Segunda, 11 de julho de 2016
Do resistir.info
A globalização e os trabalhadores do mundo
por Prabhat Patnaik
[*]
Apresentando este argumento de modo diferente, uma vez que o livre movimento de
bens e capital através do mundo aumenta a competição entre
trabalhadores dos diferentes países, haveria alguma tendência rumo
a um apagamento das diferenças salariais entre estes países. E
ainda que isto significasse algum aumento nos salários reais dos
trabalhadores do terceiro mundo, significaria também uma
redução nos salários reais dos trabalhadores
metropolitanos.
Este argumento pode ser expressos mais precisamente nos termos das categorias
da análise econômica marxiana como se segue: a
globalização ao comutar atividades econômicas dos
países avançados para o terceiro mundo (devido aos
salários baratos deste último) utilizaria reservas de trabalho
nestes enquanto acrescentaria reservas de trabalho aos primeiros. Isto, tudo o
mais permanecendo constante, elevará salários nos últimos
e reduzirá nos primeiros. A globalização portanto, apesar
de não beneficiar
todos
os trabalhadores,
reduzirá
o diferencial entre os trabalhadores nos países avançados e
aquele no mundo subdesenvolvido. Mas de acordo com este argumento,
ela possivelmente não pode piorar as condições do povo
trabalhador em ambas as partes do mundo.
PIORIA DAS CONDIÇÕES
Isto, no entanto, é precisamente o que tem acontecido. A
globalização certamente piorou as condições dos
trabalhadores nos países metropolitanos, um fato recentemente destacado
pelo economista Joseph Stiglitz. Quase 90 por cento dos americanos, o que
significa quase toda a população trabalhadora daquele
país, hoje tem rendimentos reais que estão muito pouco acima do
que eram há um terço de século atrás. Hoje os
salários mínimos dos trabalhadores americanos estão, em
termos reais, pouco acima do que eram há 60 anos atrás. Uma vez
que houve algumas melhorias nestas magnitudes na primeira parte destes anos, o
que isto significa é que houve uma
deterioração
no período mais recente, o que coincide com o auge da
globalização.
Estatísticas ainda mais impressionantes descrevem o declínio
drástico da expectativa de vida entre homens americanos brancos nos anos
recentes, um declínio que recorda a queda drástica da expectativa
de vida que se verificou na Rússia após o colapso da União
Soviética. Um declínio da expectativa de vida, quando não
há qualquer epidemia óbvia, é um assunto muito grave. E
descobrir um tal declínio no mais avançado país
capitalista do mundo testemunha o assalto aos meios de vida do povo trabalhador
que a globalização provocou.
Uma história muito semelhante pode ser contada acerca de outros
países capitalistas avançados. Sustenta-se habitualmente que os
EUA são uma das economias com mais êxito, a primeira sede dos
booms dos anos 90 e da primeira década do século atual,
originadas respectivamente pelas bolhas "dotcom" e
"habitacional", e também a economia que aparentemente
está a ver um ressuscitar após o colapso da bolha habitacional.
Considerando isto, o facto de que a população trabalhadora
naquele país esteja a enfrentar tais dificuldades é extremamente
significativo. No Reino Unido, nestes últimos anos houve uma queda
drástica nos salários reais dos trabalhadores. Não
é de admirar portanto que o descontentamento com a
globalização seja generalizado entre os trabalhadores das
economias metropolitanas, os quais, uma vez que até agora a esquerda
não tomou adequado conhecimento disto, estão a ser explorados
pela direita. Fenômenos como a votação do
"Brexit" e a emergência de Donald Trump são
explicáveis a esta luz.
No entanto, o que é inexplicável na argumentação
que estamos a discutir é o fato de que o povo trabalhador está
em pior estado mesmo numa grande faixa dos países de baixo
salário do terceiro mundo, dos quais a Índia é um exemplo
excelente. A mais irrefutável evidência disto vem de dados de
consumo alimentar. Tomando o inquérito do
NSS
para os anos 1993-94 e 2009-10, os quais correspondem em termos gerais ao
período de políticas neoliberais associadas à
globalização, as percentagens do total da população
rural com uma ingestão de calorias abaixo das 2.200 por pessoa por dia (a
"referência" para definir pobreza rural) nestas duas datas
foram 58,5% e 76% respectivamente. As percentagens da população
urbana abaixo das 2.100 calorias por pessoa por dia (a
"referência" para definir pobreza urbana) nestas duas datas
foram 57% e 73% respectivamente.
Tão gritante foi este aumento, especialmente durante um período
em que se supunha que a Índia estivesse a experimentar taxas de
crescimento do PIB sem precedentes, que o governo ordenou um novo
inquérito do NSS para o ano 2011-12, o qual foi um ano de grande
colheita, com base em que os números da ingestão de calorias de
2009-10, um fraco ano agrícola, haviam sido excepcionalmente baixos
devido às fracas colheitas. Quando este inquérito foi completado,
os números que ele vomitou, embora sem dúvida melhores do que
2009-10 havia indicado,
ainda mostravam um notável aumento nas percentagens de
população abaixo destas normas de calorias durante o
período da globalização:
para a população rural a percentagem foi 68 (a comparar com
58,5% de 1993-94) e para a população urbana foi de 65% (a
comparar com os 57% de 1993-94). Tanto a ingestão per capita de calorias
como a de proteínas da população mostram declínio
durante este período.
Procurou-se explicar este aumento da deficiência nutricional de
vários modos, incluindo a sugestão de ser indicação
de que o povo estava a ficar numa situação melhor e a diversificar
o seu consumo afastando-se da alimentação em
direção a outras coisas como educação e cuidados
de saúde. Mas estas explicações eram claramente
espúrias: por toda a parte do mundo, quando rendimentos reais aumentam o
povo consome maiores quantidades de cereais
direta e indiretamente
(na forma de alimentos processados e produtos animais em cuja
produção os cereais entram como rações). Assim, a
descoberta de que na Índia havia um declínio real na
absorção de cereais para todas as utilizações e
portanto declínio tanto na ingestão de calorias como de
proteínas durante o período da globalização
indicava claramente que os rendimentos reais dos trabalhadores, depois de
considerar a inflação,
especialmente a ascensão de preços que acompanha a
privatização de serviços essenciais como
educação e cuidados de saúde,
estavam em média a declinar ao invés de aumentar em termos per
capita. Por outras palavras, um fenômeno semelhante àquele dos
países capitalistas avançados também estava a verificar-se
na Índia e em vários outros países do terceiro mundo, o
que contraria a argumentação apresentada acima. Na verdade
contraria tanto que poucos mesmo acreditam ser verdadeira. Como explicar isto?
ESMAGAMENTO DA PEQUENA PRODUÇÃO
A argumentação apresentada acima assumia basicamente que a
essência da globalização consistia na
comutação de atividade dos países avançados para
economias do terceiro mundo e que uma tal comutação basicamente
esgotaria as reservas de trabalho do terceiro mundo, levando a uma
ascensão salarial. O que é esquecido é que a
globalização também tem outros efeitos, incluindo acima de
tudo um esmagamento da pequena produção pelo setor capitalista.
O resultado é que muitos pequenos produtores abandonam suas
ocupações tradicionais para migrarem para as cidades em busca de
emprego, o que incha o total do exército de trabalho para o capitalismo.
Esta migração, juntamente com aumento natural da força de
trabalho, não pode ser absorvida dentro do exército de trabalho
ativo, porque políticas neoliberais associadas à
globalização também levam a uma remoção de
todas as restrições sobre o ritmo da mudança estrutural e
tecnológica, a qual aumenta o ritmo do crescimento da produtividade do
trabalho a expensas do crescimento do emprego.
Desenvolve-se um círculo vicioso aqui. Na medida em que incham as
reservas de trabalho em relação à força de trabalho, isto
leva a uma estagnação ou mesmo ao declínio da taxa
salarial média real (e certamente a um declínio dos rendimentos
reais dos trabalhadores, os quais equivalem à taxa salarial real
diárias multiplicada pelo número de dias de emprego). A
estagnação ou declínio dos salários reais numa
situação de ascensão da produtividade do trabalho resulta
numa ascensão da fatia de excedente no produto. Uma vez que o excedente,
mesmo que assumamos ser plenamente realizado (isto é, que não
há problemas de procura agregada deficiente), é tipicamente
gastos em commodities as quais são menos geradoras de emprego interno do
que aquelas nos quais são gastos rendimentos salariais, tal
comutação de salários para excedente tem um efeito
ulterior de contração do emprego e, portanto, contribui ainda
mais para uma ascensão da dimensão relativa das reservas de
trabalho e para ainda mais comutação de salários para
excedente; e assim por diante.
Este círculo vicioso, que se agrava ainda mais quando se verifica uma
crise (porque as reservas de trabalho em relação à
força de trabalho então incham ainda mais), implica que o efeito
da globalização em acentuar a pobreza absoluta visita os
trabalhadores também em economias do terceiro mundo e não
está confinado apenas a trabalhadores metropolitanos tal como
economistas liberais como Samuelson imaginaram.
Dizer isto não significa sugerir que todos os segmentos da força
de trabalho sejam igualmente afetados de modo adverso pela
globalização. Evidentemente aqueles segmentos que desfrutam
maiores oportunidades de emprego devido à mudança de atividades
testemunham um aumento de padrões de vida e este segmento na
Índia consiste tipicamente de empregados colarinho branco do setor de
serviços, tais como aquele envolvidos em serviços relacionados
com tecnologias de informação. O aumento dos seus padrões
de vida tem por sua vez efeitos multiplicadores sobre o emprego em outros
setores de serviços e assim por diante. Portanto um segmento,
habitualmente classificado como classe média, cuja dimensão
absoluta é bastante grande (apesar de ser pequena em
relação à força de trabalho como um todo), torna-se
um devoto da globalização. Uma vez que este segmento é
articulado e tem um peso desproporcionadamente grande nos media e na
formação de opiniões, ele torna-se um instrumento
útil nas mãos da oligarquia corporativa-financeira que
está integrada no processo de globalização, por
propagandear seus efeitos benéficos.
A condição melhorada de um segmento classe média da
força de trabalho, e seu consequente apoio à
globalização, é utilizada para criar a falsa
impressão de que a globalização tem sido boa para o povo
indiano como um todo. Uma utilização semelhante também se
faz em outras parte do mundo de segmentos da classe média, os quais
tem-se beneficiado
inter alia
da imensa financiarização que tem acompanhado a
globalização. Tudo isto criou um ruído que nos impede de
reconhecer que a globalização realmente resultou numa pioria das
condições de amplas massas de trabalhadores, tanto em
países avançados como subdesenvolvidos.
10/Julho/2016
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2016/0710_pd/globalisation-and-world's-working-people
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Já não há consensos e ninguém se entende nos seus organismos.
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Para comparação: esta exposição do Deutsche Bank a derivativos é 20,6 vezes
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