Terça, 27 de novembro de 2012
Da Tribuna da Internet
Por Jacques Gruman
Meu querido companheiro de viagem,
Não sei se você se lembra. Corriam os anos 70 e eu andava revoltado
com alguns anúncios classificados, onde profissionais portugueses
altamente qualificados se ofereciam para trabalhar no Brasil. Fugiam das
colônias africanas, que se libertavam da tirania colonial. Tinham
recebido instrução técnica em Moçambique e Angola, sem pagar nada, e,
quando tiveram que retribuir, saltaram do barco. Rabisquei alguns
textos, mas você, sabiamente, me sugeriu uma trincheira diferente. Foi
aí que começamos a trabalhar juntos no jornal Movimento.
As reuniões de pauta eram num prédio decadente da Lapa, ela mesma um
bairro degradado. Escrevi alguns artigos, sempre sob pseudônimo. Uma
entrevista com o general Pery Bevilacqua, militar legalista na época do
Jango e que defendia a convocação de uma Assembleia Constituinte, foi
integralmente censurada. Tempos duros, tempos de resistência, tempos de
busca.
Depois deste início, nos esbarramos muitas vezes. Às vezes, na
correria, cheirando gás lacrimogêneo (experiência que não recomendo a
ninguém). Outras, com a alma lavada. A volta de Luiz Carlos Prestes do
exílio, num Galeão abarrotado, lambeu nossas feridas. Sem equipamento de
som, o Cavaleiro da Esperança discursou e suas palavras eram repetidas
pela multidão. A História estava ali. Mais tarde, aprendi que é preciso
ter muito cuidado com o excesso de reverência às personalidades fortes.
Em política, isso causa estragos graves. Faz a gente deixar de pensar.
O que nos unia era o inimigo comum: a ditadura. Surgiram palavras de
ordem unificadoras, que deram liga a um grande movimento de massas que
derrotou, finalmente, a caserna fascistizada. Quem acreditou na luta
armada, foi massacrado. A partir de 1985, com o restabelecimento de
alguns direitos, cada macaco procurou seu galho. Depois de mais de duas
décadas, as esquerdas podiam aparecer a céu aberto. Aí, meu velho, é
como diz o ditado: quem tem opção, tem aflição. O mercado ideológico
ampliou a oferta e nossos caminhos se afastaram.
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CONSTRUINDO O PT
Você foi ativo na construção do PT. Acreditou que, finalmente, o
Brasil estava construindo um grande partido socialista de massas, com
raízes na vanguarda da classe operária, nas teses da Teologia da
Libertação e na experiência dos exilados que voltavam. Os primeiros
documentos afirmavam essa vontade e o compromisso com a ultrapassagem do
capitalismo. Havia um entusiasmo legítimo com aquela novidade, mas eu
não gostava especialmente de um aspecto: a impressão que tentavam passar
de que a História começava naquele momento, como se nunca antes nesse
país tivesse havido partidos de esquerda, lutas sociais, organização das
massas. Botei o pé em outra estrada.
Teu partido chegou ao Planalto, mas aí os tempos e as propostas já
eram outros. O projeto socialista foi banido. Em seu lugar, uma
tentativa burocrático-administrativa de gerenciar o capitalismo, que
implicava em promiscuidade com a classe dominante e renúncia à
organização política das massas.
Ressurgiu das cinzas um mal-disfarçado culto à personalidade, de
triste memória para a esquerda. Adaptou-se ao modus operandi do capital,
quem sabe numa tentativa – a meu ver ingênua – de miná-lo por dentro.
Faz lembrar, com as devidas e importantes ressalvas, o Partido Comunista
Italiano. Maior PC do Ocidente por muitos anos, adernou tanto ao centro
que … desapareceu.
Meus ancestrais vieram de lugares remotos da Europa Oriental. Tinham
uma cultura rica em observações da vida, plasmadas com frequência em
ditados. Um deles, no idioma ídish, diz o seguinte: Iberguekumene tsores iz gut tsu dertseiln
(aflições superadas são boas de contar). Lembrar a luta contra a
ditadura não deixa de ser uma catarse. Continuamos lutando por um mundo
mais justo e fraterno, mas, à diferença dos idos de março, percebemos o
caminho de forma bem diferente. Resta-nos a memória comum e a certeza de
que estaremos, em algum momento, em trincheiras comuns. É como dizia o
Millôr Fernandes, num de seus célebres Hai-Kais: Fiquei bom da vista ! /
Depressa, / Um oculista !.
Abraço,
Jacques