Segunda, 26 de novembro de 2012
Por Ivan de
Carvalho
Quando a Primavera Árabe varreu
o regime ditatorial da Tunísia e já dava sinais de que se imporia no Egito
controlado pela ditadura de Hosni Mubarack, escrevi sobre o assunto,
ressaltando (talvez em outras palavras) ser estimulante o caráter democrático
do movimento, mas alertando que a mudança então em curso envolvia riscos muito
grandes e poderia ter consequências sombrias.
Essas coisas foram ditas antes
que a Primavera Árabe falhasse no Bahrein, se impusesse na Líbia do tenebroso
Khadaffi e desencadeasse uma guerra civil na Síria do não menos tenebroso
Bashar al-Assad. Mas esses desdobramentos em nada mudam a avaliação feita
quando o fenômeno da Primavera Árabe atingia em cheio o regime de Mubarack.
Essa
avaliação um pouco contra o sentimento mais ou menos geral de euforia que o
movimento, de índole libertária e democrática, produziu, tinha seus
fundamentos, à época expostos neste espaço. É que naquela região a conjuntura
tem características bem específicas.
Há,
em países árabes e até em países muçulmanos não árabes, dois fatores básicos
que não se encontram em outros lugares, como a América latina e a Europa
oriental quando do colapso soviético. A utilização do Islamismo por vertentes
radicais que o instrumentalizam ou insistem em implantar teocracias e a
profunda fixação no perigoso litígio com o Estado de Israel, que para alguns,
como o Irã – que nem de população árabe é – deve ser varrido do mapa, como
prega seu atual ditador, também tenebroso Ahmadinejad Rafsanjani.
A
Primavera Árabe parece estar, depois de vencer, morrendo no Egito – o maior,
mais populoso e geopoliticamente mais importante dos países árabes e que tem o
12º exército mais poderoso do mundo. A conquista mais espetacular do movimento.
Há
algum tempo, numa eleição com escore apertado – e precedida de manobras que
levantaram dúvidas, até decisão judicial às vésperas do pleito, sobre a
possibilidade do principal candidato adversário concorrer –, foi eleito
presidente Mohamed Mursi.
Ele é o líder da entidade
Irmandade Muçulmana. Vinha se fazendo passar por moderado e ainda tenta fazê-lo.
Na semana passada conduziu uma intermediação que levou à interrupção das
hostilidades militares entre Israel e o movimento terrorista Hamas (e o
movimento Jihad Islâmica), que controla a faixa de Gaza.
Então, aproveitou o momento de
elogios internacionais a seu desempenho, o que inibe críticas externas mais
severas, e editou decretos pelos quais assumiu superpoderes em seu país.
Demitiu o procurador geral Abdel Mahmoud (o correspondente, aqui, ao procurador
geral da República, Roberto Gurgel, que está sob fogo de petistas), decretou
que os decretos que editou não podem ser anulados pelo Judiciário, bem como os
que vier a editar. Tirou o poder (que lá existe) do Judiciário de dissolver o
Parlamento e decretou a revisão de todos os processos judiciais contra
integrantes do regime anterior. E, sonho de consumo de todo mau governante,
concedeu a si mesmo imunidade em relação a investigações judiciais. O Conselho
Supremo Judicial do Egito (o STF de lá) considerou os decretos do presidente
Mursi “um ataque sem precedentes” à independência do Judiciário.
Ataque à democracia também,
claro. E à Primavera Árabe. A Irmandade Muçulmana, clandestina sob Mubarack,
teve uma atuação discreta na Primavera Árabe e só cresceu de importância após a
queda do regime. Os que fizeram a Primavera Árabe no Egito estão indo para as
ruas (novos protestos foram convocados para amanhã) defender o que conquistaram
e que, já entenderam, estão perdendo.
Mas a questão maior é: se o
Egito tornar-se algo como uma teocracia sob o comando da Irmandade Muçulmana,
respeitará seu tratado de paz com Israel ou ajudará a acender o estopim do
mundo?
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Este artigo foi publicado originariamente na
Tribuna da Bahia desta segunda.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.