Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Temer é descartável

Quarta, 24 de maio de 2017

Por
Aldemario Araujo Castro*

Brasília, 24 de maio de 2017

Uma nebulosa conversa entre o senhor Michel Temer, ocupante da cadeira presidencial, e o empresário Joesley Batista, principal dirigente da empresa JBS, beneficiária de algumas dezenas de bilhões de reais oriundos do BNDES, da CEF e do BB nos últimos anos, foi gravada pelo último e divulgada pelo Supremo Tribunal Federal, em razão de delações premiadas realizadas pelos executivos do grupo empresarial. O episódio ganhou proporções de uma tsunami no mundo da política.

Inequivocamente, as falas, indicações e omissões do senhor Michel Temer caracterizam seríssimas transgressões aos deveres e proibições impostos aos agentes públicos (arts. 116 e 117 da Lei n. 8.112, de 1990; art. 319 do Código Penal e arts. 4o, 9o, 10 e 11 da Lei n. 8.429, de 1992). A conduta incompatível com a dignidade, honra e decoro do cargo de Presidente da República é patente (artigo nono, item sete, da Lei n. 1.079, de 1950). Em função dessa evidente constatação, o Conselho Federal da OAB decidiu pela apresentação de pedido de impeachment do senhor Temer.

Com efeito, o senhor Michel Temer ouviu o relato da prática de um festival de crimes e ilícitos de enorme gravidade e não adotou uma mísera providência sequer para responsabilizar o infrator ou estancar os malfeitos. Pelo contrário, incentivou a conduta do meliante, indicou alguém de confiança para realizar futuras "interlocuções", inclusive pecuniárias, e deixou claro que a linha de ação no campo da bandidagem de luxo atendia aos interesses do Presidente da República.

Na sequência desse acontecimento, foram publicizadas as referidas delações premiadas efetivadas pelos dirigentes da empresa JBS. Essas últimas relevações tornaram o áudio da conversa com o senhor Michel Temer um aspecto secundário. O mar de lama, já revelado em episódios anteriores pelo Mensalão, Lava-Jato e outras operações policiais e judiciais, ganhou novas proporções. O Estadão, no seu site na internet, resume a situação em duas frases: "JBS distribuiu propina a 1.829 candidatos de 28 partidos, diz relator. Executivo do grupo estima que doações ilícitas chegaram a quase R$ 600 milhões e diz que todos os políticos estavam cientes do caixa 2". Com estarrecedores detalhes, são apontadas as fartas distribuições de recursos para Temer, Dilma, Lula, Aécio, Serra, Renan, Eunício, Rodrigo Maia, Palocci, Mantega, Eduardo Cunha, Cid Gomes, Fernando Pimentel, Sérgio Cabral, Kassab, Moreira Franco, Marta Suplicy, Carlos Lupi, Jader Barbalho, Bolsonaro, etc, etc, etc. 

Apesar do monumental esquema de corrupção revelado, a “premiação pactuada entre as partes signatárias dos acordos foi o não oferecimento de denúncia em face dos colaboradores”. Essa decisão, com fortes indícios de violação da Lei n. 12.850, de 2013 (artigo quarto, parágrafos primeiro e quarto), e do princípio constitucional da razoabilidade, revoltou a cidadania consciente, notadamente diante da situação dos colaboradores-delatores confortavelmente instalados na cidade de Nova York.

Os fatos são gravíssimos e a sociedade civil atesta essa qualificação. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) assevera: "São estarrecedores, repugnantes e gravíssimos os fatos noticiados por O Globo a respeito de suposta obstrução da Justiça praticada pelo presidente da República e de recebimento de dinheiro por parte dos senadores./A serem verdadeiras as notícias, o Presidente Temer perde as condições para continuar à frente da Presidência". As entidades representativas da Magistratura e do Ministério Público afirmam: "As notícias divulgadas pelos órgãos de imprensa, revelando condutas incompatíveis de importantes agentes políticos, inclusive do Presidente da República, se confirmadas, comprometem e inviabilizam, definitivamente, do ponto de vista ético e institucional, a manutenção de um governo já amplamente rejeitado pela opinião pública".

Ademais, "o ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, autorizou nesta quinta-feira (18/5) a abertura de inquérito contra o presidente Michel Temer. Ele é acusado, em delação premiada homologada pelo ministro, de incentivar o pagamento de R$ 500 mil ao ex-deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ) para que não fizesse acordo de delação. A Procuradoria-Geral da República investigará crime de corrupção passiva e obstrução a investigações" (CONJUR, dia 18 de maio de 2017). Não se tem notícia, na história da República, de um Chefe de Estado e Governo formalmente investigado em pleno exercício das funções.

Não custa lembrar que o senhor Michel Temer é o mesmo envolvido em tenebrosas e milionárias transações minuciosamente relatadas por executivos da empresa Odebrecht. É o mesmo cercado por auxiliares diretos enrolados de corpo e alma em toda sorte de esquemas escusos (Geddel, Moreira Franco, Padilha, Filipelli, Loures, Yunes e Mabel. Quem será o próximo?). É o mesmíssimo personagem que negocia sem um pingo de vergonha todo tipo de vantagens, para reduzir direitos sociais, com uma base parlamentar pra lá de fisiológica. A pergunta é inevitável: alguém acredita no comportamento escorreito, ético e digno do senhor Michel Temer?

O quadro ganha novos elementos a cada momento. Depois de recusar a renúncia, o senhor Temer parte para o ataque e questiona a integridade do áudio e a atuação da Procuradoria-Geral da República. Pediu a suspensão do inquérito aberto em seu desfavor para, em seguida, desistir do pleito. O site Congresso em Foco, pelo competente jornalista Edson Sardinha, identifica uma clara divisão nos três maiores jornais do país acerca da situação e futuro de Temer. Em resumo: “Enquanto O Globo defende a renúncia imediata de Temer, Estadão vê 'irresponsabilidade' e 'oportunismo' na tentativa de destituição do presidente. Já a Folha chama diálogos de 'inconclusivos' e cobra esclarecimentos do peemedebista”.

O mar de lama e suas sucessivas ondas, cada vez maiores, instalado na vida política nacional podem gerar a equivocada convicção de que os nossos problemas estão circunscritos ao comportamento ético dos agentes políticos. Não é bem assim. Os governos, governantes, políticos e partidos políticos devem ser avaliados em duas perspectivas fundamentais: a) em função dos interesses socioeconômicos representados e, em consequência, das propostas e programas a serem implementados e b) em relação aos métodos ou práticas utilizados no campo da ação política.

O exercício de análise antes proposto aponta para uma conclusão insofismável, notadamente quanto considerados os mais recentes e escabrosos escândalos de corrupção. Dilma, Lula, Temer, Aécio, PT, PMDB, PSDB e outros agentes políticos e agremiações partidárias menos cotadas são substancialmente iguais. Utilizam os mesmos métodos políticos escusos e defendem os mesmos interesses socioeconômicos. As diferenças encontradas ou observadas são meramente acessórias.

Nenhum desses atores políticos representa os interesses da maioria da sociedade brasileira (trabalhadores, estudantes, classes médias consequentes e aposentados). Nenhum desses atores possui compromissos e atuações voltados para a mudança do perverso modelo econômico, para a superação da estrutura agrária concentrada, para a democratização econômica da mídia, para o desmonte do sistema da dívida pública, para a mudança de aspectos fundamentais das políticas monetária e cambial, para a implementação de um sistema tributário justo, para um combate estrutural a todas as formas de corrupção e malversação do patrimônio público, para a ampliação crescente dos direitos sociais, para a supressão das mais variadas formas de violência e discriminação, para o aprofundamento da democracia participativa e tantas outras medidas fundamentais para a mudança real do panorama vivenciado pela sociedade brasileira.

Ademais, nenhum desses setores realiza ou busca realizar uma ação política libertadora, transformadora e inovadora. Imperam, nas suas atuações, entre outros, o fisiologismo, o clientelismo, o patrimonialismo, a ocupação não republicana da Administração Pública (notadamente pela via dos cargos comissionados) e os mais variados e sofisticados mecanismos de corrupção e tráfico de influência. 

Não cabe, portanto, raciocinar a partir de ingenuidades e voluntarismos. Todos, rigorosamente todos, como agentes políticos e econômicos, conscientes ou não desses papéis, atuam em busca de um melhor posicionamento na repartição da riqueza socialmente criada. É muito sintomática nesse sentido a frase do megaespeculador George Soros. Disse o Midas das finanças globais algo assim: “A luta de classes existe e nós estamos ganhando”.

Perceba-se que na Terra Brasilis os projetos socioeconômicos não são “esquecidos” em função da degradação generalizada do campo político. As elites econômicas, eficientes na arte de criar e manter mecanismos de apropriação crescente da riqueza, atuam com clareza em meio ao “caos”. Não são ingênuos e nem são afetados por crises existenciais ou de nojo. O noticiário aponta: “Partidos aliados articulam saída negociada para evitar eleições diretas./Nome de Meirelles ganha força como alternativa viável para manter a base unida e dar continuidade às reformas econômicas”. Assim, o programa político-econômico concebido para realizar as tais “reformas”, redutoras de direitos sociais e voltadas para desarticular a rede de proteção social inscrita na Constituição de 1988, continuará em curso com Temer ou sem Temer. Tudo indica que as mais poderosas forças do empresariado nacional avaliam se é melhor perseguir seus mesquinhos objetivos com mesóclises ou sem elas.

Parece completamente fora de qualquer dúvida razoável que o governo Temer, assim como qualquer outro governo das classes dirigentes (Meireles, Dória, Bolsonaro, Marina, Rodrigo Maia, Jobim, Tasso, etc), é perfeitamente descartável. Por trás de Lula, Dilma, Temer, Aécio, Meireles e outros tantos, por trás do mar de lama, por trás do mundo da política partidária, existe um programa elaborado com o objetivo de satisfazer os humores e apetites das elites componentes de menos de 1% (um por cento) da população brasileira, em especial os interesses do preponderante mercado financeiro (no Brasil e no mundo o capitalismo encontra-se na fase financeira, é sempre bom lembrar). 

Somente o avanço da consciência e mobilização populares pode criar as condições para vingarem as propostas e projetos socioeconômicos voltadas para a maioria da sociedade (praticamente 99% - noventa e nove por cento - dela). Esse avanço passa pelo fortalecimento das alternativas políticas (partidos, organizações, movimentos e lideranças) comprometidas com as profundas e necessárias transformações sociais e pela derrota dos “iguais” (PT, PMDB, PSDB e congêneres), fiéis representantes de não mais de 1% (um por cento) dos brasileiros (e estrangeiros) confortavelmente instalados “no andar de cima”.
*Aldemario Araujo Castro é Advogado, Procurador da Fazenda Nacional, Professor da Universidade Católica de Brasília e Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília

Brasília, 24 de maio de 2017