Domingo, 22 de maio de 2016
Do Observatório da Imprensa
Texto publicado originalmente no site objETHOS, 16/5/2016
O 3 de maio de 2016, quando foi
comemorado o dia mundial da liberdade de imprensa, em breve
provavelmente estará fadado ao esquecimento como tantas outras datas
vivenciadas sem grandes acontecimentos que tenham real significado para a
maior parte da sofrida população brasileira.
Mas, para o maior conglomerado midiático do país, um fato ocorrido naquele dia teve importância superlativa a ponto de provocar a interrupção de sua programação normal para ser transmitida a “magnífica” chegada do fogo olímpico a ser carregado em tocha por todo o Brasil a partir da capital federal.
Se por acaso existisse uma olimpíada brasileira do telejornalismo onde a competição fosse pautada por critérios essencialmente em função da ética e da qualidade jornalística é possível que não houvesse vencedores, ou melhor, medalhistas, tal a mediocridade que tem assolado o jornalismo televisivo no Brasil, sobretudo aquele praticado pelas grandes redes de abrangência nacional.
A transmissão colocada no ar pela Rede Globo, na manhã daquela terça feira, se caracterizou como quase sempre ocorre nessa emissora por expressões grandiloqüentes, atribuindo a um acontecimento valoração exagerada. O fogo “sagrado”, cuja origem se professa relacionada à morada dos deuses do Olimpo, chegou para marcar de forma definitiva nossa reverência mais absoluta aos poderosos interesses mercadológicos que estão na base de mais esse evento de natureza pseudo-esportiva e de superficial congraçamento mundial.
Durante quase 40 minutos o indefectível Galvão Bueno, em companhia da “rainha” Hortência e Tande sumidades da cultura brasileira, sem nenhum intervalo, o que é muito incomum em nossa televisão, produziu uma enxurrada de informações e comentários de “alta” relevância social emitida aos telespectadores, sob o apoio de patrocinadores como Bradesco, P&G, Coca-Cola, Nestlé, Claro e Fiat.
Nesse tempo foram enaltecidos atletas, ex-atletas, e outros personagens, destacou-se até a possibilidade de a tocha carregada em cada trecho do percurso ser comprada, mas não se esclareceu por quem, se pela pessoa que a carregava, ou se por qualquer consumidor interessado. Aliás, esse detalhe determina de maneira cabal o principal caráter dessa olimpíada no Rio de Janeiro: a exploração comercial que possibilitará lucros astronômicos a uns poucos e benefícios nulos à sociedade.
Apenas para ilustrar podemos tomar como exemplo o preço cobrado pelos mais de 500 mil ingressos colocados à venda pelos organizadores. Para assistir in loco a cerimônia de abertura, o cidadão terá que desembolsar um valor entre R$ 200,00 e R$ 4.600,00. Já para acompanhar o encerramento o preço máximo diminui um pouco, os ingressos custam entre R$ 200,00 e R$ 3.000,00. Porém se alguém quiser ver alguma das provas escolhida entre as 46 modalidades em disputa poderá optar por uma grande variedade de preços, as mais baratas custam R$ 40,00 e as mais caras R$ 1.200,00. Agora multiplique-se por 500 mil ingressos e estime-se o faturamento bruto sem contar com as quotas de propaganda que os organizadores venderam e que estarão em peças publicitárias nos locais das competições.
O elitismo olímpico
Entretanto, absurda e injustamente, fora desse conjunto formado pelas pessoas comuns, um pequeno número de privilegiados, entre os quais governantes, autoridades públicas e convidados, poderão comparecer e assistir o que bem quiserem sem desembolsar um real sequer.
Além disso, há ainda os recursos públicos gastos em volume elevadíssimo pelo governo federal, pelos governos estadual e municipal do Rio de Janeiro, e por empresas e bancos estatais. Em Brasília enquanto a tocha olímpica passava de mão em mão, no céu se exibia a esquadrilha da fumaça desenhando a frase Olimpíada Rio 2016. Quanto será que isso custou de nossos impostos? E qual o retorno para a população?
Outro aspecto patético da transmissão especial ficou por conta da ênfase dada pelo apresentador quando uma menina, refugiada dos conflitos que devastam a Síria, tomou o fogo olímpico em suas mãos. Segundo ele, esse gesto representa a valorização dos direitos humanos e o poder que a olimpíada tem de parar guerras. Sem desmerecer nem minimizar o problema gravíssimo que afeta milhares de refugiados de países em conflito, mas onde ficam os direitos humanos de milhares de brasileiros que penam e morrem diariamente nas filas de estabelecimentos públicos de saúde a espera de um atendimento precário, em especial no Estado do Rio de Janeiro que enfrenta uma crise brutal nessa área já há muito tempo, embora o governador seja atendido e tratado de um grave problema de saúde em hospital de referência, fora do alcance da maioria de seus governados.
Onde ficam também os direitos humanos de um número enorme de aposentados e servidores públicos que não recebem suas pensões e salários no Rio de Janeiro devido à situação falimentar do governo?
Essas questões, para citar apenas essas duas entre uma infinidade delas, não merecem o mesmo destaque por parte do telejornalismo global. Que tal se a rede se propusesse, por exemplo, a interromper sua programação normal para abordar ininterruptamente a precariedade de atendimento aos pacientes de postos de saúde e hospitais públicos, mantendo equipes de reportagem nesses locais em todo o País, mostrando a realidade cruel que as pessoas desassistidas enfrentam todos os dias? Ou ainda apresentando o que acontece em escolas da rede pública pelo Brasil afora? Os fatos que atestam esse total descaso ficariam no ar até que providências fossem tomadas por aqueles que têm a obrigação de atender o povo em suas necessidades mais prementes.
Essa é apenas uma das possibilidades em que se faria um telejornalismo efetivamente comprometido com a ética profissional e com a qualidade, em favor do interesse coletivo e configurando uma atuação digna no que concerne ao direito à informação inerente ao exercício da cidadania.
***
João Somma Neto, é professor de Jornalismo na UFPR e pesquisador do objETHOS
Mas, para o maior conglomerado midiático do país, um fato ocorrido naquele dia teve importância superlativa a ponto de provocar a interrupção de sua programação normal para ser transmitida a “magnífica” chegada do fogo olímpico a ser carregado em tocha por todo o Brasil a partir da capital federal.
Se por acaso existisse uma olimpíada brasileira do telejornalismo onde a competição fosse pautada por critérios essencialmente em função da ética e da qualidade jornalística é possível que não houvesse vencedores, ou melhor, medalhistas, tal a mediocridade que tem assolado o jornalismo televisivo no Brasil, sobretudo aquele praticado pelas grandes redes de abrangência nacional.
A transmissão colocada no ar pela Rede Globo, na manhã daquela terça feira, se caracterizou como quase sempre ocorre nessa emissora por expressões grandiloqüentes, atribuindo a um acontecimento valoração exagerada. O fogo “sagrado”, cuja origem se professa relacionada à morada dos deuses do Olimpo, chegou para marcar de forma definitiva nossa reverência mais absoluta aos poderosos interesses mercadológicos que estão na base de mais esse evento de natureza pseudo-esportiva e de superficial congraçamento mundial.
Durante quase 40 minutos o indefectível Galvão Bueno, em companhia da “rainha” Hortência e Tande sumidades da cultura brasileira, sem nenhum intervalo, o que é muito incomum em nossa televisão, produziu uma enxurrada de informações e comentários de “alta” relevância social emitida aos telespectadores, sob o apoio de patrocinadores como Bradesco, P&G, Coca-Cola, Nestlé, Claro e Fiat.
Nesse tempo foram enaltecidos atletas, ex-atletas, e outros personagens, destacou-se até a possibilidade de a tocha carregada em cada trecho do percurso ser comprada, mas não se esclareceu por quem, se pela pessoa que a carregava, ou se por qualquer consumidor interessado. Aliás, esse detalhe determina de maneira cabal o principal caráter dessa olimpíada no Rio de Janeiro: a exploração comercial que possibilitará lucros astronômicos a uns poucos e benefícios nulos à sociedade.
Apenas para ilustrar podemos tomar como exemplo o preço cobrado pelos mais de 500 mil ingressos colocados à venda pelos organizadores. Para assistir in loco a cerimônia de abertura, o cidadão terá que desembolsar um valor entre R$ 200,00 e R$ 4.600,00. Já para acompanhar o encerramento o preço máximo diminui um pouco, os ingressos custam entre R$ 200,00 e R$ 3.000,00. Porém se alguém quiser ver alguma das provas escolhida entre as 46 modalidades em disputa poderá optar por uma grande variedade de preços, as mais baratas custam R$ 40,00 e as mais caras R$ 1.200,00. Agora multiplique-se por 500 mil ingressos e estime-se o faturamento bruto sem contar com as quotas de propaganda que os organizadores venderam e que estarão em peças publicitárias nos locais das competições.
O elitismo olímpico
Entretanto, absurda e injustamente, fora desse conjunto formado pelas pessoas comuns, um pequeno número de privilegiados, entre os quais governantes, autoridades públicas e convidados, poderão comparecer e assistir o que bem quiserem sem desembolsar um real sequer.
Além disso, há ainda os recursos públicos gastos em volume elevadíssimo pelo governo federal, pelos governos estadual e municipal do Rio de Janeiro, e por empresas e bancos estatais. Em Brasília enquanto a tocha olímpica passava de mão em mão, no céu se exibia a esquadrilha da fumaça desenhando a frase Olimpíada Rio 2016. Quanto será que isso custou de nossos impostos? E qual o retorno para a população?
Outro aspecto patético da transmissão especial ficou por conta da ênfase dada pelo apresentador quando uma menina, refugiada dos conflitos que devastam a Síria, tomou o fogo olímpico em suas mãos. Segundo ele, esse gesto representa a valorização dos direitos humanos e o poder que a olimpíada tem de parar guerras. Sem desmerecer nem minimizar o problema gravíssimo que afeta milhares de refugiados de países em conflito, mas onde ficam os direitos humanos de milhares de brasileiros que penam e morrem diariamente nas filas de estabelecimentos públicos de saúde a espera de um atendimento precário, em especial no Estado do Rio de Janeiro que enfrenta uma crise brutal nessa área já há muito tempo, embora o governador seja atendido e tratado de um grave problema de saúde em hospital de referência, fora do alcance da maioria de seus governados.
Onde ficam também os direitos humanos de um número enorme de aposentados e servidores públicos que não recebem suas pensões e salários no Rio de Janeiro devido à situação falimentar do governo?
Essas questões, para citar apenas essas duas entre uma infinidade delas, não merecem o mesmo destaque por parte do telejornalismo global. Que tal se a rede se propusesse, por exemplo, a interromper sua programação normal para abordar ininterruptamente a precariedade de atendimento aos pacientes de postos de saúde e hospitais públicos, mantendo equipes de reportagem nesses locais em todo o País, mostrando a realidade cruel que as pessoas desassistidas enfrentam todos os dias? Ou ainda apresentando o que acontece em escolas da rede pública pelo Brasil afora? Os fatos que atestam esse total descaso ficariam no ar até que providências fossem tomadas por aqueles que têm a obrigação de atender o povo em suas necessidades mais prementes.
Essa é apenas uma das possibilidades em que se faria um telejornalismo efetivamente comprometido com a ética profissional e com a qualidade, em favor do interesse coletivo e configurando uma atuação digna no que concerne ao direito à informação inerente ao exercício da cidadania.
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João Somma Neto, é professor de Jornalismo na UFPR e pesquisador do objETHOS