Quarta, 18 de maio de 2018
Mas ao contrário do que um senso comum
governista tenta fazer crer, não estamos enfrentando uma ascensão conservadora
contra o PT. Mas, sim, uma reação conservadora, de que fez e faz parte o PT,
contra a movimentação social da juventude e dos trabalhadores, que prosseguem
em suas lutas por direitos e tomam impulso ainda maior a partir das Jornadas de
Junho de 2013.
A perda da base de sustentação conservadora que o lulismo sempre teve
forneceu a aura de progressismo que o PT tinha perdido. Com isso,
setores do PSOL passaram a flertar novamente com as bases eleitorais e
sociais governistas – seja por acreditarem na leitura do avanço
conservador, seja por mero cálculo político (neste caso, especialmente
por parte de suas figuras públicas parlamentares). Se este segundo caso
revela oportunismo eleitoreiro, o primeiro reveste-se até de maior
gravidade, dos pontos de vista ideológico e estratégico.
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Do Correio da Cidadania
http://www.correiocidadania.com.br
Escrito por Marco Antonio Perruso e Viviane Becker Narvaes
O
desenrolar recente da atual crise se caracteriza por dois fatores: seus
vários e por vezes surpreendentes capítulos, tal qual uma novela
melodramática da Globo (com a esquerda a resenhá-los diuturnamente, como
nas revistas que resumem e especulam sobre os próximos capítulos); e
seu caráter ficcional, construindo narrativas que corroborem a
comparação com o golpe de 64.
Em meio à sucessão frenética de fatos, acompanhados por boa parte da
sociedade brasileira (mas não por toda ela), nem sempre uma reflexão
política cuidadosa é realizável. Apesar disso, ela é necessária, sob
pena de ficarmos a reboque dos fatos e, pior, das versões sobre os fatos
– o que parece estar acontecendo, em parte, com a oposição de esquerda
(PSOL, PSTU, PCB, MTST, entre outros), ator político que não está
diretamente envolvido no processo de impeachment de Dilma.
Além disso, o que vivemos em 2016, até agora, torna inevitável o uso
do velho clichê marxista: nossa história está se repetindo como farsa. O
suposto golpe do impeachment de Dilma não passa de um arremedo do golpe
de 64.
Quando somamos tais fatores – reflexões precipitadas, versões
farsescas dos fatos, comparações históricas inadequadas, envolvimento da
oposição de esquerda em conflito de que não faz parte – o resultado não
é favorável aos movimentos autônomos da classe trabalhadora brasileira.
Assim, parte da militância combativa da oposição de esquerda passa a
atuar com os termos e a pauta do discurso – não da prática – lulista.
Voltam as ideias a ficar fora do lugar. E se fortalece uma visão
dualista da política e da sociedade brasileira: governistas e coxinhas
aparentam, com mais força, ser inimigos encarniçados, não o que são de
fato: ex-aliados em crise por conta da bancarrota do lulismo.
Lulismo e populismo
A condução coercitiva de Lula por ordem do juiz Sérgio Moro provocou
significativa comoção política nas hostes governistas, e mesmo para além
delas.
Tal fato deixou evidente a arbitrariedade judicial, em conformidade
com a perseguição política que a grande mídia tem feito ao PT.
Certamente que, em casos análogos a este, nos momentos em que a
arbitrariedade do judiciário se deu a serviço do governismo (casos da
admissão da contratação de OSs para realizar atividades-fim na esfera
pública ou das protelações de julgamento de ações de
inconstitucionalidade relativas a armadilhas privatistas), PT e PCdoB se
congratulavam com esse mesmo poder.
Mas outro ponto interessa chamar atenção aqui.
A pressão sobre Lula fez reemergir toda a identificação social com
ele, ainda existente entre a parcela da classe trabalhadora cooptada
pelo governismo, bem como entre grande parte da intelectualidade
brasileira atuante junto às políticas públicas do Estado. Tantas foram
as injustiças sociais visibilizadas nos últimos anos sob o lulismo –
contra os povos tradicionais, contra a juventude que foi às ruas desde
2013, contra greves como a dos professores universitários e
trabalhadores do IBGE, entre inúmeros outros casos – que salta aos olhos
que parte da classe média trabalhadora sob influência do lulismo tenha
se mobilizado mais para defender Lula de uma injustiça do que para
defender Rafael Braga Vieira (o último preso político das Jornadas de
Junho de 2013), os guaranis kaiowás ou outra vítima do
neodesenvolvimentismo que nos é imposto.
Esta identificação com Lula perfaz exatamente o prescrito pela teoria
uspiana do populismo, elaborada por autores como Francisco Weffort,
Octavio Ianni e outros nos anos 1950/60: a identificação é individual,
do cidadão para com o líder carismático, que nele enfeixa as
possibilidade de mudança social, em detrimento do protagonismo dos
movimentos classistas dos trabalhadores. Fica claro, então, o viés
elitista do raciocínio e do sentimento populistas, pois o líder
carismático, já integrado ao sistema político burguês, torna-se o
receptor preferencial da sensibilidade popular. Rafael Braga Vieira
resta invisibilizado, portanto.
Em outras palavras: um líder político, um “incluído”, motiva mais os
grupos polarizados pelo governismo a se mexerem politicamente do que as
cotidianas agruras dos excluídos e dos demais setores populares,
promovidas seja pelo neodesenvolvimentismo lulista, seja pelo
neoliberalismo explícito praticado por tucanos, peemedebistas etc. (mas
também pelo PT e cia.). Tal operação hierarquizante consubstancia uma
cultura política que só reforça a histórica tradição de desigualdade do
capitalismo brasileiro – por mais que alguns tenham conseguido ver
progressismo na defesa acrítica de Lula ou do PT.
Neste sentido, as palavras de Roberto Schwarz - em Cultura e
Política, 1964-1969 - sobre a aliança do antigo PCB com a burguesia
nacional são oportunas, pois para ele constituiu-se “uma espécie
desdentada e parlamentar de marxismo patriótico, um complexo ideológico
ao mesmo tempo combativo e de conciliação de classes”, que se assemelha
ao lulismo, embora neste reste pouca ou nenhuma combatividade.
É evidente a persistência do populismo entre nós, populismo que
costuma ser a tradução política de nosso “capitalismo burocrático”,
conceito elaborado por Caio Prado Jr. em A Revolução Brasileira
para descrever nosso capitalismo amalgamado ao Estado, construção
burguesa específica que costuma enredar em suas teias parte da esquerda e
dos movimentos sindicais e sociais.
Impeachment, dualismo e ideias fora do lugar
O mês que antecedeu a votação do impeachment na Câmara, liderada pelo
reacionário e corrupto Eduardo Cunha, nos trouxe um festival de
equívocos e manipulações.
Estabeleceu-se, a partir do campo do governismo, mas atingindo até a
oposição de esquerda, uma narrativa simplória, claramente dualista,
beirando o senso comum: Dilma e Lula estariam cercados por viscerais
inimigos conservadores, que estariam a ameaçar as conquistas sociais do
neodesenvolvimentismo lulista. No entanto, tal visão não se sustenta: os
inimigos eram até ontem aliados fundamentais dos governos do PT, que,
fornecendo base parlamentar e ministerial, tinham garantido justamente
aquelas conquistas sociais – bem como, simultaneamente, a degradação de
direitos sociais conquistados a duras penas pela classe trabalhadora.
Michel Temer fora escolhido pelo PT para ser vice-presidente, Eduardo
Cunha era uma das maiores lideranças do aliado preferencial PMDB (ainda
mais por ser oriundo do Rio de Janeiro de Cabral, Pezão e Paes, todos
unha e- carne com Lula e Dilma por conta da Copa e das Olimpíadas, que
deixaram o estado falido), Marco Feliciano fora uma liderança evangélica
apoiadora de governos petistas, Bolsonaro manteve-se filiado a um
partido da base do governo até ontem. A política de colaboração de
classes do PT e do PC do B torna tais alianças não apenas eventuais, mas
sempre necessárias.
Mais do que lembrar destes fatos, aparentemente esquecidos no momento
em que vivemos (e pior: supostamente equacionados por uma análise de
conjuntura que, inexplicavelmente, preserva o farsesco caráter
progressista do lulismo, a par de tais alianças), o que importa aqui é
mostrar o seguinte: Dilma não está caindo por conta das virtudes de suas
políticas sociais inclusivas – pois, como já apontado, PMDB, PP, PR e
outros partidos conservadores sempre sustentaram tais políticas públicas
petistas. Se não é por este bom motivo (fornecido pela narrativa
governista), por que, então, o PT está sendo expelido do governo federal
por seus ex-aliados, com o apoio da velha oposição da direita liberal
(PSDB e DEM)?
Porque o segundo governo Dilma tornou-se rapidamente impopular e
frágil. Não servindo mais, portanto, para exercer a típica função
populista de amaciamento da insatisfação popular por meio de políticas
sociais. Por isso o PT não consegue mais liderar o bloco dominante de
nosso capitalismo de viés neodesenvolvimentista.
Por conseguinte, o discurso progressista do governismo passou mais
fortemente a ser uma ideia fora do lugar. Ao mesmo tempo que não
consegue sustentar uma versão autoelogiosa dos fatos, capaz de explicar o
suposto golpe do impeachment, os defensores do lulismo, na iminência de
estarem fora dos postos do Estado, sentem-se ainda mais à vontade para
acionar um discurso que não corresponde à sua prática de cooptação dos
movimentos sociais, de repressão da insatisfação social, de privatização
do Estado, de favorecimento às grandes empreiteiras, indústrias, bancos
e ao agronegócio, de predação socioambiental. Já adeptos do
neodesenvolvimentismo que não possuem a mesma origem petista-cutista,
como Bresser Pereira, podem sem problemas negar o imaginário de esquerda
do lulismo: “estamos trocando um presidente que fez tudo pelo acordo de
classes” (http://jornalggn.com.br/noticia/tudo-por-um-vice-envolvido-na-lava-jato-por-bresser-pereira).
Neste contexto, deve ser relembrado o que é definidor da política
populista: sua capacidade de distribuir desigualmente os ganhos sociais
em períodos de crescimento econômico, e sua incapacidade de fazê-lo em
momentos de crise, quando revela seu caráter conservador e antipopular. O
que é comprovado pelos diversos ataques desferidos pelo governo Dilma
contra os trabalhadores: Lei Antiterrorista, MP 665/2014, PL 247/2016,
entre outros.
A farsa do discurso do golpe
Dilma, portanto, está caindo não pelas virtudes do lulismo, mas tendo
em vista a dinâmica de qualquer sistema populista, que acompanha as
crises do capitalismo mundial. Nosso capitalismo burocrático surfou na
onda internacional das commodities, mas quando esta termina não
há mais riqueza para prover os ricos nem sobras para compensar os
pobres (na verdade, conquistas dos trabalhadores maquiadas como dádivas
do Estado). Ademais, o populismo continuamente alimenta seus algozes, os
conservadores que grassaram junto ao governismo e agora voltam-se
contra eles. É o preço que qualquer política de colaboração de classes
paga, cedo ou tarde.
Em boa medida já sabemos disso tudo, por meio das consagradas
interpretações sobre o populismo e o golpe de 64, realizadas tanto por
acadêmicos uspianos como por intelectuais trotskistas.
Neste diapasão é que podemos compreender o impeachment de Dilma: como
um acerto de contas intraburguês, entre as facções do “capitalismo
burocrático” (PT, PCdoB – antes de 64 o PTB) e do “capitalismo ortodoxo”
- outro conceito de Caio Prado Jr. - ou liberal (PSDB e DEM, antes de
64 a UDN), com os partidos clientelistas transitando entre a hegemonia
de um e de outro (PMDB, PP, PR etc. – antes de 64, o PSD). A diferença,
porém, é que em 64 efetivamente houve rompimento da democracia burguesa,
isto é, um golpe – por conta da movimentação social que ameaçava
ultrapassar o pacto populista.
Tal quadro inexiste hoje, pois a domesticação dos movimentos
populares promovida pelo PT foi de tal dimensão que ainda estamos no
início do processo histórico de reconstrução de movimentos classistas,
capitaneada de modo fragmentário (e não poderia ser de outra maneira)
por CSP-CONLUTAS, MTST, MPL e outras entidades. Em não havendo reformas
impulsionadas pelos movimentos sociais, mas sim políticas sociais
promovidas pelo Estado, um partido de origem operária como o PT vê
alguns aparatos deste mesmo Estado que ele ajudou a empoderar se
voltarem contra ele, exclusivamente nos marcos da democracia burguesa à
qual o PT aderiu desde fins do século 20, com vistas a amortecer a
insatisfação popular.
Não cabe aqui um debate teórico sobre o que é ou não golpe. Mas
parte-se do entendimento de que para haver de fato golpe – golpe de
Estado, com mudança de regime, no sentido forte e original do termo – é
necessário, pelo menos em sociedades mais complexas como a brasileira,
um ato de força, capaz de reprimir movimentos sociais e políticos
combativos. Caso contrário, bastam manobras jurídicas, midiáticas e
outras, de caráter antidemocrático – como é forçosamente recorrente na
democracia liberal – para imobilizar setores, como o lulismo, que se
restringem aos marcos da ação política na institucionalidade estatal
(eminentemente de caráter burguês).
Assim, não se trata de golpe, se o impeachment é um recurso comum à
democracia liberal burguesa, já usado no caso brasileiro contra Collor,
com o apoio – correto, diga-se de passagem – da esquerda da época (que
incluía o PT, diferentemente de hoje). Não é golpe, pois o impeachment
de Dilma, lembremos, seguiu as regras, definidas pelo STF no final de
2015, exatamente como pleiteado pelo governismo. Alguém já viu um golpe
aplicado sob regras ditadas pela vítima?
Alguém conhece algum golpe de Estado – longe do sentido frouxo do
termo, tão acionado hoje em dia – que tenha sido decidido no voto,
mecanismo fundamental das democracias ocidentais? (Decidido inclusive
num rito onde um de seus promotores, o presidente da Câmara Eduardo
Cunha, foi – adequadamente – adjetivado como gângster, corrupto, ladrão
etc. Alguém imaginaria isso num regime que está se fechando
autoritariamente?) Se Dilma acreditasse sinceramente que se trata de
golpe, certamente teria, em nome da democracia (esse termo tão vago),
decretado Estado de Defesa ou mesmo Estado de Sítio, como permite a
Constituição.
Por acaso, nos estados e municípios governados por PT e PC do B,
estão eles abrindo mão dos partidos dito golpistas de suas coalizões
governistas? Se fosse golpe de verdade, por que a CUT não ocupou
fábricas no seu berço, o ABC paulista, fábricas estas de propriedade de
industriais da reacionária FIESP? Se de fato se crê que vivemos um
golpe, com a implantação de um regime autoritário (lembrando sempre que a
sociedade brasileira e a democracia burguesas são autoritárias por si
mesmas), teremos que aguardar, então, a ida do PT para a
clandestinidade... Alguém acredita nisso?
Mesmo sendo o impeachment de Dilma meramente uma manobra típica da
política burguesa que o PT encampou, não é fácil concebê-lo assim no
plano simbólico. Por quê? Porque o PT não tem apenas uma origem popular e
operária, ele tem uma origem classista e antipopulista, o inverso do
que ele é hoje. E mais: quase toda oposição de esquerda no Brasil se
formou politicamente dentro do PT e da CUT, razão pela qual temos
apresentado dificuldades em resistir a esse remanescente, mas resistente
apelo simbólico do lulismo como algo progressista.
Por isso, no plano do discurso, os governistas acionam a farsante
versão do golpe (e continuarão a fazê-lo), por isso também parte da
oposição de esquerda assumiu este discurso – o que é grave, pra não
dizer desastroso, pois assim confunde-se o plano simbólico com o da
realidade concreta.
A “defesa da democracia” desmistificada
Passado o impeachment (embora uma volta de Dilma não deva ser
descartada), talvez a força discursiva do governismo, suas ideias fora
do lugar, perca capacidade persuasiva. Durante a votação do impeachment,
caso extremo de espetáculo da democracia burguesa, esta força atingiu o
auge de sua expressividade farsesca. Deputados do PT e do PC do B
votavam contra o suposto golpe falando em nome dos trabalhadores que
hoje sofrem com o desemprego, em nome dos camponeses massacrados pelo
agronegócio da ministra Kátia Abreu, em nome da juventude pobre
reprimida pelas diversas polícias, em nome dos indígenas e quilombolas
expulsos de suas terras pelas hidrelétricas do neodesenvolvimentismo
lulista. O show atingiu seu clímax com a performance histriônica do
fascista Bolsonaro e a resposta justa, mas personalista, de Jean Wyllys.
A curiosa defesa da democracia nesse processo é desmentida pelos
ataques antidemocráticos promovidos por PT e PC do B e operados, por
exemplo, por suas bases instauradas na burocracia das universidades:
seja no caso das aprovações autoritárias e policialescas da EBSERH
(Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares) Brasil afora, seja na
tentativa de desmonte do sindicalismo autônomo por meio de acordos
espúrios negociados com braços sindicais do Estado como o PROIFES, seja
fomentando em suas bases ações para a deslegitimação de greves,
ferramenta de luta essencial dos trabalhadores. Ferramenta tão atacada
pelo lulismo que não pôde sequer ser cogitada como possibilidade de
reação ao falso golpismo...
Terminado o ritual do impeachment, o protagonismo da luta política
pode voltar às ruas e às classes populares, já que prosseguem os ataques
de todos os governos aos trabalhadores, os quais devem se intensificar
com um possível governo Michel Temer. Servidores públicos estaduais e
outros setores respondem com greves às tentativas de supressão de seus
direitos e conquistas.
Mas ao contrário do que um senso comum governista tenta fazer crer,
não estamos enfrentando uma ascensão conservadora contra o PT. Mas, sim,
uma reação conservadora, de que fez e faz parte o PT, contra a
movimentação social da juventude e dos trabalhadores, que prosseguem em
suas lutas por direitos e tomam impulso ainda maior a partir das
Jornadas de Junho de 2013.
Algumas evidências que apontam neste sentido, apenas a título de
exemplo: o encarceramento da juventude pobre e negra no Brasil se
acelerou nos governos lulistas (http://www.cartacapital.com.br/politica/o-governo-dilma-e-extremamente-repressivo-4045.html);
a terceirização e precarização nas relações de trabalho, supressoras de
direitos e que atingem principalmente negros, mulheres e LGBTs,
triplicou no mesmo período (http://www.ihu.unisinos.br/noticias/541795-nos-governos-lula-e-dilma-a-terceirizacao-saltou-de-4-milhoes-para-127-milhoes-de-trabalhadores).
A reação do conservadorismo - frente à retomada das lutas sociais e greves desde o início desta década, como bem aponta
Marcelo Badaró Mattos – acabou por engolfar alguns de seus promotores,
seja o PT, que passou a ser vítima além de algoz, mas também o PSDB e
outros partidos tradicionais.
O problema para a oposição de esquerda é que uma leitura rasa do
conservadorismo como ascensão – não como reação às lutas sociais -
reforça o enganoso dualismo na política brasileira, entre um polo
supostamente progressista liderado pelo PT e outro conservador, da
direita liberal.
Na verdade, o que temos é a falsa narrativa de uma ascensão
conservadora contra o PT, desenvolvida pelo lulismo para reencantar suas
frágeis bases sociais e se desresponsabilizar por todo o quadro
construído por ele mesmo. É neste sentido que parece apontar o dirigente
petista Valter Pomar (http://valterpomar.blogspot.com.br/2016/03/notas-sobre-o-dia-18.html):
ao confessar que se buscava evitar a desmoralização do PT como
referência de esquerda antes que lutar contra o impeachment com alguma
chance de vitória, fica transparente que o “não vai ter golpe” de
maneira alguma era uma luta pela democracia, mas apenas uma operação de agitprop, que objetivava o salvamento das bases eleitorais que orbitam o lulismo.
Daí as manifestações governistas terem consistido em propaganda
pré-eleitoral de Lula, oportunamente aproveitada por prováveis
candidatos aos postos do legislativo e do executivo. Os atos se
concentraram em sua figura carismática, nunca relacionando a ofensiva
antilulista da direita liberal com o cerceamento de direitos dos setores
populares de nossa sociedade. E não poderia ser de outra maneira, visto
que Lula, garoto-propaganda de empreiteiras corruptas mundo afora,
objetivamente não pertence mais ao campo popular, mas, sim, ao mundo do
grande capital. E, uma vez que os ataques aos trabalhadores e à
juventude prosseguiram nos governos Lula e Dilma, como falar em defesa
da democracia nesses termos?
Esta operação de agitprop governista se desmascara mais
claramente pois, na proporção que as chances de aprovação do impeachment
de Dilma aumentavam substancialmente, o discurso governista do “não vai
ter golpe” assumia ares triunfalistas – por exemplo: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/10-coisas-que-o-Brasil-inteiro-precisa-saber/4/35808
(onde constam afirmações que destoam da realidade do iminente
impeachment, como “mas isso não acontecerá” ou “o fascismo não
passará!”). Se a derrota era quase certa, este otimismo irracional só se
explica pela intenção de manipular e reanimar maquiavelicamente a
ex-militância petista, não de lutar contra um golpe imaginário e pela
democracia.
O lulismo não mais popular
Ocorre que esta mobilização governista sensibilizou apenas certos
setores sociais. Com efeito, as pesquisas realizadas sobre as
manifestações de coxinhas e governistas apontam incríveis semelhanças no
perfil geracional (mais velho que a média brasileira) e de classe
(renda e escolaridade muito acima das do restante da sociedade) de quem
foi às ruas estimulado exclusivamente pela pauta do impeachment: http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2016/03/1752481-46-dos-que-protestaram-contra-impeachment-aprovam-estao-dilma.shtml.
Ao contrário do que a máquina publicitária lulista quis fazer crer – e
parte da esquerda classista comprou esta ideia – a maior parte dos
jovens e trabalhadores pobres não se pautou pela luta intraburguesa do
impeachment e pelo slogan do “não vai ter golpe”: http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-04/classes-c-e-d-veem-debate-sobre-impeachment-como-briga-da-elite-diz.
Isto se evidencia pelos relatos de alguns dos que foram aos atos
governistas: antigos e ex-militantes se reencontravam, professores
universitários e burocratas operadores das políticas públicas lulistas
confraternizavam tirando selfies, artistas consagrados
conferiam aos atos a melhor atmosfera de encantamento e não de luta –
nada que denunciasse a gravidade de um golpe que estivesse a ocorrer ou a
necessidade de construção de uma resistência popular contra um
hipotético regime autoritário. Deve ser registrado que extratos da
juventude mais intelectualizada também se fizeram presentes, até onde se
pode perceber de modo impressionista.
Aliás, as manifestações governistas atestaram todo o envelhecimento
do padrão de politização das redes societárias petistas-cutistas. Seus
atos foram absolutamente tradicionais e hierárquicos: grandes palcos e
estruturas, figuras públicas do mundo parlamentar burguês dominando os
discursos, artistas consagrados se apresentando e falando a velhos e
novos fãs. As manifestações foram exclusivamente demonstrativas, isto é,
apenas levaram gente às ruas para pressionar o Congresso; ocupações e
outras modalidades de ação direta não foram cogitadas (exceção feita aos
atos do MTST, que fecharam rodovias).
Como não poderia deixar de ser, as lições mobilizatórias das Jornadas
de Junho de 2013 – horizontalidade, espontaneidade, radicalidade,
presença ostensiva no espaço público urbano, ocupações e pichações de
símbolos institucionais do poder público e privado, enfrentamentos com
as forças repressivas etc. – continuam sendo tabu para os lulistas.
Os desafios da oposição de esquerda diante do lulismo em crise
A oposição de esquerda, que busca manter uma perspectiva classista
das lutas, teve dificuldades para se situar no último período da atual
crise brasileira. Em parte ela assumiu o discurso governista do golpe.
Entender as razões desse processo é fundamental para seguirmos na luta
anticapitalista.
A perda da base de sustentação conservadora que o lulismo sempre teve
forneceu a aura de progressismo que o PT tinha perdido. Com isso,
setores do PSOL passaram a flertar novamente com as bases eleitorais e
sociais governistas – seja por acreditarem na leitura do avanço
conservador, seja por mero cálculo político (neste caso, especialmente
por parte de suas figuras públicas parlamentares). Se este segundo caso
revela oportunismo eleitoreiro, o primeiro reveste-se até de maior
gravidade, dos pontos de vista ideológico e estratégico.
De fato, houve de tudo nos dois últimos meses: militantes sentindo-se
como se estivessem nas décadas de 1960 e 70, alarmismo quanto à ameaça
fascista no Brasil, trotskistas ressuscitando o velho etapismo pecebista
(com fórmulas do tipo “primeiro defendemos Dilma, no futuro a
derrubamos”), gente que prometera nunca mais votar no PT nos segundos
turnos eleitorais voltando a raciocinar em termos do “menos pior” (o
pior seria o golpe, é claro) etc.
Parte da intelectualidade da oposição de esquerda, impactada pelo
conservadorismo da direita liberal (parlamentar, judiciária, midiática) e
pelo chamamento hipócrita do lulismo, mas também por razões acadêmicas
ingênuas (foi ou não golpe? o fascismo está voltando?), passou a crer
autenticamente no discurso governista, sendo “mais realista do que o
rei” - afinal de contas, a máquina publicitária lulista, como antes
demonstrado, apenas realizou uma operação pragmática de salvamento
eleitoral do PT, pois sabe que não há golpe nenhum. Este quadro está em
conformidade com o corte de classe de quem foi às ruas contra o
impeachment: classe média trabalhadora, intelectualizada e de maior
renda.
Além disso, desde 2014, ao menos, a oposição de esquerda,
corretamente, vinha negando, na maioria das análises de conjuntura
feitas, as condições para a ocorrência de um golpe de Estado no país. Um
súbito reposicionamento a respeito por parte de alguns, sem o devido
embasamento analítico, pode ser explicado pela pressão exercida pelo
governismo.
A oposição de esquerda se origina da matriz petista-cutista e toma
mais corpo, quando da criação do PSOL, ainda no início do lulismo no
governo federal. O contexto que hoje vivemos, de derrocada do
neodesenvolvimentismo, cria um novo e desafiador contexto para a
esquerda classista. Se para muitos o chamado programa
democrático-popular está falido – e objetivamente, está, sem dúvida – o
mesmo não se dá na subjetividade de parte da militância combativa nos
movimentos sindicais e sociais, que volta e meia cede às tentações de se
comportar como uma bem intencionada franja de esquerda do lulismo –
como atesta seu apego dissimulado ao “Fica Dilma” ao invés de lutar por
eleições gerais ou outra bandeira menos vinculada à estabilidade da
democracia burguesa.
Um caminho para responder positivamente a estes desafios é ter em
conta a perspectiva histórica nacional. Pouca ou nenhuma novidade
estamos vivendo. A esquerda classista brasileira sempre se viu apertada
entre o conservadorismo liberal e o populismo. Já enfrentou a elitista
ditadura militar e a ditadura varguista de base popular. Nossos
antepassados - as dissidências do antigo PCB, os agrupamentos
trotskistas, a POLOP e outras esquerdas marxistas revigoradas, os que
fizeram a luta armada, os educadores populares, os militantes basistas e
autonomistas etc. – aprenderam a negar, com maior ou menor dificuldade,
o “mal menor” do colaboracionismo de classe.
A saída consiste em seguir apostando nos movimentos populares
classistas. Apenas eles produzirão novos acúmulos para a classe
trabalhadora, apenas eles darão sustentação à atual oposição de
esquerda. Por meio deles, dialogando com as massas populares, será
possível superar mais essa experiência reformista fracassada no Brasil, a
do lulismo – experiência degradada que almeja nos levar junto em seu
apego à democracia liberal. Mas sabemos, seja como militantes
combativos, seja como marxistas, que democracia só pode ser pensada,
praticada e defendida com a devida clivagem de classe, não em termos
abstratos burgueses. Nosso compromisso é com os explorados e oprimidos.
Marco Antonio Perruso e Viviane Becker Narvaes são militantes do PSOL e do ANDES-SN.
A publicação deste texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania