Domingo, 1º de dezembro de 2024
O endosso dos chefes militares aos acampamentos bolsonaristas. A naturalização da ideia de ruptura institucional. As declarações para intimidar o campo democrático. O papel da mídia comercial. Uma síntese da relação entre Forças Armadas e golpismo, para além do inquérito da PF
OutrasPalavras
por Glauco Faria
Publicado em OUTRASPALAVRAS em 27/11/2024
Antes do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes levantar o sigilo sobre o inquérito que investiga a tentativa de golpe de Estado no Brasil, por parte do entorno do então presidente Jair Bolsonaro (PL), outra notícia passou quase despercebida, um dia antes.
Após pedido feito em uma ação civil pública protocolada pelo Ministério Público Federal (MPF), o Comando do Exército se negou a mudar o nome da 4ª Brigada de Infantaria Leve de Montanha, sediada em Juiz de Fora (MG). A unidade é denominada “Brigada 31 de Março” e se refere não só à data oficial do início da ditadura em 1964 como também ao dia em que tropas lideradas pelo general Olympio Mourão Filho, chefe da unidade na cidade mineira, partiram dali em direção ao Rio de Janeiro para depor o presidente João Goulart.
O MPF também pedia que os militares da unidade fizessem um curso sobre o “caráter ilícito do golpe militar de 1964” e as conclusões da Comissão Nacional da Verdade a respeito do regime, o que também foi negado pelo Exército. “Não há necessidade de criação de qualquer novo curso para os integrantes da 4ª Brigada de Infantaria Leve Motorizada, tendo em vista que os assuntos relacionados aos temas dos direitos humanos constam na capacitação de seus quadros”, aponta o Comando, em sua justificativa.
Este nem de longe é um episódio trivial. As investigações da Polícia Federal sobre a trama golpista mostram não somente o envolvimento de militares da ativa e da reserva como também apontam para uma certa naturalidade em relação à discussão sobre ruptura institucional. A certa altura, em uma das mensagens trocadas com outro tenente-coronel, o ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, reclama: “Em 64 não precisou assinar nada”.
Tanto no caso de Juiz de Fora como no da organização criminosa investigada pela PF, fica evidente que existe uma noção deturpada a respeito do golpe de 1964 e do próprio papel das Forças Armadas na vida republicana do país. Acostumados a interferir em diferentes graus na vida pública e institucional brasileira, os integrantes da caserna têm uma percepção de democracia no mínimo peculiar, atribuindo às Forças Armadas o papel de Poder Moderador que poderia intervir em casos de crise ou conflito de Poderes.
É sintomático ter sido achado em poder do Coronel Peregrino, assessor de Walter Braga Netto, um documento intitulado “Minuta 142”, referência ao artigo da Constituição invocado pelos militares para justificar essa suposta carta-branca de intromissão. A maciça maioria dos juristas sempre rejeitou a tese e, em abril deste ano, o STF foi assertivo. “A chefia das Forças Armadas é poder limitado, excluindo-se de seu âmbito qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes, relacionando-se a autoridade sobre as Forças Armadas às competências materiais atribuídas pela Constituição ao Presidente da República.”
Nada disso parece valer para quem se acha acima dos Poderes constituídos, inclusive do próprio Judiciário. E, diante deste cenário, é pouco crível a tentativa de “separar o CPF do CNPJ”, como dizem comentaristas da mídia corporativa. O DNA das Forças, como instituição, está na raiz do golpismo.
Golpismo arraigado
A versão que parte da mídia corporativa quer passar é que o golpe só não avançou ainda mais, a partir de suas tratativas, por que não foi possível conseguir a adesão de dois dos três comandantes do alto escalão militar: o general Marco Antonio Freire Gomes, comandante do Exército, e o tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, líder da Aeronáutica. Já o almirante Almir Garnier (comandante da Marinha) “se colocou à disposição”.
Ambos teriam sido instados a participar da trama em reuniões com o próprio presidente Jair Bolsonaro e, em outras ocasiões, pelo ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, com o então candidato a vice na chapa do PL, general Braga Netto, determinando ataques pessoais aos dois por meio das chamadas milícias digitais.
Ambos têm sido tratados como heróis (e este termo foi utilizado de fato) por alguns jornalistas e outras figuras públicas. O fato de terem sabido que um golpe estava em andamento e nada terem dito a ninguém ou comunicado às autoridades policiais não seria prevaricação, mas sim um cuidado extremo em função de um momento delicado no qual alguma fagulha poderia incendiar o palheiro.
Contudo, eles também não falaram a respeito de forma espontânea, mesmo depois de Bolsonaro não estar no poder e do 8 de janeiro já ter passado. Só quando foram convocados como testemunhas resolveram dizer o que sabiam.
É bom relembrar como os dois, com Garnier, chegaram ao mais alto posto da carreira militar. A posse aconteceu depois de uma inédita saída tripla do comando das Forças em 30 de março de 2021, quando saiu também do Ministério da Defesa o general Fernando Azevedo e Silva. Junto com Braga Netto, o trio foi promovido porque seria mais alinhado ao presidente do que os ocupantes anteriores.