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(Millôr Fernandes)

domingo, 3 de setembro de 2023

Éric Toussaint: «Faltam líderes para enfrentar os credores da dívida»

 Domingo, 3 de setembro de 2023

Do 

Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo
1 de Setembro por Eric Toussaint , Jorge Muracciole

Agencia de Noticias ANDES, CC, Wikimedia Commons, https://commons.wikimedia.org/wiki/File:MANIFESTACIONES_13_AGO_%2819935434763%29.jpg

O porta-voz do Comitê para a Abolição de Dívidas Ilegítimas adverte que em 2023-2024 «todos os recordes de ajuste fiscal no Sul Global serão quebrados». Ele também afirma que «o FMI é muito mais forte do que era há duas décadas».



Éric Toussaint entrevistado por Jorge Muracciole

A revista Tiempo Argentino entrevistou Éric Toussaint, porta-voz da rede internacional do Comitê para a Abolição de Dívidas Ilegítimas, de Buenos Aires.

Jorge Muracciole: O CADTM está falando de uma nova crise da dívida internacional. Quais são os gatilhos para essa nova crise da dívida que está surgindo?

Éric Toussaint: Houve vários choques externos sucessivos, vindos dos países do Norte, que afetaram o Sul e causaram um agravamento da questão da dívida. O primeiro choque foram os efeitos da pandemia, primeiro no Norte geográfico e depois nas populações do Sul. Em países como Peru, Equador e Brasil, os efeitos foram realmente dramáticos. A pandemia teve sérias repercussões econômicas, agravadas pelo custo do combate ao vírus para os governos, o que, em muitos casos, levou ao aumento do endividamento externo e interno. Em 2020 e 2021, muitos governos preferiram financiar a luta contra os efeitos da pandemia recorrendo à dívida, em vez de tributarem os principais conglomerados econômicos, como as «Big Farma» ou a GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft), que obtiveram dezenas de bilhões em lucros com a pandemia.

Jorge Muracciole: E os outros choques?

Éric Toussaint: O segundo foi a invasão da Ucrânia pela Rússia, que desencadeou uma enorme especulação por parte do oligopólio que controla amplamente os preços do comércio mundial de cereais, elevando o preço do trigo e de outros cereais, produtos dos quais a Ucrânia e a Rússia são grandes exportadores. A especulação foi desencadeada no mercado oligopolista, sendo 80 % do comércio internacional de cereais controlado por quatro multinacionais (três dos Estados Unidos e uma da Europa). Os preços dos fertilizantes e dos combustíveis também aumentaram. Esse novo cenário penalizou fortemente os países do Sul, que são importadores líquidos de cereais, especialmente no continente africano, do Egito ao Senegal, passando pela Tunísia.

Diante desses choques externos, a dívida pública aumentou ainda mais, pois os governos tiveram que lidar com o aumento dos gastos que se recusaram a financiar por meio de impostos sobre empresas de petróleo e gás, grandes empresas de distribuição e grandes empresas do agronegócio. O 1 % mais rico não foi tributado e continuou a ficar mais rico do que nunca.

O terceiro choque foi a decisão unilateral do Federal Reserve dos EUA e dos bancos centrais europeu e britânico de aumentar drasticamente as taxas de juros a partir de 2022, de 0,25 % para 5,25 % nos Estados Unidos e no Reino Unido, e de 0 % para 4,25 % na zona do euro. As consequências financeiras foram muito duras para os países do Sul, pois os fluxos financeiros que na etapa anterior foram direcionados para o Sul, diante dos novos rendimentos das taxas de juros dos países centrais do Norte, foram direcionados para a compra de títulos soberanos de países europeus ou dos Estados Unidos, que passaram a oferecer maior rentabilidade e maior segurança. Os credores do Norte exigem taxas de juros cada vez mais altas do Sul. As classes dominantes do Sul também estão se beneficiando, pois estão comprando títulos da dívida pública interna e externa.

 Na década de 1980 houve uma grande campanha para suspender o pagamento da dívida externa encabeçada por líderes como Fidel Castro ou Thomas Sankara


Jorge Muracciole: Esse é um contexto histórico diferente daquele da década de 1980, quando houve uma grande campanha para suspender o pagamento da dívida externa encabeçada por líderes como Fidel Castro ou Thomas Sankara, presidente de Burquina Faso, na África.

Éric Toussaint - As semelhanças se encontram no aumento unilateral do Federal Reserve dos EUA e dos bancos centrais dos países europeus. A grande diferença é que, na situação atual, não temos líderes como Fidel Castro em Cuba [1] ou Thomas Sankara, o jovem líder de Burquina Faso [2]. Na atual situação de endividamento, os governos progressistas não têm o radicalismo, a criatividade e a coragem dos governos que lideraram a oposição ao aumento do pagamento da dívida. Até mesmo o atual governo cubano não desafia os credores e adota um perfil muito discreto quando é atacado pelos fundos abutres nos tribunais britânicos. No caso de Burkina Faso, há um grande fosso entre a prática real e a retórica radical do atual presidente, o capitão Ibrahim Traoré, contra os credores e seu modelo econômico predatório. No início de julho de 2023, Burkina Faso assinou um acordo com o FMI no valor de 300 milhões de dólares. No caso de Mali, o governo também continua os pagamentos. No caso de Níger, a junta militar acaba de nomear Ali Mahaman Lamine Zeine como primeiro-ministro, um homem do Banco Mundial e do Banco Africano de Desenvolvimento que estava no cargo no Chade. Esse neoliberal convicto foi, em 2008, ministro das Finanças do presidente Mamadou Tandja [3]. Também podemos apontar a atitude do governo do Sri Lanka: depois que o povo se revoltou contra o clã do presidente em 2022, o novo governo assinou um acordo muito desfavoravel com o FMI. Sem mencionar o governo da Argentina, que, ao firmar um nefasto acordo com o FMI, favoreceu a ascensão brutal da extrema direita nas eleições preliminares de agosto de 2023.

Faltam líderes que se oponham aos credores e atuem para mudar o equilíbrio de poder em favor do povo. Precisamos contar com a mobilização dos de baixo e com a capacidade das classes populares de enxergar a realidade para se mobilizarem em favor de uma mudança estrutural real. Com isso em mente, o Comitê para a Abolição de Dívidas Ilegítimas está convocando uma contra-cimeira dos povos a ser realizada em Marraquexe em outubro, na ocasião da reunião anual do Banco Mundial e do FMI a ser realizada no Marrocos.

Jorge Muracciole: Os povos originários, em particular na província argentina de Jujuy, estão lutando para garantir seu direito à terra e contra a usurpação de empresas extrativistas em conluio com o Estado provincial. Essas práticas fazem parte das ações das principais empresas de mineração por trás de um dos maiores depósitos de lítio do mundo.

Éric Toussaint: A luta exemplar no norte da Argentina é uma demonstração clara da resistência do povo ao extrativismo. Essas lutas não estão ocorrendo apenas no Sul, mas também em outras latitudes, nas minas a céu aberto da Alemanha ou no movimento exemplar da ativista sueca Greta Thunberg. O desenvolvimento da ação repressiva provocou uma resposta dos jovens dos subúrbios de Paris e em outras cidades francesas.

Jorge Muracciole: Podemos ver que os países que costumavam se orgulhar de serem exemplos de funcionamento democrático estão tomando um rumo autoritário, como aconteceu na França com a reforma da previdência, a dura repressão aos protestos e o desprezo pelo poder legislativo. Em vários países, a extrema direita está tirando proveito da desilusão e do descontentamento popular. Na Argentina, esse é o caso com fenômeno Milei.

Éric Toussaint: Há décadas, nos países do Sul, a questão da dívida tem sido usada como pretexto para a aplicação de políticas de ajuste diametralmente opostas às necessidades da população. O ano de 2023 bateu todos os recordes de maior número de ajustes fiscais, e o FMI está na ofensiva em todos os países. Nos últimos três anos, concedeu mais de 100 empréstimos em vários países, aproveitando-se da pandemia e, mais recentemente, dos efeitos econômicos da guerra na Ucrânia, com um plano para privatizar e reduzir os direitos dos trabalhadores. O FMI é muito mais forte do que era há vinte anos. Em 2005, países como o Brasil e a Argentina pagaram antecipadamente suas dívidas com o FMI para se livrarem de suas condicionalidades. Mas com os empréstimos à Argentina e a 100 outros países como Egito e Gana, e outros na Ásia (Paquistão, Sri Lanka, Bangladesh), políticas violentas com ajustes selvagens estão sendo implementadas.

Jorge Muracciole: No editorial da revista do CADTM Les Autres Voix de la Planète, é enfatizado que, tanto no Norte quanto no Sul, a dívida está em uma encruzilhada e que a única maneira de lidar com ela é intensificar as lutas.

Éric Toussaint: Precisamos de um diagnóstico que reflita a realidade. Entre 1985 e 2015, vimos um boom de movimentos contra a dívida. A decisão da Argentina de não pagar sua dívida no final de 2001, o não pagamento da dívida com a auditoria no Equador no início do governo de Rafael Correa em 2008-2009 [4], até o triunfo do Syriza na Grécia em 2015. Desde a capitulação do Syriza [5], os movimentos contra a dívida começaram a minguar até agora, com algumas exceções, como as grandes mobilizações contra o FMI na Argentina e no Equador. O desafio é enfrentar a nova crise da dívida. Precisamos consolidar cada vez mais forças sociais e concentrar seus esforços em nível intercontinental e internacional para realizar auditorias, suspender pagamentos e repudiar a dívida.

Estamos no meio de uma crise global do capitalismo

Jorge Muracciole: A luta contra o capitalismo se tornou mais urgente por causa de sua natureza predatória e destruidora do meio ambiente.

Éric Toussaint: É uma ilusão imaginar que o capitalismo em sua forma atual seja capaz de se reformar. Houve uma época, após a Segunda Guerra Mundial, em que o próprio capitalismo fez alguma concessão social, até mesmo com algumas medidas desenvolvimentistas. Hoje, estamos diante de um «capitalismo sem alento», que está passando por uma crise multifacetada: uma crise ecológica, climática e ambiental, mas também uma crise alimentar – em 2023, temos 250 milhões a mais de seres humanos sofrendo de fome, em relação a 2014. Estamos vivendo uma crise global do capitalismo que deve ser enfrentada por uma resposta global anticapitalista, feminista, ecologista e antirracista.


Notas

[3] Ali Mahaman Lamine Zeine também trabalhou para o Banco Africano de Desenvolvimento (BAB), que representou no Chade, Costa do Marfim e Gabão. Em 2001, quando Mamadou Tandja assumiu o poder no Níger, ele rapidamente nomeou Ali Mahaman Lamine Zeine como chefe de gabinete e depois ministro das Finanças, em um momento em que o país passava por uma grave crise econômica. Ali Mahaman Lamine Zeine pertence ao partido do presidente Tandja, o MNSD-Nassara, o antigo partido único.

Eric Toussaint 

docente na Universidade de Liège, é o porta-voz do CADTM Internacional.

É autor do livro Bancocratie, ADEN, Bruxelles, 2014,Procès d’un homme exemplaire, Editions Al Dante, Marseille, 2013; Un coup d’œil dans le rétroviseur. L’idéologie néolibérale des origines jusqu’à aujourd’hui, Le Cerisier, Mons, 2010. É coautor com Damien Millet do livro A Crise da Dívida, Auditar, Anular, Alternativa Política, Temas e Debates, Lisboa, 2013; La dette ou la vie, Aden/CADTM, Bruxelles, 2011.
Coordenou o trabalho da Comissão para a Verdade sobre a dívida pública, criada pela presidente do Parlamento grego. Esta comissão funcionou sob a alçada do Parlamento entre Abril e Outubro de 2015.

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