Do Esquerda.Net
A duas semanas da abertura dos
Jogos Olímpicos, publicamos uma entrevista ao deputado estadual do PSOL
Marcelo Freixo, que critica o modelo de reurbanização da cidade.
Entrevista de Miguel Martins, para a Carta Capital.
Vista aérea da cidade do Rio de Janeiro, foto de Gustavo Girard/Flickr.
Deputado estadual e candidato à Câmara Municipal carioca, Marcelo Freixo, do PSOL, é um dos mais combativos quadros da oposição aos governos do PMDB no Rio de Janeiro. Para o parlamentar, o decreto de calamidade pública anunciado
pelo governador em exercício Francisco Dornelles, que resultou na
transferência de 2,9 mil milhões de reais do governo federal para
estancar a crise fiscal fluminense e garantir a realização das Olimpíadas,
é “completamente inconstitucional”. “A calamidade é definida pelo seu
caráter inesperado. Não há nada de imprevisível no processo de
endividamento do estado”.
Na entrevista abaixo, Freixo contraria o diagnóstico do Presidente da Câmara Eduardo Paes de que a situação fiscal do município é confortável, critica
o projeto de modernização da cidade e aponta para o alto número de
remoções de famílias por causa das obras. O deputado lembra ainda que a
revitalização da cidade tem sido conduzida por construtoras investigadas
na Operação Lava Jato. “O Rio tornou-se uma cidade-espetáculo gerida por empreiteiras. ”
Qual a sua opinião sobre o decreto de calamidade pública anunciado pelo governador Dornelles?
Primeiro, é completamente inconstitucional. Ele alega uma calamidade
que não existe. Por lei, a calamidade é definida por seu caráter
inesperado, uma tempestade, uma chuva, um alagamento. Não há nada de
imprevisível neste processo de endividamento do estado. Quando Sérgio
Cabral, do PMDB, assumiu o governo estadual em 2007, a dívida era de 50
mil milhões de reais. Hoje, é de mais de 110 mil milhões de reais. Há um
endividamento crescente.
O próprio metro, cuja conclusão é um dos motivos alegados para este decreto, foi orçamentado inicialmente em 5 mil milhões de reais e hoje, se contarmos com os juros da dívida, chega a 17 mil milhões de reais. E não está pronto. É o metro mais caro do mundo.
O próprio metro, cuja conclusão é um dos motivos alegados para este
decreto, foi orçamentado inicialmente em 5 mil milhões de reais e hoje,
se contarmos com os juros da dívida, chega a 17 mil milhões de reais. E
não está pronto. É o metro mais caro do mundo, sem contar o que ele
representa em termos de trajeto. É uma única linha reta, não faz curvas,
é apenas um prolongamento para a Barra da Tijuca. Diversas audiências
foram feitas, as associações de moradores e o Ministério Público foram
contra a escolha deste trajeto. A população da região queria outro
projeto, que daria um aspecto de rede ao metro e seria até mais barato.
Mas, para isso, o governo teria de abrir uma nova licitação. Por isso,
preferiram apenas prolongar a linha.
A queda na arrecadação e nos royalties explica a crise do Estado?
A crise do Rio é uma crise de endividamento, não é uma crise do
barril de petróleo. O estado contraiu na era de Sérgio Cabral diversos
empréstimos em dólares, pelo menos três. Hoje, o governo estadual paga
mais em dívida do que investe em Educação e Saúde. A queda nos royalties
é compensada por outras arrecadações, que não superam as perdas, mas
diminuem o impacto. Houve um aumento do Imposto sobre a Propriedade de
Veículos Automotores, por exemplo.
Além disso, há uma política de renúncia fiscal absolutamente
irresponsável. Segundo o Tribunal de Contas do Estado, entre 2008 e
2013, foram 138 mil milhões de reais em isenção para grandes empresas.
Isso paga cinco anos de salários de funcionários públicos. Nem sequer
estou a dizer que não deveria ter dado isenção, algumas empresas podem
levar desenvolvimento para algumas regiões e gerarem emprego. Mas não é o
que se verifica na grande maioria delas.
Há uma política de renúncia fiscal absolutamente irresponsável, segundo o Tribunal de Contas do Estado, entre 2008 e 2013, foram 138 mil milhões de reais em isenção para grandes empresas. A Land Rover teve mais de 600 milhões de reais de isenção, e gerou 400 empregos. A ThyssenKrupp CSA teve mais de 500 milhões de reais, gerou o desemprego de pescadores artesanais e tornou a Região Oeste uma das mais poluídas do Brasil, com diversos problemas de saúde pública.
A Land Rover teve mais de 600 milhões de reais de isenção, e gerou
400 empregos. A ThyssenKrupp CSA teve mais de 500 milhões de reais,
gerou o desemprego de pescadores artesanais e tornou a Região Oeste uma
das mais poluídas do Brasil, com diversos problemas de saúde pública. A
calamidade decretada por Dornelles não é acompanhada por ética,
transparência, de medidas que possam solucionar a crise fiscal. É
preciso abrir a caixa preta, rever as isenções e ampliar a arrecadação
do Estado.
Quais são as áreas mais críticas?
A Saúde tem um problema estrutural gravíssimo,
os equipamentos foram entregues para as Organizações Sociais. A
educação está numa greve de 90 dias, a Universidade Estadual do Rio de
Janeiro, esta sim, está em uma situação de calamidade. O governo diz que
não tem condição para renegociar o reajuste com os professores. A
Segurança Pública também vive uma situação dramática. Há uma falência
das Unidades de Polícia Pacificadora,
um acréscimo assustador de violência, e a perspectiva de
intranquilidade política e económica do Estado contribuem para piorar a
situação.
A Segurança Pública nos Jogos é uma preocupação?
O Rio está acostumado a sediar megaeventos e sempre transborda o
Exército, a Marinha, a Aeronáutica, tudo aparece. O grande problema é a
falta de clima para os Jogos. As hipóteses de termos protestos sociais
por causa das questões políticas e econômicas do Rio é maior do que em
qualquer outro evento. Tivemos muitos eventos aqui, mas nunca um quadro
social tão dramático.
É a primeira vez que um evento desses ocorre enquanto os funcionários públicos estaduais não estão a receber salários. A hipótese de um protesto sistemático é grande. Um evento como este traz visibilidade, tanto para o espetáculo, como para as denúncias. Os protestos não significam ser contra as Olimpíadas.
É a primeira vez que um evento desses ocorre enquanto os funcionários
públicos estaduais não estão a receber salários. A hipótese de um
protesto sistemático é grande. Um evento como este traz visibilidade,
tanto para o espetáculo, como para as denúncias. Os protestos não
significam ser contra as Olimpíadas. Esse discurso não cola.
Facto é que os policias reformados estão a ir para os quartéis comer
por não terem comida em casa. Facto é que os idosos não conseguem
comprar remédios por falta de dinheiro. Esse é o quadro. Querer que
essas pessoas aguardem o fim dos Jogos para protestar é um pouco
demais.
Eduardo Paes diz que a crise é do estado e a situação do município é confortável.
Ele sabe que isso não é verdade. Paes está num momento de muitas
críticas à sua gestão, com a queda da ciclovia Tim Maia, críticas ao seu
herdeiro Pedro Paulo, ao modelo de parcerias público-privadas que tanto
o consagrou. Há três anos que a arrecadação da Câmara Municipal tem
diminuído. O empréstimo de mil milhões de dólares contraído no Banco
Mundial em 2010 começa a ser cobrado em 2017. Após as Olimpíadas, haverá
cerca de 30 mil operários da construção civil desempregados, que não
serão reabsorvidos imediatamente.
O empréstimo de mil milhões de dólares contraído no Banco Mundial em 2010 começa a ser cobrado em 2017. Após as Olimpíadas, haverá cerca de 30 mil operários da construção civil desempregados, que não serão reabsorvidos imediatamente. A partir de 2017, sem os megaeventos, a cidade terá que seguir outra lógica.
A partir de 2017, sem os megaeventos, a cidade terá que seguir outra
lógica. O município arrecada muito mais tributando consumo do que
propriedade. A grande renda do município é Imposto Sobre Serviços (ISS),
três vezes maior do que a arrecadação do Imposto Predial e Territorial
Urbano (IPTU). Isolando o IPTU com o ISS, é praticamente 90% de toda a
arrecadação. Como o estado vive uma situação crítica, a Câmara Municipal
fica numa posição confortável, pois é sempre comparada ao governo
estadual. Mas isso não quer dizer que a situação seja tranquila.
Como avalia as obras de mobilidade urbana da Câmara Municipal?
Não vou dizer que não há o que se aproveitar das obras. A expansão do
Parque do Madureira é uma boa iniciativa. Há revitalizações de praças
que são importantes. Mas o BRT (Bus Rapid Transit, na sigla em inglês) é
uma insistência num modelo rodoviário completamente superado. Há uma
dependência histórica do PMDB no Rio aos empresários de linha de
autocarros, que continuam a ter controlo nas contas públicas.
O governo não cumpre a Lei Orgânica, que se tornou atualmente uma
peça de fantasia. Ela foi feita em 1990, à luz de uma outra cidade do
Rio de Janeiro, com ampla participação das associações de moradores. De
lá para cá, o Rio tornou-se uma cidade-espetáculo gerida por
empreiteiras. É um modelo completamente contrário ao da Lei Orgânica.
As Olimpíadas refletem esse modelo de cidade-espetáculo?
Uma série de calendários expressam isso. A relação distinta que a
prefeitura tem com a Zona Sul e a Zona Norte, a defesa de um modelo de
cidade extremamente desigual, onde o mercado dita muito mais do que as
políticas públicas o destino dos cidadãos. Há uma disputa de modelo de
cidade. Em 2017, o Rio será obrigado a passar por uma viragem conceitual
na sua relação com o conjunto da sociedade. Não haverá dinheiro para
tudo o que é necessário fazer e prioridades terão de ser redefinidas.
As mesmas empreiteiras da Lava Jato têm a gestão da cidade. Uma cidade que tem a sua gestão na mão desse capital não consegue conviver com a democracia, que atrapalha esse modelo. A queda da ciclovia Tim Maia não foi um acidente. Se ela fosse obrigada a seguir um parâmetro público de construção e fosse fiscalizada, não aconteceria o que ocorreu. É um reflexo da ideia da cidade.
O próprio Porto Maravilha é um símbolo muito forte dessa concepção
urbana. É uma região do tamanho de Copacabana e entregue a um consórcio,
que ganha poder de política pública. Iluminação, limpeza, tudo é
decidido pelas empreiteiras OAS, Carioca Engenharia e Odebrecht. A Odebrecht controla os combóios da Superlinha, a OAS controla o metro, a Andrade Gutierrez controla os ferries.
As mesmas empreiteiras da Lava Jato têm
a gestão da cidade. Uma cidade que tem a sua gestão na mão desse
capital não consegue conviver com a democracia, que atrapalha esse
modelo. Constrói-se uma ciclovia sem fiscalizar a empreiteira, que não
tem preocupação com o caráter público. A queda da ciclovia Tim Maia não
foi um acidente. Se ela fosse obrigada a seguir um parâmetro público de
construção e fosse fiscalizada, não aconteceria o que ocorreu. É um
reflexo da ideia da cidade.
Nesse cenário, movimentos de moradores protestam
contra o desalojamento de famílias que moravam no Centro por causa das
obras de revitalização da região.
A prefeitura Eduardo Paes é aquela que mais desalojou em toda a
história. É curioso, pois ele fala abertamente que se inspira em Pereira
Passos, um prefeito reconhecidamente higienizador, que verbalizou o fim
dos cortiços.
Ele removeu mais do que todos os prefeitos juntos, em cima dessa
lógica de cidade-balneário. Várias cidades do mundo tiveram uma crise
profunda depois das Olimpíadas, como Atlanta, nos Estados Unidos, e
Atenas, na Grécia. Mas no Rio, o caos chegou antes dos Jogos.
Há ainda a promessa da construção de dez mil moradias populares no Centro, mas o projeto ainda não foi para frente.
Há uma quantidade enorme de prédios públicos no Centro do Rio que
poderiam ser usados para parcerias com o objetivo de abrigar os
moradores da região. A região poderia ter um modelo de moradia mista,
como Paris tem feito. Mas o Rio não tem Vereador de Planeamento Urbano.
Não precisa: quem tem planeado a cidade é quem ganha dinheiro com ela.
Sobre o esforço alegado pela Câmara Municipal, de
valorizar a iniciativa privada nas obras olímpicas, temos o exemplo do
Maracanã, cuja concessão ainda hoje é criticada pelos grandes clubes do
Rio. É um exemplo que mostra a limitação do modelo de parcerias
público-privadas?
Participei recentemente num debate sobre o filme "Geraldinos", que
analisa o fim da bancada geral do Maracanã. O estádio foi construído na
década de 1950 à luz de um projeto de cidade. Era monumental, tinha
arquibancada e bancada geral, construído no centro, ao lado das
linhas de combóio.
O Maracanã novo é o reflexo deste modelo neoliberal pós-década de 1990. Deixou de ser um estádio para passar a ser um estúdio, passa a ser uma arena como qualquer outra, típica de uma cidade global, e perde sua singularidade.
O Maracanã novo é o reflexo deste modelo neoliberal pós-década de 1990. Deixou de ser um estádio para passar a ser um estúdio, passa a ser uma arena como
qualquer outra, típica de uma cidade global, e perde sua singularidade.
Está no documento de privatização do Maracanã a mudança do seu perfil
de público e aumentar o preço dos bilhetes. É mais uma remoção no Rio de
Janeiro: remove-se o povo do estádio e desloca-se o povo para o
pay-per-view dos cafés.
Podemos esperar algo parecido com as instalações olímpicas tocadas pela inciativa privada após os Jogos?
Temos o exemplo dos Jogos Pan-Americanos. Qual foi o legado?
O estádio do Engenhão e o centro aquático Maria Lenk. Onde estão eles?
São subaproveitados. E sem contar que isto está diretamente relacionado
com os subornos. O Sérgio Cabral está a ser investigado na Lava Jato por
causa da privatização do Maracanã. O Eduardo Cunha está na mira por
causa do Porto Maravilha. Há uma relação direta entre os subornos, o PMDB, as empreiteiras e o projeto de cidade da Olimpíada.
Não sei se nessas outras cidades sem espírito olímpico antes dos Jogos havia atraso de salários, greves de professores e médicos, ministério da Saúde e da Cultura ocupados, além de um golpe político em curso. Neste momento, é difícil prever o que vai acontecer.
Não há espírito olímpico no Rio?
Até agora, não. Acho que a chegada de uma enxurrada de turistas vai
mudar o ambiente da cidade, vai passar a ter uma atmosfera de festa.
Conversei muito com a jornalista Dorrit Harazim, que cobriu diversas
Olimpíadas. Ela diz-me que já viu diversas cidades não terem ambiente,
mas quando começam os Jogos, a atmosfera muda. Isso pode acontecer com o
Rio. O que não quer dizer que não teremos uma tensão presente dos
movimentos sociais. Não sei se nessas outras cidades sem espírito
olímpico antes dos Jogos havia atraso de salários, greves de professores
e médicos, ministério da Saúde e da Cultura ocupados, além de um golpe
político em curso. Neste momento, é difícil prever o que vai acontecer.
Entrevista publicada originalmente na Carta Capital a 3 de julho de 2016.