que se passa agora com essa forma de conceber a política económica?

– O nível de reprovação das maiorias nos países da América Latina começou a expressar-se claramente depois das ditaduras e da crise da dívida dos anos Oitenta do século passado. Podemos citar os protestos na Venezuela em 1989 (conhecidos como Caracazo), movimentos como o dos zapatistas no México (a partir de 1994) e as eleições de Hugo Chavez na Venezuela, de Rafael Correa no Equador, e Evo Morales na Bolívia, entre finais dos anos 1990 e inícios deste século. Há uma nova vaga de governos progressistas, mas não vemos uma ruptura com o modelo económicoO factor comum foi a retoma do controlo dos recursos naturais, como o petróleo e o gás. Recentemente assistimos às vitórias eleitorais de Andrés Manuel López Obrador, no México, em 2018; Alberto Fernández, na Argentina, em 2019; e, mais recentemente, em 2022 e 2023, Gabriel Boric, Gustavo Petro e Lula, respectivamente no Chile, na Colômbia e no Brasil.

Há uma nova onda de governos progressistas, mas não vemos uma ruptura com o modelo económico. O que fazem é erguer uma política assistencialista, que é importante, sem dúvida, mas não vemos qualquer vontade de imprimir uma mudança estrutural.


Fonte: La Jornada, 1-09-2023, p. 17
Tradução: Rui Viana Pereira

Notas

[1Reprimarização: Há três grandes sectores económicos: o sector primário (exploração directa dos recursos naturais), o sector secundário (indústrias transformadoras) e o sector terciário (serviços). Regra geral, quanto mais as economias progridem e integram tecnologia, mais reforçam os sectores secundário e terciário. Nos países particularmente ricos em matérias-primas, contudo, a fatia do sector primário cresce por vezes em detrimento da restante economia. Chama-se a isso «reprimarização». Fonte: https://www.monde-diplomatique.fr/publications/manuel_d_economie_critique/a57221

[2Éric Toussaint demonstra no livro História Crítica do Banco Mundial, cap. 7, que nas Filipinas se verificou uma evolução parcialmente semelhante, a partir da segunda metade de 1972. Ver em linha «O Banco Mundial e as Filipinas».

[3No Brasil houve uma reviravolta brutal e antipopular, com o apoio de Washington, a partir de fins de março de 1964, quando os militares derrubaram o governo progressista do presidente João Goulart. Ver «Brasil: 55 anos após o derrube do presidente democrático João Goulart, o novo presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro ordenou a celebração do golpe de Estado militar de 1964».

Eric Toussaint 

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.
É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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