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(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

AMÉRICA LATINA SEM SOBERANIA

 Quarta, 24 de janeiro de 2024

AMÉRICA LATINA SEM SOBERANIA — SEIS CRÔNICAS, COM UMA INTRODUÇÃO, DE ARROGÂNCIA, RAPINA E MALDADE.


Pedro Augusto Pinho*

 

INTRODUÇÃO

O gênio Darcy Ribeiro nos proporcionou compreender que, no Novo Mundo que os europeus iam descobrindo, abriam-se imensas possibilidades no plano do conhecimento e da ação civilizatória, porém, ocorriam igualmente construções das projeções da Europa em terras estranhas, que ainda exigiam mais deformações nas relações humanas para que ficassem iguais a Londres, Paris, Madrid ou Lisboa (“O Processo Civilizatório”, 1968).

Há 531 anos, armada para encontrar rota alternativa que possibilitasse chegar às Índias, a Europa se fez presente por Cristóvão Colombo, navegador genovês a serviço dos reis católicos de Castela, Leão e Aragão, em San Salvador (Guanahani, para os nativos), ilha no arquipélago das Bahamas, no Oceano Atlântico, próximas a Cuba.

E tem início a exploração e extermínio das populações locais, transportando os lucaianos, que lá habitavam, como escravos, para a ilha Espanhola, e quase dizimando a população nativa. Entre 1513 e 1648, as Bahamas ficaram praticamente despovoadas.

Assim tem início a dominação europeia da América Latina.

Não é pacífica, entre os historiadores, a época de transição dos estágios sócio-político-econômicos nos países. No século XV, quando se dá a descoberta das Américas, em qual estágio estaria a Europa? Na Idade Média, na fase Pré-Capitalista ou já viveria o Capitalismo? E qual Capitalismo, provavelmente o Comercial, porém a Inglaterra, desde o século XIV, já vivia o que se denomina hoje, Capitalismo Financeiro.

O homem (homo sapiens) chegou à América, vindo da Ásia pelo Estreito de Bering, nos anos finais da Glaciação Würn, por volta de 14.000 a 13.000 anos. Diversos estudos antropológicos certificam o que, mais recentemente, o grupo liderado por Bastian Llamas, da Universidade de Adelaide (Austrália) constatou na árvore genealógica dos primeiros habitantes: restou muito pouca descendência desta migração original.

A colonização europeia dizimou até 90% da população nativa originária, principalmente por guerras de extermínio, mas, igualmente, pela escravidão, pelos maus tratos, verdadeira desumanidade, e pela miséria, com fome e doenças, que concluíram essa matança.

 

1ª Crônica: OS PRIMITIVOS HABITANTES


Como era a América quando Colombo desembarcou por aqui em 1492? Muito diferente do que nos contam os livros escolares.

Porém, desde o início do massacre, Frei Bartolomé de Las Casas na “Brevíssima Relación de la Destruición de las Índias Ocidentales” (1552) nos advertia:

Com que direito haveis desencadeado uma guerra atroz contra essas gentes que viviam pacificamente em seu próprio país? Por que os deixais em semelhante estado de extenuação? Os matais a exigir que vos tragam diariamente seu ouro. Acaso não são eles homens? Acaso não possuem razão e alma? Não é vossa obrigação amá-los como a vós próprios?” (tradução de Heraldo Barbuy para L&PM Editores, Porto Alegre, 1984).

Utilizaremos para estas Crônicas as revelações e análises de Eulalia Maria Lahmeyer Lobo em “América Latina Contemporânea” (1970), de Pierre Jalée em “Le Pillage du Tiers Monde” (1973), de Florival Cáceres em “História da América” (1980), de Maria Ligia Prado em “A formação das nações latino-americanas” (1987), de Lilyan Benítez e Alicia Garcés em “Culturas Ecuatorianas Ayer y Hoy” (1989), de Michael Coe, Richard Dielt, David Freidel, Peter Frust, Kent Reilli, Linda Schele, Carolyn Tate, Karl Taube em “The Olmec World: Ritual and Rulership” (1995), do surpreendente Charles C. Mann em “1491 - novas revelações das Américas antes de Colombo” (2005), de Brian R. Hamnett em “História Concisa do México” (2016), de Georges Baudot e Tzvetan Todorov (organizadores) em “Relatos Astecas da Conquista” (2019), e de José Gregorio Linares em “Bolivarianismo versus Monroísmo” (2020), além de artigos disponíveis ao público, em meios digitais.

Na maioria dos livros, lamentavelmente os escolares, nosso continente é descrito como vasto território, pouquíssimo povoado por homens primitivos, cujas culturas, inevitavelmente, se curvaram diante do poderio europeu.

No entanto, o que Charles Mann — um historiador com alma de jornalista investigativo, que colabora com as revistas "Science" e "Atlantic Monthly" - descobriu foi o que, nas décadas mais recentes, alguns pesquisadores já encontram respostas.

Os textos de Mann revelam a realidade muito diferente do que pensa a maioria dos americanos e europeus, e é pouquíssimo conhecida fora dos círculos acadêmicos especializados. Mas todos têm característica comum: sugerem que muito do que acreditamos está errado.

Mann conta que, em 1491, havia provavelmente mais pessoas vivendo nas Américas do que na Europa. Cidades como Tenochititlán, a capital asteca, reuniam populações muito maiores do que qualquer cidade européia contemporânea e, à diferença de muitas capitais no velho mundo, tinham água corrente e ruas limpas e ajardinadas. E, detalhe: as primeiras cidades no continente já prosperavam antes mesmo de os egípcios terem construído as suas grandes pirâmides.

Charles Mann sabe que muito do que relata é especulação, e ainda requer aprofundamento e pode inclusive sofrer mudanças com o passar dos anos. No entanto, suas descobertas chamam a atenção para o olhar relativista, que evita o etnocentrismo recorrente dos livros com foco na chegada dos europeus.

Por isso mesmo, a intenção de C. Mann não é fazer o relato cronológico e sistemático do desenvolvimento cultural e social do Hemisfério Ocidental antes da chegada dos europeus. Tampouco quer traçar a história intelectual das mudanças recentes de perspectiva, entre os pesquisadores que estudam os primeiros americanos. Em vez disso, “1491” explora os três focos principais das novas descobertas: demografia índia, origens índias, e ecologia índia.

Considerando que tantas sociedades diferentes ilustram esses pontos de modos tão diversos, Mann escolheu exemplos entre culturas que estão melhor documentadas ou que chamaram a mais atenção, ou que pareceram mais intrigantes.

Como é o caso da nova versão da vinda dos primeiros americanos, que podem não ter migrado pelo estreito de Bhering em 12 mil a.C, como se aceita, mas sim pelo Pacífico, de barco, dez ou vinte mil anos mais cedo.

Ou a revelação de que, no México, os índios pré-colombianos desenvolveram o milho através de processo reprodutivo tão sofisticado que a revista Science o descreveu recentemente como a "primeira e talvez maior proeza de engenharia genética da humanidade"; ou ainda, os estudos que indicam que, na Amazônia, eram capazes de cultivar a floresta tropical sem destruí-la, processo que hoje os cientistas tentam recuperar.

O neolítico americano difundiu-se a partir de dois focos: mesoamericano e andino; e originou duas grandes tradições agrícolas: a baseada na semeadura (milho, feijão, quínua) e outra na plantação de mudas (batata, mandioca, batata-doce). Durante milênios, são três os complexos agrícolas que se desenvolvem no continente: o andino, onde predominam os tubérculos, o mesoamericano, predominando o milho, e da bacia do Amazonas até a costa atlântica, predominando a mandioca.

O milho pode ter sido domesticado já por volta de 9 mil anos atrás, e tornou-se o alimento básico da maior parte do Novo Mundo. Sua importância para os povos americanos é inconteste: o milho está presente em diversas cosmogonias e mitos, sobretudo na Mesoamérica.

Foram produzidas muitas variedades, não apenas em tamanho, cor e propriedades, mas também em viabilidade sob diferentes condições de umidade, temperatura, solo etc.

O acréscimo do feijão à dieta, ao redor de 6 a 8 mil anos atrás, foi conquista da maior importância, segundo Betty Meggers (“A sequência arqueológica da Ilha de Marajó, Brasil”, 1952, e “Amazônia: A Ilusão de um Paraíso”, 1976), com referência especial à Cultura Marajoara, devido a circunstâncias bioquímicas: a combinação de milho e feijão fornece dieta significativamente mais rica do que qualquer dos dois alimentos sozinhos.

Na área andina, o registro arqueológico é menos completo, mas evidências apontam que a domesticação do feijão foi mais recente. Apesar da domesticação das plantas, a dieta de proteína animal continuou a ser usada, devido à criação de lhamas e alpacas. Entre seis e quatro milênios atrás, a agricultura estava suficientemente desenvolvida para sustentar modos de vida sedentários no altiplano andino. Prova disso são os inúmeros registros cerâmicos encontrados, além de indícios de domesticação de tubérculos.

A essas culturas incipientes dos Andes, anteriores ao advento da agricultura e da cerâmica, corresponde a cultura lítica de Viscachani (cidade na Bolívia, à altitude de 3.842 metros, localizada no município de Patacamaya, na província de Aroma), com suas pontas de projéteis toscamente lascadas e de dimensões relativamente grandes, indicando seu uso na caça de grandes mamíferos.

Após sucessivas adaptações, tendo já domesticado plantas e usando cada vez mais animais na alimentação, as culturas andinas entre cinco e quatro milênios atrás já se mostram plenamente caracterizadas pelo uso de tubérculos e camelídeos na alimentação (lhama, alpaca, guanaco e vicunha).

Esse modo de vida parece ter desafiado cataclismos e impõe-se até os dias atuais por todo o altiplano. Hoje são consumidos nos Andes basicamente os mesmo alimentos que eram consumidos há cinco mil anos: quínoa, batatas, milho e carne de lhama (em adição à de ovinos e caprinos, trazidas com os europeus).

A antiguidade americana, a despeito da ruptura que representou a invasão europeia, continua adentrando o presente no modo de ser intrínseco das sociedades locais: a vida da maioria dessas populações, mesmo hoje, é atravessada por influências que datam de milênios.

Isso é visível na alimentação, no tipo de construção que fazem (pedras sobrepostas sem argamassa, casas de adobe com teto de palha selvagem etc.), nos padrões cerâmicos, nos padrões geométricos dos tecidos, em instrumentos musicais, na indumentária etc. Mesmo as vassouras utilizadas hoje na limpeza urbana na Bolívia são feitas a partir da “paja” selvagem (em quêchua, ichhu; em aimara, wichhu), planta endêmica do altiplano, utilizada há muitos séculos para confeccionar telhados, vassouras, e também como uso medicinal, no tratamento de várias enfermidades.

Essa antiguidade tão peculiar somente aparece em sua complexidade quando história e arqueologia se articulam à cosmovisão e ao cotidiano dessas sociedades. Novos parâmetros se fazem necessários no estudo desses povos americanos. Como qualquer outro conceito de antiguidade, também aqui se fala de antiguidade relativa e que necessita ser compreendida em seus próprios termos.

Uma forma possível de se entender esse registro temporal, tão diferente do europeu, é através da cosmovisão dessas sociedades.

Nos Andes e em vales adjacentes, durante a época incaica, existem registros de que o mundo era pensado como uma totalidade tripartida em reinos (pachas) que, ao mesmo tempo em que eram distantes uns dos outros, deviam estar harmonizados e conectados dinamicamente.

Essa intercomunicação dependia da ação dos sacerdotes em elaborados rituais, e só era plenamente estabelecida pelo próprio Inca, cuja função era justamente zelar pela harmonia entre as pachas.

“Hanan pacha” é a esfera celestial, que engloba deuses como o arco-íris, a lua, o raio, o trovão etc., tendo como divindade máxima Wiracocha-Inti, representado na época incaica pelo sol (em quêchua, inti). “Uku pacha”, ou “Urin pacha” é o inframundo, mundo dos mortos, dos espíritos, das enfermidades, era reino de Pachamama, a dona da terra e, portanto, dos alimentos e da sobrevivência humana.

Da interação e vinculação entre Wiracocha-Inti e Pachamama, entre o céu e a terra, nasce o “Kay Pacha”, o mundo em que vivemos, que inclui os seres humanos, plantas e animais, montanhas, lagos e rios.

Os incas foram responsáveis por se apropriar do antigo deus Wiracocha e "transformá-lo" em Inti. Inti é outra divindade, posterior ao “Wiracocha tiwanakota”, um avatar deste.

Essa representação típica de Wiracocha, estampada em tantos tecidos e bastante recorrente no artesanato andino, do norte do Chile e Argentina ao Equador, nos faz crer que os incas foram hábeis em cultuar avatares de Wiracocha e, de alguma forma, ligá-los ao culto do Sol, Inti.

O Inca, tendo ele próprio saído da terra e sendo filho do Sol, era o ponto de comunicação entre os três mundos, tendo a seu serviço toda casta sacerdotal para corroborar sua divindade através de intrincados rituais que vivificam os mitos. Pela sua própria natureza e plasticidade, o mito é sempre modificado e coberto de novas significações com o passar do tempo.

Os incas fizeram com que muitos povos dominados acreditassem que o deus que eles cultuavam era, em verdade, Inti, o disco solar que garantia e regulava todos os ciclos da vida. Isso fazia do “Hanan pacha”, o plano celestial, o espelho no qual a vida no “Kay pacha”, o mundo daqui, estava refletida.

Os nativos das Américas não percebiam o tempo de maneira linear como os europeus de então. A ideia de um tempo em si, como conceito abstrato e universal, parecia simplesmente não existir.

Apesar de enormes diferenças entre as civilizações americanas, na maioria delas, como entre os astecas e incas, o tempo era vivido como uma simultaneidade de dimensões que agiam como engrenagens de um esquema maior. Cada engrenagem representava uma dimensão do tempo, que englobava o tempo cósmico das rotações e translações de planetas, o ciclo dos solstícios e equinócios, o tempo do plantio e da colheita, o tempo das chuvas e da seca, o tempo de vida dos homens, e o tempo absoluto dos deuses.

Essas múltiplas dimensões do tempo eram (e ainda são) expressas na linguagem – através de tempos verbais desconhecidos nas línguas indo-europeias. Eram também expressas nas festividades e rituais que marcavam a vida comunal e a relação dos homens com a colheita e a perpetuação da espécie – e ainda o são entre inúmeras comunidades.

Eram também manifestadas na arquitetura bem planejada de acordo com a ordem cosmológica: pirâmides que eram também observatórios, janelas de onde se podia observar a primeira estrela a aparecer no céu, arcos por meio dos quais se podiam festejar a entrada de um solstício.

Essa vivência de um tempo plural, dinâmica, para muito povo cíclico, não foi apagada de todo do modo de ser dos nativos.

Para o professor boliviano aymara qullana Simón Yampara (Universidad Mayor de San Simón, em Cochabamba, Bolívia, e Universidad Andina Simón Bolívar, em Quito, Equador) deve ser utilizado o termo cosmovivência e não cosmovisão, para se referir à relação dos aimaras com o tempo, com a vida, com o presente e o passado, com a tradição e o futuro.

Sua vivência das coisas do cotidiano (o trabalho, o uso de novas tecnologias, a compra de um carro ou uma casa etc.) é irremediavelmente atravessada pelo respeito e reverência que esses povos têm pela tradição, pelos ensinamentos do passado, pelos mitos que explicam a realidade e, ao explicá-la, a tornam mais simples.

Há rituais para tudo. Para obter sucesso na compra de uma casa, muitos paceños de origem aimará recorrem a um “yatiri”, seja pelas imediações da calle Sagárnaga – a famosa calle de las Brujas no centro de La Paz – seja em El Alto ou nos diversos “ayllus” que se estendem pela meseta do Collao, ou na grande feira de Alasitas, talvez a maior feira de miniaturas jamais vista.

Os yatiris, considerados hereges no período colonial, incluídos dentro do âmbito do combate às idolatrias, são hoje solicitados até mesmo pelos detentos das penitenciárias de La Paz. O típico aimara tradicional – e também o quêchua e outros povos – transita num mundo em que o natural e o sobrenatural coexistem e disputam, e somente a Dh͛alla – a reciprocidade implicada na oferenda – pode harmonizá-los.

Utilizando ervas típicas como a k͛oaà (Clinopodium bolivianum), o incenso de palo santo (Bursera graveolens) e a onipresente folha de coca (Erythroxylum coca), busca-se estabelecer a relação de reciprocidade entre o cliente e o mundo sobrenatural.

Através do ritual, o passado está exposto diante dos nossos olhos. O futuro, ao contrário, ainda não pode ser visto, pois está atrás de nossas costas. Ainda não irrompeu na roda dos tempos.

O ocidental poderia pensar que é um mundo impregnado de magia, mas o aimará compreende esses rituais como fenômenos normais e desprovidos de qualquer caráter mágico: realizado o ritual, é apenas questão de tempo para que a reciprocidade aconteça no plano material. Porque, para aquele que realiza essa cosmovivência, o natural e o sobrenatural não estão em polos distantes, mas em partes da mesma realidade, não só nos momentos mais solenes, como também na trivialidade do dia-a-dia. Se não se atinge a reciprocidade, é sinal de que o yatiri não fez um bom trabalho.

É assim que, no cotidiano dessas comunidades, o mundo das huacas sagradas, das achachilas e das almas dos antepassados estão dinamicamente conectados ao presente.

No passado desses povos, do sul dos atuais Estados Unidos das Américas (EUA) aos Andes, alguns períodos eram considerados particularmente nefastos, por encerrarem um ciclo e representarem o início de tempo novo, onde nada era previsível e onde a harmonia cósmica devia ser reconquistada através de grande rituais, que por vezes incluíam sacrifícios coletivos.

Na região do México, foi justamente num desses momentos calamitosos que surgiram os primeiros boatos sobre o avistamento de seres estranhos – não havia cavalos neste continente – e munidos de vestimentas e armas nunca antes imaginadas. Os astecas nem sequer tinham palavras para designar a maioria das coisas que passaram a ver chegando por mar, a partir de 1519, ano que representa o marco inicial da invasão espanhola.

Cortés e cerca de 500 homens chegam ao México nesse ano em que se prenunciavam grandes calamidades. Em Tenochtitlán, capital do grande império asteca, Moctecuzoma e seus sacerdotes já sentiam as angústias desse ano um-vime antes da chegada do conquistador, observando, assombrados, os vários presságios: um cometa rasgara o céu, aterrorizando a população; o templo do deus marcial Huitzilopochtli fora misteriosamente incendiado; um pássaro cinzento com um espelho na testa foi encontrado na praça maior de Tenochtitlán. O imperador passou a ser acometido de pesadelos e visões catastróficas, e os cronistas relatam um Moctecuzoma assombrado, passivo e resignado. Talvez temesse o retorno de Quetzalcóatl, que, segundo as profecias, voltaria um dia para retomar suas terras.

Narram os poetas e cantores do império asteca que as faces brancas e as barbas vermelhas dos europeus remetiam às cores do deus tolteca. Seus navios se assemelhavam a grandes montanhas no mar. Suas armas eram mágicas; suas roupas marciais eram produzidas com metal brilhante jamais visto; vinham montados em enormes bestas desconhecidas pelos nativos. Representavam mesmo a fúria e a força de deuses capazes de destruir o império. Ao passo que Moctecuzoma oferecia os mais belos presentes ao usurpador Cortés – desde ouro e jade a plumas de aves raras – populações submetidas aos astecas, como os tlaxcaltecas, tepanecas e totonacas, engrossavam o exército espanhol, oferecendo muitas vezes mais de 20 mil homens que conheciam o território e as estratégias de guerra astecas.

Este apoio de Tlaxcala e de outras cidades fortaleceram Cortés, que entrou em Tenochtitlán em novembro de 1519, estarrecido com a grandiosidade da cidade asteca. Apenas ao redor dos templos maiores, estima-se que viviam 200 mil pessoas em bairros organizados por profissões e parentesco.

A monumentalidade e complexidade de Tenochtitlán podiam ser vistas em pirâmides e templos religiosos, feiras e mercados, escolas e prédios militares, silos e chinampas, pontes e canais que interligavam a cidade criada sobre o lago Texcoco.

Em apenas dois anos, com ataques pelas ruas e canais, o fim da resistência asteca elevou Cortés a primeiro governador da Nova Espanha, instituindo a religião católica, destruindo templos e construindo igrejas sobre seus escombros, escravizando os nativos e preparando terreno para nova fase da invasão: o monopólio colonial.

Que causaram, afinal, Cortés, Pizarro e os conquistadores ao continente americano?

Apenas aparentemente conseguiram apagar os caminhos antigos. É bem verdade que vales férteis, onde outrora se plantava e colhia milho, amendoim e favas, se transformaram em deserto, pois os camponeses foram apresados nas flamejantes mitas (palavra quêchua significando turno, trabalho forçado) mineiras. Raramente retornavam, raramente se reuniriam novamente às suas famílias. A mita os desarticulava no mais profundo sentido familiar – de familiaridade sanguínea – mas também de familiaridade com a língua, o código social, o modo de ser.

Os nativos perderam do ponto de vista material, pois seus caminhos, suas casas e seus monumentos foram, em sua maior parte, destruídos, pilhados e saqueados.

Perderam também do ponto de vista espiritual, pois lhes foi imposto novo modo de pensar, o dos avós foi demonizado ao longo dos séculos. Entretanto, de quando em quando, livre de amarras, o antigo volta à cena, em inúmeras e inusitadas formas.

É a imposição de outro regime temporal aos nativos que se inscreve em todas as formas de sociabilidades vividas nas colônias latino-americanas desde a época das invasões.

Nesse regime temporal, acabaram por nos fazer acreditar, antigos e colonizados, que não possuíamos qualquer ancestralidade, apenas ossos e fragmentos relegados à primitividade. Obviamente, trata-se de enorme engano.

Hoje, a antiguidade deste continente é percebida, estudada, ensinada em escolas – é bem verdade que o Brasil é o país mais atrasado nesse sentido, sobretudo por ter retirado do currículo escolar público a obrigatoriedade do ensino da história dos povos indígenas.

É preciso resistir a essa onda conservadora que nos coloca semântica e hermeneuticamente no século XIX, com o discurso novamente eurocêntrico de que os nativos daqui não têm história, nem religiões, nem leis, nem importância no mundo globalizado e liberal.

Precisamos afirmar nossa antiguidade através do ensino, de estudos, pesquisa e divulgação do passado tão peculiar e tão interessante do ponto de vista antropológico, religioso, linguístico, tecnológico, cultural.

Nesse sentido, todo trabalho sobre história e arqueologia americana que vá à direção da antiguidade inerente a este continente não deixará de ser, também, um manifesto em favor da dignidade, da soberania dos que descendem dos povos nativos americanos.

Longe de ser reconstrução ou elucubração ideologizante, trata-se muito mais de um exercício de alteridade, da ressignificação e retomada criativa de questões fundamentais da trajetória histórica dos povos latino-americanos.

A “Reforma da Educação”, promovida após o golpe de 2016 pela Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, tornando o inglês obrigatório desde o 6º ano do ensino fundamental até o ensino médio e excluindo conhecimentos de história e cultura dos povos latino-americanos e outros que não os europeus. É exemplo do atraso civilizatório brasileiro.

 

2ª Crônica: OS MEXICANOS PELOS ASTECAS


Náuatle, também denominada asteca ou mexicana, é a língua pertencente à família uto-asteca, usada pelo povo náuatle e falada, no território atualmente correspondente à região central do México, por menos de milhão e meio de pessoas.

Foi o idioma dos astecas, que dominavam o México central durante o fim do período pós-clássico, da cronologia mesoamericana. A expansão e influência do Império Asteca fizeram com que o dialeto falado e escrito pelos astecas de Tenochtitlán se tornasse o de prestígio na Mesoamérica deste período. Com a introdução do alfabeto latino, o náuatle se tornou língua literária e muitas crônicas, obras poéticas e códices foram escritos neste idioma nos séculos XVI e XVII.

Às cartas de Hernán Cortés (1485-1547), assim como os Relatórios endereçados ao rei Carlos V, os relatos dos habitantes, então senhores do “Paraíso”, colhidos entre 1550 e 1555, pelo frei Bernardino de Sahagún, e que constituem o Livro XII, da “História geral das coisas da Nova Espanha” (encontrado na Biblioteca Nacional de Paris, na coleção Goupil, sob o título “Anais históricos da nação mexicana”), estes relatos em náuatle formam o contraponto dos nativos às narrativas dos conquistadores.

Temos esta oportunidade pelo empenho do antropólogo, historiador e linguista francês, Georges Baudot, nascido em Madri, em maio de 1935, e falecido em Toulouse, em abril de 2002, ainda lecionando na Universidade onde obtivera seu doutorado (1975).

O trabalho de Baudot, que será apresentado nesta Crônica, está em “Relatos Astecas da Conquista” (“La Conquête: récits aztèques”, 1983) na tradução de Luiz Antonio Oliveira de Araújo, para Editora Unesp, SP, 2019. A ele agregamos trechos do Frei Bartolomé de Las Casas, na edição da L&PM (1984), com tradução de Heraldo Barbuy, em “O Paraíso Destruído”.


A CHEGADA AO PARAÍSO

O homem surgiu em condições especiais e específicas em área do leste da África. O hominídio mais antigo data de 5.300.000 anos e foi encontrado no Quênia. Sempre pelo método do potássio-argônio, têm-se descobertas de 2 a 4 milhões de anos na Etiópia, e de 1.750.000 anos na Tanzânia.

Basil Davidson (1914-2010), historiador e africanista britânico, em “À descoberta do passado de África” (1978), na edição especial para o Ministério da Educação da República Popular de Angola (1981), apresenta quadro da evolução do “homo sapiens”, tendo origem em 35 mil a.C. Observando os paralelos terrestres, esta região compreendida no entorno da linha do Equador, da Etiópia à Tanzânia, só encontra similar terrestre em ilhas da Malásia e Indonésia, ou na América do Sul, na parte norte da Amazônia: brasileira, venezuelana e colombiana. Faltavam, no entanto, outros requisitos, só encontrados na África, para o surgimento do homem.

Aceitando que o homem chegou à América, pelo Estreito de Bhering, em 12 mil a.C., nossos ancestrais levaram 23 mil anos do leste da África à América. Certamente chegaram muito mais sábios, experientes, do que saíram do leste da África, e, igualmente, daqueles que se acomodaram pela África, pela Ásia Menor, Mesopotâmia ou Europa.

Basta ver os desafios impostos pelas condições geográficas, pelos animais, florestas e desertos que tiveram que enfrentar.

O homem ocidental já no povoamento da Terra começa a se distinguir do homem oriental. Nos séculos 13 a 15, estas características começarão a ser relevantes pela atividade comercial. O Ocidente aprendeu com os chineses a fabricar o papel e a fazer a impressão, a produzir a pólvora, o macarrão, a seda e a usar a bússola e o carrinho de mão.

Porém, enquanto no Oriente estes conhecimentos serviam para melhorar a vida, promover conforto e alegria, no Ocidente orientou para conquistar terras e submeter seus semelhantes.

Há, portanto, que acreditar nos orientais, que atravessaram o Estreito de Bhering, muito mais do que naqueles que aqui chegaram em naus inglesas, espanholas, holandesas, portuguesas ou francesas. Uns vinham buscar condições mais confortáveis de vida, desenvolver seus conhecimentos, outros para conquista de terra e de gente.

O ingresso dos migrantes pela ponte de gelo formada no último período glacial, glaciação Würn há 150 mil anos, conforme vários antropólogos, deu-se em três levas, separadas no tempo. Porém, aceitando a hipótese de Charles Mann e do avanço tecnológico dos orientais, é bem possível que uma das formas de chegada à América tenha sido por embarcações. Teríamos assim dois modos e três épocas da chegada dos humanos à América.

Como se sabe, a costa oeste do Canadá e dos Estados Unidos da América (EUA) não são hospitaleiras. Além da glaciação de certo modo recente, a cadeia das Montanhas Rochosas segue por mais de 4 800 quilômetros, a partir da parte norte da Colúmbia Britânica, no oeste do Canadá, até o Novo México, nos EUA, com relevos de 4.000 metros. Ainda hoje é pouco habitada. Na região oeste, próxima às Rochosas, ocorre um grande vazio demográfico por conta do clima. Na região do meio-oeste, formam-se grandes pradarias, com a bacia fluvial do Mississipi-Missouri, onde o encontro de massas de ar frio, vindas do Canadá, e de ar quente, vindas do golfo do México, tornam frequentes os grandes e destruidores tornados.

Assim, a geografia explica porque os primitivos habitantes caminharam até o México para construir seu primeiro habitat.

E a partir do México chegaram à América do Sul, igualmente, seguindo a oeste do continente, formando os dois grandes polos civilizatórios: o mesoamericano, do México à Costa Rica, e o andino, na porção oeste da América do Sul. Identifica-se também outro polo, o Amazônico, que compreende a bacia do rio Amazonas e chega ao nordeste brasileiro.

A passagem destes primitivos habitantes para a costa leste deve ter-se valido dos grandes complexos fluviais, do Amazonas ao norte, e da bacia Paraná-Paraguai, abrangendo o centro-oeste, sudeste e sul brasileiros, o Paraguai, a Argentina e o Uruguai.

Tem-se então a perspectiva da formação das identidades e das civilizações, construídas ao longo de 12 mil anos, e destruídas em dois séculos com a chegada dos europeus.

Pode-se definir o início do projeto de conquista e da destruição da cultura asteca com a chegada de Hernán Cortés, em 1504, na atual República Dominicana. Aproveitando-se de desavenças entre os governantes, com 600 homens adestrados para guerrear, colocou a frágil população, que não se preparava como os espanhóis para guerra (vide as lutas contra os muçulmanos), diante do extermínio ou da união com aqueles seres a cavalo com armaduras, lanças e espadas de metal.

Nas cartas anteriormente citadas, Cortés procurava se defender da avaliação de outros espanhóis como pessoa ambiciosa, indigna da confiança de Carlos V. Tanto que, entre 1528 e 1530, viajou à Espanha para garantir sua fidelidade ao rei, mas que o nomeou Marquês, e não Governador, como esperava.


AS NARRATIVAS

Selecionamos textos dos habitantes do México, escritos em seu idioma, e de Frei Bartolomé de Las Casas, conforme já apresentados.


Dos astecas

Em que se conta como chorou o honorável Montezuma e como choraram os mexicanos ao saber quanto os espanhóis eram fortes

“E Montezuma se angustiava, se inquietava: estava aterrorizado, estupefato: manifestava seus temores pelo destino da cidade”.

“E todos estavam apavorados. Havia um grande espanto, havia medo, havia assombro, as pessoas demonstravam angústia e preocupação; elas se consultavam, se juntavam, se reuniam. Choravam, choravam muito, choravam pelos outros. Andavam murchas, de cabeça baixa. Cumprimentavam-se chorando, chorando uns com os outros ao se cumprimentar. Encorajavam os outros, encorajavam-se uns aos outros; acariciavam os cabelos dos outros; afagavam a cabeça das crianças. Os pais diziam: Ai, meus filhos queridos! Como vos pode acontecer o que está a acontecer?”

Em que se conta como os espanhóis massacraram, chacinaram os mexicanos enquanto eles celebravam a festa de Uitzilopochtli no adro do templo

“Enquanto se celebrava a festa, e já se dançava, já se cantava, e um canto se enlaçava com o outro, e a cantoria era como um estrondo de ondas, então, quando pareceu aos espanhóis que era o momento de matar as pessoas, eles apareceram. Eles estavam preparados para a guerra. Chegaram a fechar as saídas, todas as entradas: a Porta da Águia, a porta do lado do palácio, a porta da Ponta da Cana e a Porta do Espelho da Serpente. E depois de as fecharem, eles se postaram junto delas. Ninguém podia sair”.

“Isso feito, então eles entraram no pátio do templo para massacrar as pessoas. Os encarregados de matar simplesmente vinham a pé, com seus escudos de couro; outros com escudos engastados de pregos e espadas de metal. Em seguida, eles cercaram os que estavam dançando. Foram aonde estavam os tambores e bateram nas mãos do tamborileiro, cortaram a palma de suas mãos, das duas; cortaram-lhe o pescoço e o pescoço caiu longe”.

“Em seguida, todos eles atacaram as pessoas com as lanças de metal e contra elas investiram com suas espadas de metal. Algumas foram feridas pelas costas, e suas entranhas se esparramaram pelo chão. De outras eles rebentaram a cabeça, esmigalharam, reduziram a cabeça delas a pó. E, de outras, atingiram os ombros, vieram furar, vieram despedaçar o corpo delas”.

“E foi em vão que as pessoas correram. Ninguém fazia senão engatinhar, arrastando as suas tripas; era como se elas se enredassem nos pés de quem queria fugir. Não se podia ir a lugar algum. E aqueles que tentavam sair eram feridos ali mesmo, eram apunhalados”.


De Frei Bartolomé

“Na ilha Espanhola, que foi a primeira a que chegaram os espanhóis, começaram as grandes matanças e perdas de gente, tendo os espanhóis começado a tomar as mulheres e filhos dos índios para deles servir-se e usar mal e comer seus víveres adquiridos por seus suores e trabalhos, não se contentando com o que os índios de bom grado lhes davam, cada qual segunda sua faculdade, a qual é sempre pequena porque estão acostumados a não ter provisão mais do que necessitavam e que obtêm com pouco trabalho. E o que basta para um mês de três famílias de dez pessoas, o espanhol come e destrói em um dia”.

“Depois de muitos abusos, violências e tormentos a que os submetiam, os índios começaram a perceber que esses homens não podiam ter descido do Céu. E tudo chegou a tão grande temeridade e dissolução que um capitão espanhol teve a ousadia de violar a mulher do rei e senhor da ilha. O que deu motivo para os índios procurassem meios de tirar os espanhóis de suas terras. Mas com que armas? São fracos e de tão poucos expedientes que suas guerras não são mais do que brinquedos de crianças. Os espanhóis com seus cavalos, espadas e lanças faziam apostas sobre quem, de um só golpe, fenderia e abriria um homem pela metade”.

“Certo cacique propôs aos espanhóis lavrar as terras, numa área de cinquenta léguas, pois não tinha como extrair ouro, nem seu povo sabia como o fazer. Estou certo de que o que propunha teria valido anualmente ao Rei de Castela mais de três milhões de castelhanos. Mas o que recebeu este Rei foi o desonrar, na pessoa de sua mulher, violando-a. E tão grande foi sua aflição que preferiu se exilar em terra de outro senhor. Mas os espanhóis, sabendo do exílio, começaram uma guerra contra o que abrigara o cacique, matando, saqueando tudo”.


COLONIZAÇÃO EUROPEIA

Os civilizados europeus e seus sucessores americanos foram os grandes genocidas da História. Como escreve Frei Bartolomé de Las Casas: “assassinaram muitas nações, tendo mesmo chegado a fazer desaparecer os idiomas, por não haver restado quem os falasse”.

Assim fizeram todos. Quantas etnias a Inglaterra exterminou para se tornar o reino onde o sol nunca se punha? O que ocorreu na Indonésia com a passagem dos Holandeses?

Cada época cria sua colonização, como se fosse o processo histórico civilizacional. Não houve quem se debruçasse no estudo dos primeiros americanos e constatasse que havia uma civilização sem fome e onde o povo só temia as manifestações da natureza. E destas não havia a energia fóssil para receber a culpa!

Eram criativos para prover alimentos, como descrito na 1ª Crônica, para produzir artes e diversões, como revelado por antropólogos e estudiosos do passado do homem e da natureza.

O colonizador do presente é tão ou mais cruel do que o espanhol das narrativas apresentadas. É o sistema financeiro apátrida, sustentado pela ideologia neoliberal. Nele a fome e a miséria, a doença e a escravidão são consequências desejadas e inevitáveis do Deus mercado e seus mandamentos do Consenso de Washington.

O Brasil adotou, na eleição de 1989, este Senhor Mercado. E, desde então, só retrocedemos. A maior empresa brasileira foi fatiada e resta a triste sombra do que já foi, a energia não mais serve para o povo, mas para enriquecer ridícula percentagem de bilionários apátridas, a agricultura é para exportação, como nos séculos da colônia, do Império e da primeira República, a tecnologia é importada, somos dependentes até para nos comunicar, veja a marca de seu celular, de seu computador, quando já tivemos a Cobra, a Itautec, a Scopus, a Prológica, a Dismac.

Hoje falta o Estado Nacional, o orgulho do trabalho (MEIs e ubers), a segurança na velhice e na doença, pois tudo o que importa é o lucro monetário e toda educação, nas escolas e nas comunicações de massa, flui no sentido do convencimento e da segregação aos que não aceitam ser rebanho.

 

3ª Crônica: A IMENSA AMÉRICA ESPANHOLA E A PROJEÇÃO DA EUROPA NO NOVO CONTINENTE

 

As independências nas Américas das potências coloniais europeias resultaram de processos muitas vezes complexos, com coligações, confrontos e unidades que se estabeleceram e se separaram no tempo. As fronteiras dos países foram estabelecidas por guerras e acordos que ocuparam todo século XIX.

O primeiro país a obter a independência nas Américas, da colonizadora França, foi o Haiti na luta iniciada em 1791 e encerrada em 1804. O Haiti foi a primeira república de escravos auto libertados contra o domínio colonial, sob a liderança do escravo negro Toussaint l'Ouverture (1743-1803). Não apenas se tornou independente da França, como aboliu a escravidão.

O caso dos Estados Unidos da América (EUA) será tratado separadamente, até porque as Treze Colônias, que ficaram independentes em 1776, correspondiam a menos de 10% do atual território estadunidense (970.306 km²/9.833.517 km²). Os EUA cresceram territorialmente após sua independência, apropriando-se das áreas indígenas, de espanhóis, franceses e, por compra do tzar da Rússia, o Alasca, em 1867.

Na América Espanhola as independências do vasto território têm início em 1810 e vão até 1898 (Cuba).


COLONIZAÇÃO DA AMÉRICA ESPANHOLA

A América Espanhola foi constituída pelos:

a) Vice-Reinado da Nova Espanha, que ocupava, nos EUA, seus atuais estados de Novo México, Arizona, Califórnia, Nevada, Utah e Colorado, representando 1.811.981 km², o México e a América Central continental da Guatemala e Belize até à Costa Rica, tendo como capital a Cidade do México;

b) Vice-Reinado de Nova Granada, no noroeste da América do Sul, correspondendo o Panamá, Colômbia, Equador e Venezuela, estendendo sua influência a porções dos atuais territórios das Guianas e de Trindade e Tobago, tendo por capital a cidade de Santa Fé de Bogotá;

c) Vice-Reinado do Peru, compreendendo o atual Peru, Bolívia, Chile, governado a partir da capital Lima;

d) Vice-Reinado do Rio da Prata, com os territórios da Argentina, Paraguai, Uruguai, e pequenas partes dos territórios que atualmente pertencem ao Brasil e à Bolívia, tendo por capital Buenos Aires.

Além destes Vice-Reinados, havia as Capitanias Gerais da Flórida, de Cuba, da Guatemala, da Venezuela e do Chile, como suporte à estrutura burocrática e administrativa da presença espanhola.

De início não houve obra de colonização, somente de pilhagem. Na segunda metade do século XVI, quando rareava a extração de ouro, e dizimados muitos nativos, teve início incipiente processo de gestão colonial.

Era consequência da própria Espanha, que custou a se unir, se organizar para explorar as colônias e, assim, obter capitais para manter a perdulária coroa de Carlos V, que comprara sua eleição para Imperador do Sacro Império Romano Germânico do Ocidente.

O parasitismo da classe dominante espanhola levou-a a entregar a terceiros a exploração colonial. Modelo também adotado pela classe dominante portuguesa, no Brasil, com as Capitanias Hereditárias. Porém houve os que exploravam os recursos extrativos e os que constituíam grandes propriedades territoriais para produção agrícola de exportação.

As formas de trabalho eram tipos de escravidão, a denominada encomienda, e outra, igualmente compulsória, a mita, para extração mineral.

A vida colonial reproduzia a metropolitana: excludente, fechada, aristocratizada. No topo estavam os espanhóis, chapetones, com os altos cargos da administração terrena e divina. Seus filhos, nascidos nas colônias, criollos, dedicavam-se ao comércio e a explorar as grandes propriedades. Abaixo dos criollos vinham mulatos e mestiços, executores de serviços, e, na mais baixa condição, sem direitos, os escravos negros e índios.


COLONIZAÇÃO INGLESA, HOLANDESA E FRANCESA

Darcy Ribeiro (“As Américas e a Civilização”, 1970) distingue países que são mera projeção dos colonizadores daqueles outros que formam sua identidade a partir da cultura que se desenvolve de acordo com o ambiente físico e humano: povos testemunho ou originários (mexicanos, peruanos, bolivianos, equatorianos, guatemaltecos), povos novos ou miscigenados (venezuelanos, colombianos, paraguaios e brasileiros) e povos transplantados (estadunidenses, canadenses, argentinos) resultantes de grandes massas migratórias que buscaram refazer, nas Américas, o modo de vida europeu.

Os Estados Unidos da América (EUA) são nitidamente resultantes da projeção colonial inglesa e holandesa e, com menor influência, francesa e de outras populações europeias. Já a América Espanhola, assim como a Portuguesa, constituíram diversidades culturais facilmente identificáveis nas ruas do México, de Bogotá, de Lima e do Rio de Janeiro, como exemplos originários e mestiços.

O poder na Inglaterra começa a ser construído com a Dinastia Plantageneta (século XIII), quando foram celebradas as “Magnas Cartas”, também denominadas “Tratados”, “Estatutos” e “Provisões”, e fica nas mãos da aristocracia fundiária inglesa, e, em menor proporção, das galesa e escocesa.

A Inglaterra se transforma com a passagem dos “Tudor” para os “Stuart”; das primeiras manifestações está a vitória da esquadra inglesa sobre a “Invencível Armada” de Felipe II, em 1588, seguida, em 1600, com a criação da Companhia Inglesa das Índias Orientais.

Os Países Baixos, até o século XVI, eram parte do Império Espanhol, porém desenvolveram competente e ativa burguesia de negociantes e financistas, com protestantes e judeus. Em 1609, formaram a República das Províncias Unidas e passaram a ocupar possessões espanholas pelo mundo. Já nos anos 1600 era modelo de país capitalista: mercantil, financeiro e industrial.

Nas Províncias Unidas são fundados, em 1602, a Companhia Holandesa das Índias Orientais, e, em 1609, o Banco de Amsterdã, quando também é firmada trégua de 12 anos entre estas Províncias Unidas e a Espanha. Em 1619 é constituída a Batávia, estado neerlandês que existiu até 1806. Em 1621 é criada a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais.

Entre 1652 e 1780, foram travados quatro conflitos navais entre a Inglaterra e a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos pelo controle das rotas comerciais marítimas: as guerras anglo-holandesas.

A ausência do poder central, como existia no século XVI na Espanha e em Portugal, atrasou a construção do sistema de administração colonial para a Inglaterra e para a Holanda. Foram aristocratas e “burgueses” que o constituíram como mercado para manufatura e escravos.

Na França, o caminho foi traçado por Armand Jean du Plessis, o Cardeal Richelieu (1585-1642), que, formando a Monarquia Nacional Francesa, criou um dos mais poderosos países da Idade Moderna.

Com as transformações na Inglaterra do século XVII e o processo de industrialização, alterando perspectivas e modos de vida, acrescidos dos insucessos das nobrezas espanhola e portuguesa, o processo colonial tomou outro rumo, tendo os EUA, cujas terras eram menos valiosas, constituído novo modelo colonial.


ESPECIFICIDADES ESTADUNIDENSES

A primeira colônia inglesa, Virgínia (1607), não foi obra do Estado Inglês, mas de companhia comercial que a constituiu como feitoria, para escoar o ouro a ser encontrado. Não havendo descoberto ouro, iniciou então a produção de tabaco.

A Companhia Plymouth foi autorizada a estabelecer assentamentos entre as latitudes 38° e 45° N, aproximadamente entre o curso superior da Baía de Chesapeake e a atual fronteira dos EUA com o Canadá. Em 13 de agosto de 1607, a Companhia Plymouth estabeleceu a Colônia Popham ao longo do rio Kennebec, no Maine. No entanto, foi abandonado após cerca de um ano e a Companhia Plymouth se desfez. A empresa sucessora acabou estabelecendo um assentamento permanente, em 1620, quando os peregrinos chegaram a Plymouth, Massachusetts, a bordo do Mayflower (John Patterson Davis, “Corporations: a study of the origin and development of great business combinations and of their relation to the authority of the state”, Putnam's Sons, NY, 1905).

Herbert Aptheker (1915-2003), historiador estadunidense, em “Uma Nova História dos Estados Unidos A Era Colonial” (tradução de Maurício Pereira para Editora Civilização Brasileira, RJ, 1967) comenta que o aparecimento do capitalismo pôs em marcha o processo de colonização e transcreve as palavras do Marquês de Carmarthen na Câmara dos Lordes: “para que fim se permitiu que os colonos fossem para aquela terra, a não ser para que o lucro de seus trabalhos retornasse a seus senhores daqui?”.

E Aptheker conclui: “ao implantar colônias, os soberanos implantaram rebelião. A rebelião fez parte orgânica dos interesses contraditórios dos colonizadores e colonos”.

A doutora pela Universidade de Chicago, Nancy Priscilla Naro, escreve em “A Formação dos Estados Unidos” (Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1985): “com o Tratado de Paris, em 1783, terminaram oficialmente as hostilidades entre os americanos e os ingleses. Durante a guerra, os estadistas americanos não buscaram implantar nova ordem social. Não se propuseram a fazer uma revolução total que levasse os grupos de condição social inferior, ou sem poder, a exercerem o poder político e levarem a efeito uma mudança drástica no caráter da sociedade. A união das treze colônias foi estimulada por líderes privilegiados que visavam o controle local americano e a ruptura do pacto colonial com a metrópole inglesa”.

Voltemos a Aptheker, na obra citada: “Os ricos viviam na América Colonial como viveram em toda parte. Uma casa na cidade e a do campo; centenas ou milhares de acres; dezenas de empregados ou escravos; refeições lautas; festas incessantes; seda e cetim; veludo e pérolas; carruagens e baixela de ouro; peças da moda e música e livros; negócios, alianças, intrigas; altas e poderosas funções; e intensa preocupação com a conservação de tudo isso e em manter a “gentinha” em seu lugar. Essas diferenças eram a obra e a vontade de Deus, porque de outro modo não existiriam”.


O QUE NOS RESTOU DA COLONIZAÇÃO

As Américas, de modo geral, passaram a ter independência política a partir do século XIX, menos mal do que a África que levou para meados do século XX esta condição. Hoje, povos da faixa do Sahel se revoltam contra a permanência da dominação colonial, numa segunda onda independentista.

Mas que tipo de independência, se perto de 90% da população nativa foi exterminada em menos de 300 anos? E para suprir a falta de mão de obra foram trazidos, nas mais duras e cruéis condições, entre 1514 e 1866, perto de 13 milhões de africanos. Confronte-se esta quantidade com o número de habitantes que era necessário para que um estado pudesse ser incorporado à União nos EUA: 60 mil, homens, mulheres e crianças. E, nesta contagem, cinco escravos equivaliam a três homens livres.

Da reflexão de Herbert Aptheker, concluímos que a religião judaico-cristã, trazida pelos conquistadores, dominante por todas Américas em diversas organizações e denominações, influenciou negativamente a formação da sociedade americana: preconceituosa, excludente e hipócrita.

Veja-se, como exemplo, o “Destino Manifesto”. Havia a ideia vaga de unir o leste atlântico ao oeste do Oceano Pacífico. Tinha, além do interesse expansionista econômico, um fundo religioso, catequético. O Congresso estadunidense aprovou lei, em 1787, para facilitar a incorporação de terras ao norte e a oeste, mas faltava o incentivo psicossocial: um lema ou desafio. Ele surgiu com a expressão “Destino Manifesto”, posteriormente ampliado para o modelo colonizador estadunidense; os EUA não podiam ser menores do que a América Espanhola.

“A “democracia” jacksoniana” (Andrew Jackson, 1829-1837), expõe Nancy Naro, “resultou numa política expansionista, que não poupou o uso da força contra as resistentes tribos indígenas da Geórgia e da Flórida. Jackson manifestava forte solidariedade com os abastados habitantes do interior, que defendiam, pelo mando do poder militar (Jackson era general), a sua hegemonia sobre os novos territórios”. “Não houve negro beneficiado pelo poder do voto em qualquer dos estados incorporados de 1819 até a Guerra Civil (12 de abril de 1861 a 09 de abril de 1865)”.

A crise do ocidente: social, econômica, tecnológica, artística, familiar, que cada vez mais se aprofunda neste século 21, e, diante dos êxitos obtidos pelo contexto euroasiático, com a multipolaridade, faz-se prever proliferações das atitudes do Níger, Mali, Burkina Fasso, Sudão, Etiópia entre outros países da faixa do Sahel.

 

4ª Crônica: Preparando as independências políticas e as sujeições coloniais.

 

Imagine, caro leitor dessas Crônicas, que a Imperatriz da Rússia, Catarina II, a Grande, que gostava de se ver cercada por intelectuais e estrategistas, perguntasse para onde o Império Russo, que governou de 1762 a 1796, deveria voltar seus exércitos, visando aumentar, ainda mais, seu imenso território. E que tal indagação ocorresse ao mesmo tempo da fundação, por Grigory Shelekov, da colônia russa no Alaska (1784).

Olhando as Américas, estes homens veriam quatro grandes vice-reinados: Nova Espanha, Nova Granada, Peru e Rio da Prata, falando o mesmo idioma, professando a mesma religião e tendo estruturas administrativas semelhantes, desde o sul da América do Norte até a Patagônia. Por outro lado, ao norte, além do eventual ponto de apoio do Alaska, uma dezena de pequenas colônias, falando inglês, francês, sueco, escocês, galês, holandês e com religiões distintas: puritana, anglicana, batista, quaker, luterana, católica, judaica, faziam prever diversos e pequenos novos países, provavelmente sem condições de enfrentar a Rússia Czarista.

Fora deste contexto, ao sul, voltado para o Oceano Atlântico certa unidade territorial, subordinada ao Império Português, já se fizera notar pela expulsão de franceses e holandeses em diversos pontos do Brasil.

Os conselheiros não teriam dúvida em recomendar à Imperatriz que invadisse o que se constituía nas Treze Colônias estadunidenses.

Imagine suas surpresas, vendo as Américas ao término da I Grande Guerra, ou Guerra Civil Europeia, em 1918.

Nesta crônica lançaremos algumas ideias para buscar a explicação que contrariava a lógica da política expansionista do século XVIII, e porque, no século XIX, as Américas, com única exceção do Brasil, não formaram, territorialmente, grandes países.

Coevo dos iluministas assessores de Catarina II, pois nasceu no ano seguinte ao início dos seus 34 anos de reinado, José Bonifácio de Andrada e Silva faz parte do pequeno número dos grandes pensadores políticos da história moderna, como Cardeal de Richelieu, verdadeiro construtor do Império Francês, Marquês de Pombal, que buscou revitalizar Portugal, e George Washington, de quem discorreremos, brevemente, na continuação desta Crônica.

O sucesso ou insucesso de ver suas ideias serem concretizadas não diminui a qualidade do analista. Veja o caso do próprio José Bonifácio e do outro grande brasileiro, os dois únicos que merecem estar no panteão dos construtores da nacional brasileira: Getúlio Vargas.

O retraimento de Bonifácio talvez tenha, mais do que seu empenho de político, garantido nossos 8.510.345,538 km², e o suicídio de Vargas prorrogou, por 35 anos, as políticas desenvolvimentistas no Brasil, possibilitando-nos os 50 anos gloriosos da Era Vargas.

Porém, meu culto leitor já estaria observando contradição na exposição inicial: como Catarina II, em 1784, invadiria as colônias do norte da América, se suas independências ocorreram em 04/07/1776?

Por que os Estados Unidos da América (EUA) ainda não existiam. A Guerra contra Inglaterra só foi concluída em 03 de setembro de 1783, quando a Inglaterra assina o Tratado de Paris, onde:

a) reconhece a Independência das Treze Colônias e lhes entrega o território compreendido entre os Grandes Lagos, os Montes Apalaches e os rios Ohio e Mississippi; e

b) devolve à França e à Espanha os territórios que incorporara após a Guerra dos Sete Anos.

As Treze Colônias representavam menos de 10% do que viria constituir os EUA, exatamente 9,86%, e a Constituição que daria homogeneidade institucional, política e jurídica ao país só seria assinada em 17/setembro/1787.

A hipotética ambição de Catarina II não estava por conseguinte fora da realidade. E mais. Como assinala, entre outros autores, Ray Raphael, da Universidade da Califórnia: “durante mais de um século e meio, os colonos desenvolveram em suas casas as histórias locais. Elas se mantiveram separadas e distintas”, mas a Guerra pela Independência e a construção de nova Nação exigiu que se fundissem e se inventasse um passado comum, verdadeiramente inexistente. E em “Founding Myths: Stories that Hide our Patriotic Past”, 2004 (traduzido por Maria Beatriz de Medina, “Mitos sobre a Fundação dos Estados Unidos”, para Editora Civilização Brasileira, RJ, 2006) Raphael enumera o que as crianças estadunidenses passaram a estudar, desde as primeiras letras, e os políticos a repetir em Assembleias sobre a História dos EUA.

Pierre Melandri, historiador francês, especialista nos EUA, escreve no início de sua “História dos Estados Unidos desde 1865”:

“A metamorfose dos Estados Unidos num período pouco maior do que um século, a partir de 1865, é um fenômeno impressionante. Pequena república, ainda povoada por maioria camponesa ao fim da guerra civil, surge como a mais avançada das civilizações pós-industriais. Terra do individualismo e das virtudes agrárias, ainda mergulhada no último terço do século XIX, no ordálio pioneiro da epopeia da “Fronteira”, os Estados Unidos representam o cadinho da concentração econômica e financeira, onde dois terços dos ativos da indústria pertencem a apenas a duzentas empresas, a maioria delas controlada por alguns bancos nova-iorquinos” (P. Melandri, “Histoire des États-Unis depuis 1865” (2000), na tradução de Pedro Elói Duarte, para Edições 70, Lisboa, 2006).


CONHECER A REALIDADE ENTRE AS BRUMAS DAS IDEOLOGIAS

Parte do que vem ocorrendo nos EUA é a invasão ideológica, um totalitarismo que não aceita exceção. Coloco as palavras de Ray Raphael, na obra citada: “A história nunca consegue recriar adequadamente o passado” e, adiante, esclarece: “quem controla a narrativa, controla a história”. E como auxiliando a confusão, “a mera multiplicidade dos eventos frustra as tentativas de fazer bela embalagem”. Resultado: um país de conto de fadas: ora boas ora más, não para sociedade, mas para quem controla a educação e sua continuidade na comunicação de massa. Aprendemos errado ou parte do acontecido, para fazer prova de conhecimento, e o “instagram” e os “Jornais Nacionais” completam nossa desinformação, para o convívio pacífico nas comunidades.

Foi na Colônia de Virgínia, a primeira constituída nos EUA (1607), pela Virgínia Company, autorizada pelo rei Jaime I, em 10/04/1606, com o objetivo de colonizar a costa oriental da América, que nasceu George Washington (22 de fevereiro de 1732, Bridges Creek-14 de dezembro de 1799, Mount Vernon). Filho de rica família, que fizera fortuna com a especulação imobiliária, e para onde seu bisavô, John Washington, imigrou, em 1656, de Sulgrave (Inglaterra).

Até seu casamento com a jovem viúva Martha Dandridge Custis, do rico proprietário de 7 300 ha de plantações, Washington havia sido agrimensor e militar. Foi com a vida de casado e a fortuna e capacidade de sua esposa que se viu na política, apoiando, em 1775, a candidatura do amigo George William Fairfax para representar a região na Casa dos Burgesses da Virgínia. Eleito e reeleito se tornou crítico da política tributária da Grã-Bretanha e das políticas mercantilistas, em relação às colônias americanas.

Washington foi incluído na elite política e social da Virgínia. De 1768 a 1775, convidou cerca de dois mil visitantes para sua propriedade, em Mount Vernon, principalmente aqueles que considerava "pessoas de nível". Tornou-se politicamente ativo e apresentou projeto de lei na Assembleia da Virgínia para estabelecer embargo aos produtos da Grã-Bretanha.

Em junho de 1775, o Congresso criou o Exército Continental, e Samuel e John Adams indicaram Washington para se tornar seu comandante em chefe. Washington compareceu ao Congresso uniformizado e fez o discurso de aceitação em 16 de junho, recusando salário — embora mais tarde tivesse suas despesas reembolsadas. Foi comissionado em 19 de junho e elogiado pelos delegados. John Adams proclamou ser Washington o mais adequado para liderar e unir as colônias.

Era sem dúvida um dândi, mas tinha conhecimento dos terrenos, como ex-agrimensor e fazendeiro, e seus amplos relacionamentos o fizeram bom leitor de personalidades.

O absolutismo perdia espaço entre a intelectualidade europeia. A liberdade individual estava em moda e explodiria com a Revolução Francesa. Invenções e conjurações e inconfidências corriam a Europa e suas colônias, como a Mineira, de Tiradentes, em 1789, no Brasil.

Washington soube se cercar de patriotas com o mesmo empenho em criar o país onde houvesse a liberdade individual e os projetos nacionais. Além de Adams, que viria ser seu vice-presidente, Jefferson, Alexander Hamilton, Edmund Randolph compuseram seu governo.

Porém, mais do que isso, a ancestralidade de lavradores ensinara a ver a realidade, não se iludir com as névoas das ideologias, e lhe parecia a arrogância inglesa e sua necessidade de explorar economicamente as colônias motivo suficiente para uni-las em defesa de suas independências, da liberdade que motivara suas imigrações.

Mais difícil do que unir para guerra foi manter a união após a vitória.

E, sobre isso, o historiador e dramaturgo Charles L. Mee, Jr mostra perfeitamente em “A História da Constituição Americana” (tradução de “The Genius of the People” (1987), por Octávio A. Velho, para Expressão e Cultura, RJ, 1993) ao afirmar: “Ao término da Convenção, nenhum dos delegados – nem um sequer – estava inteiramente satisfeito com a constituição que havia elaborado. Alguns recusaram-se firmemente a assiná-la, e os que a assinaram fizeram com graus variáveis de relutância, desalento, angústia e desagrado”.

Por que, perguntará o arguto leitor, os EUA derem certo? Porque, ao lado da liberdade individual, das iniciativas pessoais, constituiu-se um estado provedor de capital, que era sócio, no mais das vezes oculto, dos negócios, e que formou com isso o poder plutocrático, paralelo aos poderes constituídos pela Constituição, que a mantém quase intocada desde 1787. Os banqueiros, fazendeiros, comerciantes, militares que se reuniram naquele longo verão (25 de maio e 17 de setembro), na Filadélfia, sob as lideranças de George Washington, Alexander Hamilton e Benjamin Franklin estavam criando não o país da justiça (afinal a constituição manteve a escravidão) e da liberdade (exceto para o capital, obviamente), mas do engodo, das comissões, ou, nas palavras do próprio constituinte Benjamin Franklin: “dos preconceitos, paixões, interesses locais e visões egoístas”.

Os EUA nascem com o engodo e assim, aproveitando as oportunidades e fraudando as realidades, fez sua história.


DIVERSIDADES NA UNIDADE DA AMÉRICA ESPANHOLA

Na segunda dessas crônicas, manifestávamos a compreensão que os primitivos ocupantes das Américas chegaram 23 mil anos mais sábios do que partiram em direção à Ásia. A surpreendente civilização asteca, como a maia e inca que recepcionaram os espanhóis são exemplos deste entendimento. Entretanto, a crueldade e ambição dos espanhóis assustaram os locais que não viam como enfrentar desconhecidos cavalos, armaduras e armas de fogo.

Por razões de síntese, fiquemos na civilização inca. Em 1520, o Império abrigava cerca de 12 milhões de pessoas, falando cerca de 20 idiomas, na área de 950 mil km2. Existiam, naquela sociedade oral, os “memorizadores”, responsáveis por transmitirem a história, que alguns espanhóis recolheram.

Em extensão, o Império Inca foi o maior que os espanhóis encontraram; do atual Equador, prolongando-se por 4.700km, até o norte do Chile. Estava dividido em quatro territórios (“suyu” em quíchua): Chinchaysuyo, Antisuyo, Contisuyo e, ao sul, Collasuyo.

Da relação dialética entre a natureza, o espaço físico, e as crenças e saberes surgem as culturas. Vê-se portanto que os Incas, tendo submetido outros povos andinos (chancas, ayarmacas, colas, lupacas), sabiamente, dividiram seu território para minimizar disputas, que a escassez, mormente de alimentos, impulsionava.

Ao criarem uma unidade administrativa, trataram de fortalecê-la com o Grande Conselho dos Incas, formado pelos representantes das quatro províncias (suyus) e por dois representantes de Cuzco (Hanan Cuzco e Hurin Cusco). Cusco (qosqo), em quéchua, significa “umbigo do mundo”. Esta divisão correspondia a duas partes da cidade, alta e baixa, e era também os locais das residências dos soberanos, das linhagens reais. Não há homogeneidade dos cronistas quanto a época desta divisão, aparentemente essas famílias nobres já existiam quando o rei reformista dividiu a cidade nestas duas partes, assimétricas, para efeito administrativo.

Uma característica da governança Inca é a presença do Estado. Tudo era propriedade estatal, porém dividida em três partes: (1) para o próprio Estado (“Tahuantinsuyu”, em quéchua, “Império dos Quatro Cantos”), (2) para a Igreja e (3) para o povo, para as comunidades.

O Império Inca correspondeu, total ou parcialmente, aos atuais países: Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile e Argentina.

Se as diversidades norte-americanas poderiam confundir, na elaborada hipótese de uma conquista da América por Catarina, a Grande, a homogeneidade dos Vices Reinados do Peru, do Prata e, parcialmente, da Nova Granada, por onde se espalhava o Império Inca, não denunciariam as características específicas de cada país, mas, tão somente, o resultado da quase extinção das populações e de suas culturas pelo período colonial.

Também, as estruturas políticas, sociais e econômicas surgidas com as diferentes influências para as independências, que decorreram quase todas na primeira metade do século XIX (1810 a 1850), viriam ressaltar diferenças que foram subjugadas pela religião católica, pelas formações intelectuais europeias, pela economia colonial e pelo poder totalitário do domínio espanhol.

Temos assim amostras das formações dos atuais Estados Nacionais das Américas: farsas generalizadas, impedindo reconhecer a ambição voraz estadunidense, e as influências antinacionalistas na antiga América Espanhola. As atuais exceções: Cuba e Venezuela são denominadas ditaduras, e os países que procuram se libertar do julgo unipolar são também vítimas de exclusões, golpes articulados do exterior, embargos, sanções e confiscos arbitrários.

 

5ª Crônica: As independências na América espanhola.

 

Filha do Século das Luzes, as Independências na América Latina ocorreram no século seguinte, o XIX. Apenas os Estados Unidos da América (EUA) foram contemporâneos do iluminismo. E esta saída à frente lhe possibilitou açambarcar senão terras, também as ideias, que moveriam os movimentos ao sul do rio Grande.

As fake news não começaram com a redemocratização no Brasil, mas, nas Américas, com os puritanos chegados a Plymouth Rock que, a lenda diz, encontraram o índio wampanoag, de nome Squanto, a lhes dar boas-vindas em inglês.

E é o historiador estadunidense Ray Raphael quem nos desvenda os Mitos da história narrada para os estudantes e todos estadunidenses e estrangeiros (“Founding Myth: Stories that Hide our Patriotic Past”, 2004).

Muitas denominações surgidas com o protesto de Martin Lutero (1517) vieram para o atual EUA, então uma série de colônias separadas por idiomas, religiões e costumes de suas origens. A Guerra Civil de 1865 deu a feição nacional que as treze colônias não conseguiram, além da Constituição Plutocrática de 1787. O genial pensador brasileiro Darcy Ribeiro analisa, nos cinco volumes dos "Estudos de Antropologia da Civilização”, o que se passou naquele país e o que ficou no nosso e nos demais latino-americanos.

Retiramos do terceiro volume, “O Dilema da América Latina” (1971):

“O efeito mais dramático deste condicionamento das promessas da nova civilização a uma ordem privatista obsoleta é que ele frustra as próprias capacidades humanas. As do povo estadunidense que, marchando para Revolução Termonuclear dentro do atual enquadramento, tem unicamente diante de si perspectivas de maior repressão e defraudação. As dos povos pobres de todo mundo que veem nessa progressão a negação de qualquer possibilidade de erradicar a pobreza, a fome e a desigualdade, em tempos previsíveis”.

De 1810 a 1886, os Vice-Reinos da Nova Espanha, da Nova Granada, do Peru e do Rio da Prata se estilhaçaram em múltiplos países, que se tornaram politicamente independentes. Efetivamente, mudaram de dono. A potência em queda, desgastada, defasada tecnologicamente para guerra e para administrar seus territórios, a Espanha, cede a América Hispânica à emergente Inglaterra, que construía o maior império em terras descontínuas sob seu mando imperialista.

Face à tragédia que assola atualmente o Equador, tomaremos este país para exemplo do que ocorreria em todos os países, do México à Argentina, no processo de independência política, claro que ressalvando as condições geográficas, naturais de cada um, e da dominação teocrática anterior sob os astecas, maias e incas.

Do ponto de vista interno às colônias, o tratamento diferenciado prejudicando interesses dos nativos e mesmo dos mestiços, nos campos político, social e econômico, para benefício dos europeus e descendentes dos espanhóis, formou o desejo de independência que se confundia, muitas vezes, com o nacionalismo.

Do ponto de vista externo, a presença dos EUA, que adotaram a forma republicana e eletiva de escolher seus governos, era muito forte, e a ela se somavam os ecos da Revolução Francesa. Travava-se a luta ideológica entre a submissão e a liberdade, ainda que cercada das fraudes produzidas por ambas as partes. O modelo econômico extrativo exportador de produtos primários não permitia sentir os efeitos da Revolução Industrial. Porém a tentativa de constituir grande Estado, como seriam as Províncias Unidas de Nova Granada, também naufragaram por ambições, identitarismos e circunstâncias locais, episódicas e corruptoras, principalmente favorecendo os interesses estadunidenses.

Estes últimos foram estabelecidos pelo presidente dos EUA, James Monroe, em 02/12/1823, em sua Mensagem ao Congresso, e veio a ser conhecido como Doutrina Monroe. Reforçou a hegemonia dos EUA no continente, no aparente freio para que as nações europeias recolonizassem suas antigas possessões. Como se conhece da história, houve a troca de senhores, a colonização deixou de ser política e ideológica, que se tornara onerosa, para ser econômica, sempre mantida a ideológica, de submissão a um poder externo.

Os mais estudados casos dizem respeito ao México e ao Vice-Reinado do Prata, mas nos voltaremos para aquele que sofre a transformação mais nefasta, neste século XXI, por força da ideologia que tomou o mundo ocidental desde 1980: a neoliberal.


O MUNDO SEM ESTADO NACIONAL?

Quando os povos, unidos pelos mesmos desafios da natureza, constroem seu modo de vida, podemos dizer que se forma a cultura que erigirá seu Estado Nacional.

Portanto os nacionalismos nada mais são do que a construção, no tempo, das melhores respostas que uma ou várias etnias concluíram atender ao modo de vida saudável, harmônico e único para aquelas pessoas naquele lugar. Não há nacionalismo como ideologia, ele existe como a resposta da nação a seus desafios.

Rogério Cézar de Cerqueira Leite, cientista brasileiro de renome internacional, escreveu, em 1983, para Editora Brasiliense, “Quem tem medo do nacionalismo?”, de onde transcrevemos:

“A ausência de nacionalidade implica perda de identidade”.

E acrescenta o elemento que assusta todo entreguista, todo alienado, todos que não são leais à construção do Estado Nacional: o fator político. Cerqueira Leite acrescenta do “Dicionário Moderno de Sociologia”, (Theodorson, G. A. e Theodorson, A. G. “A modern dictionary of sociology”, Methuen, London, 1970):

“Nacionalidade é a participação e identificação com nação particular. Neste sentido do termo, que é essencialmente político, nacionalidade frequentemente envolve cultura comum”.

Porém o mundo foi tomado, nas duas últimas décadas do século 20, por uma ideologia que não aceita as nacionalidades, na verdade as ignora, pois seus fundamentos têm a mesma característica do tomismo medieval: a inexistência de governos na Terra, pois tudo vem dos Céus.

Armando Piovesan e Edméa Rita Temporini, da Universidade de São Paulo, em “Pesquisa exploratória: procedimento metodológico para o estudo de fatores humanos no campo da saúde pública”, na Revista Saúde Pública, 29 (4), 1995, desafiam:

“Se a população pensar que Deus é quem manda a doença, portanto, contra tal desígnio nada há a fazer, ou, que a pessoa se cura somente pela vontade de Deus, quais as ações preventivas a realizar ou, que mensagens teriam efeito? As crenças populares, em geral, são fortemente arraigadas e de difícil mudança. Assim, a argumentação técnica a ser utilizada em trabalho dessa natureza deve ser elaborada com base no conhecimento dessas variáveis e na linguagem popular, ao invés da linguagem científica”.

A ideologia neoliberal não busca somente aprisionar os Estados Nacionais, ela evita a formação e desenvolvimento dos saberes, que, mais dia menos dia, questionarão o imenso retrocesso cognitivo a que as igrejas neopentecostais, as “do cofrinho”, com “encenações milagrosas”, shows de mágicas, acompanhando as pregações e os pedidos, vão desconstruindo a realidade sobre a qual se vive.

Neste mundo do faz de conta floresce a corrupção dos mais fortes, dos mais poderosos, retirando o quase nada dos demais, como relatamos nas condições internas, formadoras do desejo de independência.

É avassalador e imenso o âmbito do retrocesso neoliberal.

Vamos para economia, que virou a “verdade” do século, em exemplo trazido por Cerqueira Leite na obra citada.

“A filial brasileira do grupo francês Saint Gobain Pont-à-Mousson trouxe, de 1951 a 1975, ao Brasil, o total de recursos igual a 11% de seu capital registrado ao final desse período. Foi, portanto, a poupança brasileira, por intermédio de reinvestimentos sucessivos, que constituiu quase 90% de seu capital. Apesar da política de reinvestimentos maciços, a remessa de lucros da companhia alcançou, nesse mesmo período, 236% do investimento inicial. Os ganhos totais dessa empresa em 15 anos foram 1.015% do investimento inicial”.

Este não foi um caso excepcional, mas é a regra do capital estrangeiro no Brasil e por toda América Latina.

Cerqueira Leite conclui: “a afirmativa, reiterada a cada oportunidade, de que a poupança externa foi essencial para o desenvolvimento brasileiro é uma das mais perniciosas falácias que ferem os interesses nacionais”.

E, com os “incentivos” pode-se com tranquilidade e certeza afirmar que muito pouco, se houver algum, o capital externo é formado por capital de risco. Ele chega aqui e por todas Américas, sob domínio neoliberal, com a certeza do lucro e retorno.


EQUADOR, HOJE

O Equador é uma miniatura maravilhosa de diversidades: de praias com o sol e alegria das nordestinas brasileiras, aos Andes, das manifestações culturais indígenas e resquícios do período colonial espanhol, dos melhores momentos do barroco ibérico, à exuberância tropical da Amazônia, onde está o petróleo equatoriano, maior fonte de recursos do País.

E como cereja do bolo, ainda pertencem ao Equador as Ilhas Galápagos, amostra do mundo de onde nascemos, onde Charles Darwin, a bordo do Beagle, obteve elementos para sua teoria da evolução das espécies.

Porém desde 1809 e 1820, com as revoluções de Quito e Guayaquil, com a participação do mesmo Lord Cochrane, almirante aventureiro, especulador financeiro, que atuou na independência do Brasil, e favoreceu ao Equador com sua ação contra os espanhóis no Peru, travavam-se as batalhas pela Independência da qual participaram os grandes libertadores Bolívar e San Martin.

Em 1830, o general venezuelano Juan José Flores assume a presidência do novo Estado Nacional, o Equador. Em 1835, com apoio de Flores, o primeiro equatoriano, Vicente Rocafuerte y Bejarano, é empossado presidente.

Como ocorrerá por toda latinidade americana, as questões orçamentárias, mais especificamente financeiras, dada ao protagonismo dos banqueiros ingleses, conduzirão as decisões do Estado. Na prática, saiu-se da colônia política para colônia financeira; os lucros continuavam a fugir do país e alimentar Estados Nacionais estrangeiros.

Com governos eleitos, ditaduras civis e militares, uns nacionalistas, outros agentes de interesses estrangeiros, assim com ocorreu com o Brasil, o México, a Venezuela, a Argentina, também o Equador obteve alguns êxitos, talvez o maior tenha sido a criação da Petroecuador, em 1989, durante a presidência de Rodrigo Borja Cevallos (1988-1992). Borja pagou caro por essa ousadia, iniciada no triunvirato militar de 15 de fevereiro de 1972 a 10 de agosto de 1979, pois foi derrotado nas eleições seguintes.

Lá como por todos países americanos, a exceção de Cuba, Venezuela, Bolívia e Nicarágua, a comunicação de massa está entregue aos interesses estrangeiros, que ofuscam a realidade, falseiam a verdade, ludibriam a população e mantém a espoliação dos recursos e a escravidão mental. O Equador se preparou, ao rejeitar Borja, para ser a colônia das finanças apátridas, o estado de traficantes e de lavagem de dinheiro, como o que “preside” hoje o jovem, nascido em Miami, Daniel Noboa.

 

6ª Crônica — Os males que vêm se aprofundam, e duram muito mais.

 

Nos anos 1980, um tsunami abalou a civilização que se construía há bem uns dois séculos e meio: a civilização industrial, com os recursos das energias fósseis. Esta onda demolidora dos Estados Nacionais já se mostrara uma década antes, no que ela denominara “crises do petróleo” (1973,1979).

Ora, caros leitores, não era o petróleo, esta mistura de hidrocarbonetos, que estava em crise. Era a espoliação que algumas nações industrializadas faziam daquelas exportadoras de produtos primários, sem qualquer beneficiamento, que recebiam, em moeda constante, o mesmo preço pelo barril exportado que o de 1928 (Acordo Achnacarry), meio século antes.

Já se pode perceber, nesta expressão: crise do petróleo, que o inimigo era astuto, sabia o poder da mensagem e das palavras, trabalhava-as como arma de guerra, não como meio de comunicação.

Tudo começara pelos anos da II Grande Guerra, que aperfeiçoara a transmissão de mensagens até as grandes descobertas e invenções da década de 1940: o computador (Electronic Numerical Integrator And Computer, Eniac, 1946), a Teoria Matemática da Comunicação, desenvolvida pelos matemáticos Claude Shannon e Warren Weaver (1949), e a esquematização do fluxo informacional possibilitando interferir, isoladamente, nos três pontos chave: a emissão/recepção, a conversão para atravessar o canal, e o próprio canal.

Enquanto os industriais viam na informática apenas o meio de afastar o ser humano do processo produtivo, pela automação, pela robotização, os financistas, que davam as cartas até o século XIX, percebiam a força das mensagens indo direto ao inconsciente das pessoas, influenciando suas percepções com as sutilezas verbais como exemplificado nas “crises do petróleo”, ou seja, a mistura de hidrogênio e carbono provocasse crise.

Na década de 1980, governos nacionais perdem seus papeis disciplinadores ao abolir os controles da circulação da moeda, ao desregularem as finanças das obrigações em seus próprios países. E, expandindo para todo mundo sob sua dominação as desregulações financeiras. Era o mundo dos paraísos fiscais que se abria. Da ordem de uma dezena, em 1980, passaram a quase uma centena em 20 anos.


PARAÍSOS FISCAIS E O MUNDO DAS FINANÇAS

Em 2019, a relação de 84 paraísos estava assim distribuída:

a) nos territórios da Commonwealth Britânica: 32, como a City (bairro autônomo de Londres), as Ilhas Cayman (Caribe) e Seychelles (África) e Ilhas do Canal da Mancha (Alderney, Guernsey, Jersey, e as menores Casquets, Crevichou, Houmets, Les Dirouilles, Ortac e Pierres de Lecq);

b) em territórios estadunidenses: dez, como Delaware, pequeno Estado no nordeste dos Estados Unidos da América (EUA), Porto Rico (Caribe) e Ilhas Marshall (Pacífico, Micronésia);

c) em territórios holandeses: quatro, os próprios Países Baixos, Aruba e Curaçao (Caribe);

d) territórios franceses: dois, na Polinésia Francesa (Pacífico Sul) e nas Ilhas Saint-Pierre et Miquelon (Atlântico Norte canadense);

e) em Estados formalmente independentes: 36, quais sejam:

e.1) no Oriente Médio: nove. 1) Bahrein; 2) Catar; 3) Emirados Árabes Unidos; 4) Iêmen; 5) Irã (ilha Queixome); 6) Jordânia; 7) Kuwait; 8) Líbano: e 9) Omã;

e.2) na Ásia e Oceania: nove. 1) Brunei; 2) Hong Kong; 3) Ilhas Fiji; 4) Ilhas Maldivas; 5) Ilhas Palau (Micronésia); 6) Malásia (Labuão); 7) Nauru (Micronésia); 8) República Kiribati (Pacífico); 9) Samoa.

e.3) na Europa: sete. 1) Andorra; 2) Liechtenstein: 3) Luxemburgo; 4) Mônaco; 5) Noruega; 6) San Marino; e 7) Suíça;

e.4) no Continente Americano: seis. 1) Costa Rica; 2) Comunidade Insular da Dominica: 3) Guiana; 4) Honduras; 5) Panamá; e 6) Uruguai;

e.5) na África: cinco. 1) Djibuti; 2) Essuatini (ex-Suazilândia); 3) Gâmbia; 4) Ilhas Maurício; e 5) Libéria.

Hoje esta relação é meramente exemplificativa, pois os paraísos fiscais se espalham por ilhas e porções continentais da Ásia, África e Américas, fugindo de tributações, lavando dinheiro de drogas, fazendo contrabandos de pessoas, e ilícitos diversos.

Boa parte, senão todo capital que controla as empresas, que controla os países e que comanda as sociedades, que impõe novos valores e condutas, está nos paraísos fiscais.

Vistos os locais do crime, vejamos os agentes. Genericamente eram denominados bancos, mas, desde o início do século 21, eles mesmos convencionaram se referenciar como “gestores de ativos”.

E quem são os gestores de ativos?

São empresas que desenvolvem o planejamento estratégico, a aquisição, manutenção, locação, alienação, extinção ou exclusão de todos os tipos de ativos. Nestes ativos, se encontram os físicos, como terrenos, instalações, máquinas, veículos e equipamentos, assim como os ativos intangíveis: a propriedade intelectual, invenções, descobertas e até mesmo dados dos clientes. Tudo que for possível atribuir algum valor monetário e exista um mercado para negociar, para comprar e vender, é ativo para estes gestores.

Ao final de 2022, as 500 maiores gestoras de ativos do mundo detinham centenas de bilhões de dólares estadunidenses (USD). Porém, existe a competição, sempre acirrada entre os próprios gestores, onde uns engolem total ou parcialmente outros, além das costumeiras transferências de rendas e de ativos públicos, dos Estados, para os gestores (dívidas e privatizações), que aumentam seus volumes de recursos e, consequentemente, de poder.

Os 20 maiores, com respectivos países sede, são: BlackRock, Vanguard, Fidelity, State Street Global, J.P. Morgan Chase e Goldman Sachs, todos os seis com sede nos EUA. Em sétimo se encontra o alemão Allianz. A partir do oitavo, ainda com predominância estadunidense, surgem gestores em outros países. Em oitavo, o Capital Group, dos EUA; em nono, Amundi da França, em décimo, UBS, da Suíça.

Provavelmente alguns gestores foram reconhecidos pelos seus bancos comerciais (J.P. Morgan Chase e UBS), pela seguradora (Allianz) ou alguma financeira. Mas é apenas um dos ramos de negócios. A principal função destes conglomerados é captar recursos, impor privatização de bens públicos e especular com toda sorte de ativos.

Os dez seguintes são: BNY Mellon (EUA), Legal & General Group (Reino Unido), Invesco (EUA), Franklin Templeton (EUA), Prudential Financial (EUA), T. Rowe Price Group (EUA), BNP Paribas (França), Northern Trust (EUA), Morgan Stanley Investment Management (EUA) e Natixis Investment (França), todos com mais de bilhão e meio de dólares estadunidenses.


PETRÓLEO E GESTORES DE ATIVOS

O petróleo (óleo e gás natural) é a fonte primária de energia que supre mais da metade da demanda mundial. E isso com toda campanha que se faz para o substituir, mesmo sem respaldo técnico-científico. E as finanças obviamente não deixam este ativo sem ter suas fortes participações acionárias, a fim de influenciar suas atuações.

As três maiores empresas de petróleo são estatais: uma da Arábia Saudita (Saudi Arabian Oil) e duas da China (China Petroleum & Chemical e Petrochina). Deste modo a participação dos gestores tem início com a quarta maior petroleira, a Exxon Mobil, estadunidense.

Examinemos as participações dos gestores de ativos nas empresas de petróleo, conforme as informações da CNN Business.

Nem sempre estes gestores são majoritários, na Total Energies, francesa, a associação dos empregados tem participação acionária de 7% do capital, assim como o Governo da Noruega, 67% na Equinor, e da Itália, 38% na ENI. Mas as participações diretas dos gestores de ativos nos Conselhos das petroleiras permitem influenciar as decisões e orientar as empresas a atuar conforme o interesse financeiro em detrimento de outros.

Exxon Mobil (EUA): Vanguard, State Street Global (SSgA), BlackRock, Fidelity, Geode, Norges Bank, Northern Trust, T. Rowe Price, JPMorgan, e Dimensional.

Shell PLC (Reino Unido - RU): Dimensional, Fisher, Fidelity, Eagle Capital, Arrowstreet, Norges Bank, Wellington, Hotchkis & Wiley, Orbis Investment, e Franklin Advisers.

Total Energies (França): Fisher Asset, T. Rowe Price, Wellington, Fidelity, Capital Research, Managed Account Advisors, Arrowstreet, Federated Investment, Columbia, e Wells Fargo.

Chevron (EUA): Vanguard, SSgA, Berkshire Hathaway, BlackRock, Geode, Charles Schwab, Northern Trust, Morgan Stanley, Capital Research, e Norges Bank.

BP PLC (RU): SSgA, Arrowstreet, Fisher, Acadian Asset, Dimensional, Wellington, Boston Partners, Citadel, T. Rowe Price, e Morgan Stanley.

Equinor (Noruega): Arrowstreet, Strategic Advisers, Earnest Partners, Fidelity, Wellington, FIAM, Todd Asset, Goldman Sachs, Parametric Portfolio, e Newton Investment.

ENI (Itália): Arrowstreet, Natixis, Morgan Stanley, Parametric Portfolio, Pacer Advisors, Goldman Sachs, Aperio Group, CI Investments, Managed Account Advisors, e Macquarie Investment.

Além das participações diretas, os gestores de ativos aplicam, na compra de ações de empresas, os recursos que captam de investidores no mercado de fundos, o que lhes dá ainda maior capacidade de influenciar decisões.

Nesta relação excluímos as empresas que não atuam em todos segmentos do negócio do petróleo: o upstream e o downstream. Assim, grande empresa, como a Marathon Petroleum, estadunidense, foi excluída por não atuar na exploração de petróleo (a busca por óleo e gás natural).

Qualquer segmento empresarial, nesta terceira década do século 21, apresentará composição acionária semelhante à das empresas de petróleo. Pelo alcance bélico e social de seus produtos, relacionaremos apenas a indústria farmacêutica, classificadas pelo volume de vendas, e as gestoras de ativos que participam do controle acionário. A fonte continua sendo a CNN Money.

Pfizer (EUA): Vanguard, BlackRock, SSgA, Wellington, Capital Research, Geode, Charles Schwab, Norges Bank, Massachusetts Financial, e  Northern Trust.

AbbVie (EUA): Vanguard, BlackRock, SSgA, Capital Research, JPMorgan, Geode, Charles Schwab, Northern Trust, e Norges Bank.

Johnson & Johnson (EUA): Vanguard, SSgA, BlackRock, Geode, State Farm, Capital Research, Northern Trust, Norges Bank, Morgan Stanley, e Wellington.

Merck (EUA): Vanguard, BlackRock, SSgA, Wellington, Geode, Fidelity, Charles Schwab, Northern Trust, T. Rowe Price, e Norges Bank.

Novartis (Suíça): Dodge & Cox, Primecap, Dimensional, Franklin Mutual, Loomis&Sayles, Wellington, Charles Schwab, Morgan Stanley,  Managed Account, e Parametric Portfolio.

Hoffmann-La Roche (Suíça): Dodge & Cox, Parnassus, Fisher, Loomis&Sayles, Principal Global, Mairs & Power, AllianceBernstein, Pacer Advisors, abrdn, Inc (antiga Standard Life Aberdeen), e Financial Gravity.

Bristol-Myers Squibb (EUA): Vanguard, BlackRock, SSgA, Capital Research, JPMorgan, Geode, Norges Bank, Fidelity, Northern Trust, e Columbia.

AstraZeneca (Reino Unido): UK Government Pension Fund, Vanguard, American Funds New Perspective, Goldman Sachs, American Funds EuroPacific Growth, American Balanced, e American Funds Income Fund of America.

Sanofi (França): Dodge & Cox, Fisher, Boston Partners, Fidelity, Strategic Advisers, Managed Account, Invesco, BlackRock, Parametric, e  Newton Investment.

GlaxoSmithKline (Reino Unido): Dodge & Cox, Fisher, JTC Plc,  Primecap, Fidelity, Arrowstreet, SSgA, T. Rowe Price, Strategic Advisers, e RBC Capital Markets.

Takeda (Japão): Nomura Asset,  Nikko Asset, Government Pension Fund – Global, Daiwa Asset, Vanguard, American Funds Capital World Growth, American Funds Income Fund of America, e iShares Tr. (iShare pertence à BlackRock e atua principalmente capitando pelo mundo para investir na Ásia - China, Hong Kong, Japão, Taiwan).

Novo Nordisk (Dinamarca): Jennison Associates, Renaissance Technologies, Fisher, Fayez Sarofim, Fidelity, Loomis&Sayles, T. Rowe Price, Folketrygdfondet, Polen, e Managed Account.


CONCLUSÕES

Ao longo das seis crônicas buscamos entender porque a América Latina não conseguiu se libertar do jugo colonial. Ora esta dominação se dava pela força das armas, pelo massacre que sofreram os primitivos habitantes das Américas. Ora pela dominação ideológica da religião imposta pelos europeus. Mas ao correr do tempo, forram os americanos do norte que se tornaram os senhores do espírito brasileiro e de toda América Espanhola.

O escritor mineiro Delcio Monteiro de Lima, em “Os Demônios Descem do Norte”, 1987, descreve a penetração da Igreja Adventista do Sétimo Dia, sediada em Washington, no Brasil e as consequências para nossa educação, saúde e negócios. A igreja católica foi perdendo força, até que os neopentecostais criam a bancada da bíblia e passam a dominar na política, nas finanças e nas camadas mais humildes da população.

O fator religioso foi fundamental para manter a colonização. E o neopentecostalismo ajustou-se ao neoliberalismo formando um poder dominante na sociedade brasileira. Mas só na brasileira?

Manuel Cofiño, cubano, vencedor do Prêmio “Casa de las Américas”, em 1971, escreve em “A Última Mulher e o Próximo Combate”: “Às vezes vejo estes campos como através das recordações. É como daquela vez, mas diferente. É que todos os dias falta mais gente. Nunca pensei que viessem tão poucos. Era por uma questão de consciência, por falta de um bom trabalho político. Ia voltar a insistir com ele mas dei-me conta que não percebia e falei-lhe de outra coisa”.

Falta a educação construtora da cidadania. Não a formadora de braços para o trabalho, mas a que desenvolve a sociedade como um todo, não só para encher os cofres dos capitalistas.

E tanto mais passa o tempo, mais se perde nesta guerra.

Livre da dominação espanhola a América Latina caiu na influência inglesa. Superada a inglesa, chegou a estadunidense, e, com a derrocada dos EUA, chegam as finanças em sua pujança, dominando o Reino Unido, os EUA e a Europa.

E as parcelas de poder local, não sentem capazes de enfrentar as forças alienígenas. Principalmente por ter medo do povo. Por que não se distribui armas ao povo para manter as revoluções: brasileira, mexicana, argentina? E por que causa tanto medo a estas mesmas vendidas elites a revolução cubana? Porque Fidel discursava diante de multidão armada, sem qualquer receio, pois ele traduzia o pensamento e a vontade de todos que ali se reuniam.

Como reflete o personagem de Manuel Cofiño: “falta um bom trabalho político”.

 

Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.

 

Publicado originariamente no PÁTRIA LATINA.