Domingo, 25 de junho de 2023
Quando o presidente Joe Biden diz que os EUA nunca denunciaram nenhuma obrigação de dívida, é uma mentira para convencer de que não há alternativa a um acordo bipartidário ruim
Teto da dívida pública US: o repúdio das dívidas pelo presidente Franklin Roosevelt votado ao silêncio
28 de Maio por Eric Toussaint
Desempregados fazem fila à porta de uma cozinha popular aberta em Chicago por Al Capone durante a depressão, 1931- Unemployed men queued outside a depression soup kitchen opened in Chicago by Al Capone, 1931, Wikimedia Commons, https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Unemployed_men_queued_outside_a_depression_soup_kitchen_opened_in_Chicago_by_Al_Capone,_02-1931_-_NARA_-_541927.jpg
Quem aprendeu na escola que nos anos 1930 o governo americano simplesmente cancelou uma provisão central de contratos de dívida envolvendo uma quantidade fenomenal de dinheiro? Em que livro de história isso é analisado? A narrativa histórica é moldada pelo pensamento dominante de que governos como o dos EUA devem respeitar a sacralidade dos contratos, especialmente em matéria de dívida e propriedade. Isto está longe de ser o caso. O repúdio da cláusula de ouro nos contratos de dívida em nome da ordem pública, do interesse geral e da necessidade é um episódio importante na história «contemporânea». Um episódio que tem sido negligenciado, inclusive nos Estados Unidos. O repúdio unilateral de todos ou parte dos contratos de dívida, como vários governos têm feito nos últimos dois séculos, é altamente atual à medida que mais e mais países se aproximam de mais uma grande crise de dívida.
- Uma retrospectiva sobre o início da presidência de F. D. Roosevelt
- Para remediar a crise econômica e social, medidas autoritárias em uma escala nunca antes vista (...)
- Outros países capitalistas suprimiram a convertibilidade das suas moedas em ouro e suspenderam (...)
- Conclusão sobre a anulação da cláusula do ouro nos contratos de dívida
- Conclusão para além do âmbito dos EUA e do repúdio da cláusula do ouro
- O caso da Argentina nos anos 2010-2020
A 19 de abril de 1933, seis semanas após o início do seu mandato presidencial, o democrata Franklin Roosevelt anunciou que os EUA não mais reembolsariam suas dívidas em ouro
A 19 de abril de 1933, seis semanas após o início do seu mandato presidencial, o democrata Franklin Roosevelt anunciou que os EUA não mais reembolsariam suas dívidas em ouro, contentando-se em reembolsá-las em papel-moeda, em dólares na forma de notas bancárias. Essa decisão tem enorme importância, uma vez que vários contratos de empréstimo estipulavam que os credores podiam exigir o reembolso da dívida ou em ouro, ou em dólares calculados à taxa de 20 dólares por onça de ouro.
Os contratos de empréstimo que continham tal disposição (ou seja, uma cláusula de ouro) representavam uma soma colossal para a época: 120 mil milhões de dólares, dos quais 20 mil milhões de dívidas contraídas pelos poderes públicos e 100 mil milhões de dívidas contraídas pelo sector privado. Essa soma era largamente superior à riqueza mercantil produzida em um ano nos EUA (segundo Sebastian Edwards os contratos de dívida com uma cláusula em ouro representavam à época 180 % do PIB dos EUA [1]). Além da abolição da restituição em ouro, o governo proibiu a posse de ouro acima de um valor de US$ 100 e ordenou que todas as empresas e indivíduos residentes nos Estados Unidos vendessem seu ouro para o Federal Reserve. Em troca do ouro, o governo lhes dá notas bancárias.
- Por U.S. Government Printing Office — http://www.goldline.com/images/conf-order.pdf, domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=11370129
A decisão do presidente Roosevelt ganhou a aprovação do Congresso dos EUA, que em junho de 1933 aprovou por lei o abandono da cláusula de ouro nos instrumentos de dívida. A minoria de congressistas de seu partido e do partido republicano que se opôs a esta decisão disse alto e bom som que se tratava simplesmente de um repúdio a dívidas e contratos. Lewis Douglas, o diretor de orçamento, um dos conselheiros e assessores mais próximos do presidente Roosevelt, tentou se opor à decisão e disse numa reunião do gabinete de crise de Roosevelt que isso significava «o fim da civilização ocidental» (Edwards, p. 58). Sebastian Edwards, um economista neoliberal, que publicou um livro em 2018 inteiramente dedicado a esta decisão da administração Roosevelt, intitula o capítulo 6 de seu livro «A Transfer of Wealth to the Indebted Class», o que tem um significado muito claro (Edwards, p. 57).
A minoria de congressistas de seu partido e do partido republicano que se opôs a esta decisão disse alto e bom som que se tratava simplesmente de um repúdio a dívidas e contratos
Após o cancelamento da cláusula do ouro em todos os contratos de dívida, o presidente dos EUA anunciou uma desvalorização de 69 % do dólar em relação ao ouro (uma onça de ouro valeria agora 35 dólares [2], enquanto anteriormente valia 20,67 dólares). Isto significa que os EUA e os mutuários privados que «emitiram» ou assinaram títulos de dívida com uma cláusula de ouro não pagariam suas dívidas em ouro, passando a pagá-las em papel-moeda fortemente desvalorizado.
Em fevereiro de 1935 o Tribunal Supremo pronunciou-se, a pedido do governo, sobre a constitucionalidade da decisão de anular a cláusula então tomada pelo Congresso e pelo presidente.
Perante o Tribunal Supremo, um elemento fundamental da argumentação jurídica do governo era que, em 1933, o Congresso estava confrontado com a imperiosa «necessidade de agir» para acabar com a Depressão. Esta «ação» necessária, que incluía a desvalorização do dólar em relação ao ouro, só podia ser efetiva se a cláusula do ouro fosse eliminada dos contratos passados e futuros. Se as cláusulas relativas o ouro fossem mantidas, isso significava, segundo o governo, a falência à escala nacional. Por isso, ainda segundo o governo, o Congresso, confrontado com uma recessão profunda, o descalabro bancário e o pânico monetário, aprovou a resolução conjunta, anulando todas essas cláusulas. Segundo o governo, tratava-se de salvar o país.
Por seu turno, os juristas antagônicos à anulação da cláusula do ouro afirmavam que esta era equivalente a uma expropriação sem indemnização (Edwards p. 152).
Perante estas duas posições, os juristas favoráveis à anulação da cláusula do ouro afirmaram que os detentores dos títulos de dívida tinham de assumir os riscos que tinham tomado ao comprarem os títulos (Edwards, p. 151). Os advogados da administração Roosevelt argumentaram que a cláusula em questão era «contrária à ordem pública», termo legal que implica que certas ações, regulamentos ou contratos provocam prejuízo ao público e aos cidadãos em geral. Segundo o governo, a cláusula do ouro era «incompatível com o nosso atual sistema monetário» [3] (Edwards, p. 140).
Finalmente, com 8 votos a favor e um contra, o Supremo Tribunal declarou que a anulação da cláusula do ouro era contrária à Constituição! Mas por 5 votos contra 4, considerou que isso não implicava prejuízo. Em consequência, o repúdio da cláusula do ouro, com efeitos retroativos a todos os títulos da dívida, foi confirmado.