Por décadas, o Estado criou dinheiro a partir do nada para financiar infraestrutura e bem-estar dos migrantes internos. Agora, fará o mesmo pela tecnologia de ponta e por novas políticas públicas. Loucura? Só para quem subordinou-se ao rentismo
OutrasPalavras Pós-Capitalismo
OutrasPalavras
por Elias Jabbour
Publicado 13/02/2025 às 16:57 - Atualizado 13/02/2025 às 19:35

Por Elias Jabbour
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> O texto a seguir integra o número 9 (janeiro de 2025) do boletim do Observatório do Século XXI, parceiro editorial de Outras Palavras. A edição examina a história e as perspectivas geopolíticas e econômicas da América do Sul. Pode ser baixada e lida aqui.
> Título original:
Nova politica fiscal e monetária chinesa para 2025
Antes de tudo, um relato pessoal. Ainda em Xangai e em uma conversa com uma grande autoridade brasileira, em um posto de relevância estratégica ao bloco dos BRICS, o assunto do endividamento local chinês veio à tona. Quem acompanha os panfletos da ortodoxia universal sabe muito bem que uma das grandes apostas contra o “modelo” chinês está na suposta insustentabilidade dos débitos dos entes subnacionais acumulados desde a reação chinesa à crise de 2007/2008.
De forma tranquila procurei demonstrar que o “modelo” chinês tem como base fiscal e monetário um grande fato: moeda criada pelo Estado sob intermediação financeira pública que é emprestada para empresas do Estado, províncias, municípios e empresas não públicas. Ou seja, a mim está clara uma das características de uma economia de projetamento, na forma como surge na China. Trata-se do casamento entre monopólio do Partido Comunista sobre a grande propriedade pública, na indústria e na finança, e o exercício consciente de sua soberania monetária para fins de entrega de bens e serviços. Como diria o pai da “Economia do Projetamento”, Ignacio Rangel, “projetamento é a busca da razão, na relação entre custo e benefício de cada projeto”.
Na China, a moeda é um bem público — ao contrário do Brasil, onde, dado o poder do sistema financeiro sobre os destinos da política monetária, a moeda é quase um ente privado. Continuando a conversa, ainda com muita tranquilidade, disse que o endividamento local não é uma contradição do “modelo”, mas um atributo da dinâmica de desenvolvimento. Uma sobrevivência das relações entre governo central e províncias desde a milenaridade do modo de produção asiático. A minha conclusão foi objetiva e assustadora a quem ouvia. “Em breve, a China vai encontrar uma solução para isto”. Algumas semanas depois, precisamente na primeira semana de novembro, o governo central anunciou um grande pacote fiscal de US$ 1,4 trilhão, tanto para aplacar as dívidas locais quanto para recomprar a concessão de terras a incorporadas atingidas pela crise imobiliária.
Foi apenas um entre outros 14 pacotes fiscais, anunciados entre setembro de 2024 e dezembro de 2025. O primeiro anúncio de 2025 já foi feito com um aumento-surpresa nos salários de 48 milhões de servidores públicos chineses. Esse aumento equivale a uma injeção de quase três bilhões de dólares na economia do país. Ou seja, o governo chinês já inicia o ano com uma medida com algum impacto sobre a capacidade de consumo de milhões de pessoas. Mas o que se pode esperar em termos de políticas fiscal e monetária para 2025?
Como nos acostumamos no Brasil e observar o fiscal e o monetário fins em si mesmos, e parte de uma operação simplesmente contábil, pode parecer estranho relacionar a submissão do monetário e o fiscal aos objetivos estratégicos de um país e, mesmo às suas ambições geopolíticas. Não deveria ser novidade, desde o momento que observamos que a Inglaterra pós-Revolução Industrial transformou a dívida pública em poderosa arma política. Da mesma forma que a China deverá manter políticas cada vez mais ousadas e expansivas nos campos monetário e fiscal. As razões são domésticas (necessidade de geração anual de 12 milhões de empregos urbanos/ano) e, sobretudo geopolíticas/tecnológicas, pois o país está disputando palmo a palmo a liderança da atual revolução técnico-científico em vários níveis, com ênfase nas indústrias relacionadas à transição energética. Voltarei a isso.
Políticas monetárias e fiscais expansivas também se impõem diante da corrida chinesa pela autonomia nas chamadas infraestruturas dos semicondutores e na Inteligência Artificial. Se Biden e, agora, Trump, lançaram mão de trilhões de dólares para jogar à frente a fronteira tecnológica nestes setores, a China faz o mesmo em termos de catching-up. Ou seja, enquanto o Brasil, fiel à ultrapassada teoria quantitativa da moeda, discute se os pobres têm o direito de uma velhice digna sem afetar o “equilíbrio fiscal”, na China (e nos Estados Unidos) queima-se, em linguagem figurada, “dinheiro em praça pública” – para ver quem chega primeiro no topo da montanha na corrida pela dianteira da fronteira do conhecimento.
Ciência, tecnologia e inovação custam trilhões de dólares a fundo perdido. Entre 2025 e 2030 a previsão é de investimentos da ordem de US$ 1,4 trilhão na China, somente em Inteligência Artificial. Em 2024, somente em circuitos integrados foram quatro pacotes, da ordem de US$ 40 bilhões cada. Voltando aos investimentos em energias limpas, como não estão consolidados os números de 2025, vale lembrar que tal movimento é parte do esforço de liderança do país nestas áreas, mas também busca acelerar outra transição. Uma economia que durante décadas foi sustentada por imensos investimentos em infraestruturas e no setor imobiliário passou a se desenvolver-se com base em investimentos vultosos na fronteira tecnológica.
Nada indica que isso irá mudar em 2025, ainda mais levando em conta o empenho dos Estados Unidos em manter e ampliar seu bullying tecnológico contra a China. Abrindo um parêntese, vale lembrar que a fase anterior levava em conta a necessidade de abrigar dezenas de milhões de chineses em trânsito do campo para a cidade. Para termos ideia, entre 2014 e 2023, duzentos milhões de pessoas tornaram-se cidadãos urbanos na China, o que demanda um esforço de planificação deste processo que as ciências sociais não estão preparadas para mensurar.
Em 2023, o crescimento dos investimentos em energia limpa foi 40% maior que o verificado em 2022, alcançando US$ 890 bilhões. Este nível de inversões é comparável ao PIB de países como a Suíça ou a Turquia, destacando a escala do compromisso da China com a energia limpa. A contribuição do setor de energia limpa para a economia chinesa foi de US$ 1,6 trilhão em 2023, refletindo um aumento de 30% em relação ao ano anterior. Esse crescimento fez dos setores de energia limpa o maior motor da expansão econômica da China, respondendo por 40% do crescimento total do PIB. Sem seu avanço, o PIB da China teria ficado abaixo da meta do governo, alcançando apenas 3%, em vez dos 5,2% almejados naquele ano.
Resumindo a ópera, nada indica uma mudança nos rumos da política fiscal e monetária chinesa para 2025. Ao contrário, nesta luta existencial pela autonomia tecnológica, muito dinheiro deverá continuar a ser “queimado em praça pública”. A lógica de contabilidade que domina a mente de países que desistiram de si mesmos não combina com o fundamental no mundo, desde o surgimento do sistema interestatal moderno: a riqueza das nações.
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