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(Millôr Fernandes)

terça-feira, 13 de março de 2018

Água é fonte de saúde e vida, não de lucro

Terça, 13 de março de 2018
A crise hídrica no Distrito Federal, no Brasil, e no mundo, precisa ser resolvida de forma consciente das dimensões complexas desse problema, o que nos evoca um chamamento às mulheres e homens, filhos(as) dessa cidade, ou por ela abraçados(as), nas nossas corresponsabilidades de participar do extraordinário momento da realização do 8º Fórum Mundial da Água, e marcarmos posições e proposições no  Fórum Alternativo Mundial da Água (que será realizado de 17 a 22 de março de 2018, em Brasília-DF).

Maria Fátima de Sousa[1]
Chico Sant'Anna[2]
Marivaldo Pereira[3]


Foto: Pedro França/Agência Senado.

   O século passado foi marcado pela onda de privatizações mundo a fora. O Brasil não ficou imune. Governo a governo, reina a tentação de entregar nas mãos das grandes corporações do mundo capitalista, um dos maiores bens essenciais à vida humana e planetária: a 
água. Sem ela danificamos o sistema vital, logo, insubstituível, pois nenhum ser vivo pode viver sem água, todos sabem. Ainda assim, aumenta o apetite das empresas transnacionais em quererem aumentar suas fortunas, comercializando-a, a despeito da destruição do meio ambiente.

Sabemos também que privatizar a água é um ato cruel, por vários motivos. Primeiro, é dever do Estado assegurar esse direito à vida, porque a água de beber, alimentar e higienizar, entre outros, deve ser gratuita e para todos, em todos os territórios. Segundo, porque o poder público governamental não deve transferir para a população a culpa da má gestão do emaranhado e complexo sistema estrutural na oferta, segura e sustentável da água. Oferta já escassa, que exige captação, conservação, tratamento e distribuição acessível e potável a todos, respeitando a natureza, e protegendo os ecossistemas. Terceiro, não menos importante, a água é fundamental à segurança de um saneamento básico adequado e com qualidade, contribuindo assim, para salvar vidas, com saúde digna.

Vejamos algumas informações essenciais ao nosso entendimento: no planeta Terra a água existe há 500 milhões de anos; 97,5% das águas dos mares e dos oceanos são salgadas e apenas 2,5% são doces. Mais de 2/3 das águas doces encontram-se nas calotas polares e geleiras e no cume das montanhas (68,9%); o restante (29,9%) são águas subterrâneas. Sobram 0,9% nos pântanos e 0,3% nos rios e lagos. Destes 0,3%, 70% se destinam à irrigação na agricultura, 20% à indústria e 10% destes 0,3% vão para uso humano e dessedentação dos animais.[4] (Rebouças apud Leonardo Boff[5]). 

Em 2015, já nos alertava Boff, que o planeta possui 1 bilhão e 360 milhões de km cúbicos de água. “Se tomarmos toda a água dos oceanos, lagos, rios, aquíferos e calotas polares e a distribuíssemos equitativamente sobre a superfície terrestre, a Terra ficaria mergulhada debaixo da água a três km de profundidade”.

A água se renova anualmente em 43 mil km cúbicos, enquanto o consumo total é estimado em 6 mil km cúbicos por ano. Portanto, não há falta de água. Mas, infelizmente se encontra mal distribuída. Vejamos: 60% dela está centralizada em apenas 9 países, enquanto 80 outros ficam em escassez. Pouco menos de um bilhão de pessoas consome 86% da água enquanto para 1,4 bilhões ela é insuficiente (em 2020 serão três bilhões) e para dois bilhões, não é tratada, o que gera 85% das doenças, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Assim, prevê-se que em 2032, cerca de 5 bilhões de pessoas serão afetadas por sua escassez.

O Brasil é a potência natural das águas, com 12% de toda água doce do planeta perfazendo 5,4 trilhões de metros cúbicos. Mas é desigualmente distribuída: 72% na região amazônica, 16% no Centro-Oeste, 8% no Sul e no Sudeste e 4% no Nordeste. Apesar da abundância, não sabemos usar a água, pois 37% da tratada são desperdiçados, o que daria para abastecer toda a França, a Bélgica, a Suíça e norte da Itália.

Em seu livro, Água: pacto azul (2009), a canadense Maude Barlow afirma que “a população global triplicou no século XX, mas o consumo da água aumentou sete vezes. Em 2050, quando teremos 3 bilhões de pessoas a mais, necessitaremos de 80% a mais de água somente para o uso humano; e não sabemos de onde ela virá” (p.17). Estamos todos, seres vivos de todas as espécies, condenados à sede global.

Por tudo isso, e mais, não compreendo porque insistem em tratar a água como fonte de lucro. Afinal, as nações e suas cidades capitais que entraram nessa onda de privatizarem suas empresas de saneamento, já fizeram o caminho de volta. Podemos citar na Europa, a cidade luz, Paris; Berlim, na Alemanha; Atlanta e Indianápolis, nos Estados Unidos; e até nosso vizinho Buenos Aires, na Argentina. Junto a essas, quase 200 cidades se arrependeram desse ato desumano, pouco solidário de aumentar o preço no acesso a água, sobretudo para os povos mais pobres. Fica a pergunta, por que tanto teimam em oferecer ao mercado especulativo as nuvens, os mares, os rios, as cachoeiras, os lagos, os pântanos, sabendo que sem eles, todos morreremos? Afinal, os mananciais são bens de saúde pública e do cuidado integral ao urbanismo. Melhor, ao direito à cidade saudável.

Esses valores, humanitário e societário, os diversos governos do Distrito Federal, não compreenderam até hoje. Haja vista a grave crise da água em Brasília, que se aprofundará nos próximos anos, se as providências não forem delegadas ao “divino”. Quem de nós não foi privado dos cortes de água? Mais de 85% dos moradores dessa cidade, ou seja, 2,1 milhões de pessoas foram afetadas pelo racionamento; suas torneiras ficaram em silêncio. Nenhum pingo d’água. E é bem verdade que o governo Rollemberg, ao cobrar 20% de taxa extra na conta da água, outra vez pega os mais pobres, tirando deles o que já não possui.

Atribuir à população o “uso irracional” da água, prorrogar a situação de emergência, ao invés de pensar alternativas sistêmicas à situação crítica, não só de sua escassez, mas de outros tantos graves problemas dos ecossistemas do cerrado não é o melhor caminho. Somente com um Planejamento Urbano, Integrado e Sustentável, e com a presença real da população, poderemos assegurar um ciclo virtuoso na promoção da justiça ambiental e do direito a viver na capital da República, recolocando-a em novos e outros trilhos. 

A crise hídrica no Distrito Federal, no Brasil, e no mundo, precisa ser resolvida de forma consciente das dimensões complexas desse problema, o que nos evoca um chamamento às mulheres e homens, filhos(as) dessa cidade, ou por ela abraçados(as), nas nossas corresponsabilidades de participar do extraordinário momento da realização do 8º Fórum Mundial da Água, e marcarmos posições e proposições no  Fórum Alternativo Mundial da Água (que será realizado de 17 a 22 de março de 2018, em Brasília-DF).

Precisamos nos unir aos nossos irmãos e irmãs do mundo na incansável peleja de encontrarmos outras formas em torno de ‘soluções para a água baseadas na natureza’, e na preservação de suas fontes como essenciais à saúde e à vida, e não ao adoecimento de governos inconsequentes, que colocam junto de si empresas multinacionais, cujos olhares se voltam apenas aos lucros desenfreados, sem medidas em seus egoísmos do poder econômico, financeiro, agravando assim o descarrilamento no atendimento das reais necessidades de direitos da população.


[1] Doutora honoris causa pela Universidade Federal da Paraíba. Professora Associada do Departamento de Saúde Coletiva, da Universidade de Brasília, com estágio pós doutoral na Université du Québec à Montréal. (UQAM) E-mail: fatimasousa@unb.br
[2] Jornalista.
[3] Auditor Federal de Finanças e Controle e ex-secretário Executivo do Ministério da Justiça.
[4] Rebouças, A. Águas doces no Brasil. São Paulo: Escrituras, 2002.

[5] Leonardo Boff. A água no mundo e sua escassez no Brasil. 

https://leonardoboff.wordpress.com/2015/02/02/a-agua-no-mundo-e-sua-escassez-no-brasil/


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