Pedro Augusto Pinho*
DA ARROGÂNCIA OCIDENTAL
Num tempo em que o Sol ainda girava em torno da Terra, nos recorda, com a sutileza de sua linguagem, o boêmio nascido a 25 de novembro de 1845, em Póvoa de Varzim, mas não reconhecido pelos pais, José Maria de Eça de Queiroz, que estava destinado a ser referência na literatura de língua portuguesa para todo o sempre. E ele nos dá a descrição do primeiro amor surgido na Terra, que uniu Adão à Eva. Reproduzo parcialmente.
“A aurora despontou comunicando à terra alegre, à terra ainda sem andrajos, sem sepulturas, uma alegria superior. Adão acordou. E, oh maravilha! diante de Adão, e como dele despegado, estava outro Ser a ele semelhante, mas mais esbelto, suavemente coberto dum pelo mais sedoso, que o contemplava com largos olhos lustrosos e líquidos. Uma goma ruiva, dum ruivo tostado, rolava, em espessas ondas, até suas ancas arredondadas numa plenitude harmoniosa e fecunda. Dentre os braços peludinhos que cruzara surdiam, abundantes e gordos, os dois peitos da cor do medronho, com penugem crespa orlando o bico, que se enristava, intumescido. E roçando, num roçar lento, num roçar muito doce, os joelhos pelados, todo aquele sedoso e tenro Ser se ofertava com submissão pasmada e lasciva. Era Eva... Eras tu, Mãe Venerável!” (Eça de Queiroz, “Adão e Eva no Paraíso”, in Obras Completas, volume II, Nova Aguilar, RJ, 1997).
E assim surgiam os europeus. Na Europa? Não, na África, na depressão de Afar, localizada na África Oriental, na junção entre o Grande Vale do Rifte a sudoeste, o mar Vermelho ao norte, e o golfo de Adem a leste. E só chegariam à Europa após passearem pelas florestas africanas por milhares de anos, deixarem lá proles e proles numerosas, que não fariam falta ao atravessarem desertos e mares e chegarem ao frio do continente europeu. E lá se imaginarem os donos de tudo, até dos deuses.
No entanto, nas lutas contra seus semelhantes e outros seres, nas batalhas contra o vento, a chuva, a seca, rios, montanhas e mares, tornaram-se belicosos e cruéis. E fizeram de suas jornadas uma ficção, ensinada como história do mundo para quem a quisesse ou fosse obrigado aceitar.
Milênios depois, com a evolução (?) da espécie, ganharam-se críticas e foram se desenvolvendo novas civilizações e novos estágios civilizatórios. Porém os europeus ainda repetiam a mesma história e demonizavam os estrangeiros, todos os imigrantes, e, em especial, os russos, que tinham a dupla cidadania euroasiática.
Assim não se é de estranhar que no século XXI, a direita política e filosófica domine a Europa, pois a esquerda se desfez, como as lágrimas de Eva ao ver Adão com outra macaca.
PROMOVENDO A IGNORÂNCIA
Alguma ocorrência bastante remota fez o Oriente se desenvolver de modo diferente do Ocidente. Pode-se especular, difícil será confirmar, apresentar a resposta insofismavelmente correta. Vamos atribuir esta diferença a mais permanente compreensão do que se atribui o próprio ser humano e da sua posição no mundo.
Nos milênios que antecederam à cronologia ocidental – antes e depois da presença de Jesus Cristo na Terra (a.C. e d.C.) – ocorreram quatro eventos marcantes, donde derivam todo pensamento humano, que, a partir do mais antigo aparecimento, foram:
a) aquele surgido no Oriente Médio, por volta de 1.800 a.C., denominado monoteísmo hebraico, que escraviza o homem à vontade de um ser indescritível, um “puro espírito”, que domina seu surgimento, sua vida e a hora de sua morte. É uma religião, um episódio no conhecimento mais abrangente do homem que se denomina “filosofia”, ou seja, a explicação das existências;
b) o que se seguiu, por volta dos 600 anos a.C., na China, foi o pensamento que se consolida no confucionismo, pois teve na pessoa do Mestre Kong (Kong Fu Zi) seu mais importante organizador e difusor com “Os Analectos”, livro que discorre sobre “o que se contenta em fazer coexistir com o vazio mais abstrato e o ente mais trivial sem qualquer mediação” (apud Giles Deleuze e Félix Guattari, “Qu’est-ce que la philosophie?”, Edition Minuit, Paris, 1991);
c) bem próximo de Confúcio e Lao Zi (571 a.C.-531 a.C.), apareceu na Índia, em 563 a.C., Sidarta Gautama, cognominado Buda, o Iluminado, que viveu até 483 a.C.. De algum modo pode-se tê-lo como um “Confúcio” mais restrito nas reflexões e nas aspirações, também, por isso, mais facilmente aceito e quase transformando o pensamento contemplativo e caridoso em religião;
d) depois veio o mundo grego, com os pré-socráticos e o próprio Sócrates (470 a.C.-399 a.C.) cujo pensamento se fez conhecido por dois de seus discípulos: Platão (427 a.C.-347 a.C.) e Xenofonte (430 a.C.-354 a.C.). Sócrates defendia que se deve dar mais ênfase à procura do que não se sabe, do que transmitir o que se julga saber, privilegiando a investigação permanente, a educação, no que se aproxima de Confúcio.
O que, na realidade, mais difere nestas fontes do saber humano é a crença no homem (Confúcio, Buda, Sócrates) ou ser este uma criação divina, do Deus que lhe traça a vida e o acolhe após a morte, o judaísmo e as religiões que dele surgiram: cristianismo, islamismo e protestantismo, este último que se ramifica em inúmeras variantes.
A filosofa francesa Anne Cheng, das mais notáveis conhecedoras do pensamento chinês, fora da China, ao se referir a Confúcio escreve: “não é nem um filósofo, na origem de um sistema de pensamento, nem o fundador de uma espiritualidade ou de uma religião. À primeira vista, seu pensamento parece antes terra-a-terra, seu ensinamento parece feito de banalidades, e ele próprio não estava longe de considerar sua própria vida um fracasso. A que se deve, pois, sua estatura excepcional? Sem dúvida ao fato de ele ter moldado o homem chinês durante mais de dois milênios, porém, mais ainda, ao fato de ele ter proposto pela primeira vez uma concepção ética do homem em sua integralidade e em sua universalidade (Anne Cheng, “História do pensamento chinês”, tradução do original francês (1997) por Gentil Avelino Titton para Editora Vozes, Petrópolis, 2008).
É verdadeiramente curioso e, de certo modo sem explicação, que os pensamentos surgidos do empoderamento humano são pacíficos, não incentivam a disputa entre os homens mas seu permanente aperfeiçoamento com aumento do saber. Enquanto o homem criado por Deus substituiu o conhecimento pela posse material dos bens, é belicoso, sua civilização vive em guerra contra aqueles que não são da mesma raça e/ou não professam o mesmo credo.
CONFRONTO CIVILIZACIONAL
Uma realidade precisa surgir nas comunicações domésticas, populares, acadêmicas e ganhar o entendimento, a compreensão mais generalizada: a história da espécie humana não é a história da civilização ocidental, aquela ditada pelo interesse europeu e de sua projeção sobre outros continentes.
E tem mais, o ser humano, o “homo sapiens”, a evolução do australopiteco, bípede, ou seja, caracterizado pelo bipedalismo, e por possuir o cérebro grande, na proporção do cérebro em relação ao tamanho do corpo, e na sua estrutura, como o córtex cerebral, que surgiu na África, onde hoje está a Etiópia, e que viveu pela África por cerca de 10 mil anos, antes de sair para habitar todo resto do planeta Terra.
No entanto, a compreensão eurocêntrica graças ao domínio da Europa no poder dos países em todos os continentes – recordar a belicosidade da fé teísta – colocou os idiomas europeus como idiomas de grande parte do mundo, facilitando assim a doutrinação, a sujeição ao interesse político dominador da Europa.
No milhar de idiomas falados no mundo, poucos vão além de suas fronteiras regionais. As línguas europeias de modo geral atravessam diversas fronteiras, penetram, a partir de expressões simples, no modo de pensar das pessoas. Não existe limite lexicográfico para a comunicação europeia, ela se impõe pela força das armas, pelo dinheiro e, ao fim, pela maneira de pensar, pelos valores que exporta.
Assim que o mundo foi sendo dividido; assim também o esforço de todos fluía para riqueza de poucos, assim se criaram os senhores e os escravos. E, dentro do mesmo conjunto humano, pelo sexo, dividiram o emponderado mundo dos homens do submisso mundo das mulheres. Tudo enfim retrata a vitória do Ocidente Teísta e Belicista sobre o Oriente Ateu Pacífico e Humanista.
Muitos séculos se passaram nesta realidade, a ponto de se escreverem as Histórias, os Catecismos, as Ciências, como se esta fosse a norma inexorável, a própria condição humana. Vez por outra surgia um pensador ou um político que procurava resgatar as origens dos pensamentos, os sentimentos de igualdade, a paz e a colaboração entre os seres humanos. Mas estes eram considerados criminosos, inimigos da tranquilidade, e condenados à prisão quando não à própria morte. Livros foram queimados, escolas destruídas, tecnologias ocultas para que o poder ocidental teísta e belicoso não fosse destronado.
O século XX confrontou ideologias e políticas elaboradas nos séculos anteriores, principalmente nos pós-renascentistas europeus, que se beneficiaram da Rota da Seda chinesa, nos mais próximos eventos – nacionalismos asiáticos na Índia, na Indochina (atuais Vietnã, Laos e Camboja) e no Japão – e nas transformações no Continente Americano. E teve duas grandes guerras cujas ações e consequências se espalharam pelos continentes.
O século XX preparou o que temos agora, no século XXI: a queda do Ocidente e o crescimento do Oriente.
O atento leitor certamente já identificou que os tempos ficam menores na medida em que se aproximam das datas mais próximas, do mesmo modo que parecem nunca chegar ao fim nos períodos mais pretéritos. A resposta está nas tecnologias de transporte e da comunicação que estreitam cada vez o mundo. O que demorou séculos na “Rota da Seda”, leva meses na Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR) também designada “Nova Rota da Seda”, constituída em 2013, por Xi Jin Ping, com objetivos bastante semelhantes: estreitar o comércio e ampliar a aproximação entre pessoas, sociedades e culturas, como escreve o professor universitário doutor Otávio Luiz Pinto no livro “Rota da Seda” (Editora Contexto, SP, 2022).
Pesquisa do Instituto Australiano de Política Estratégica (ASPI) revela que a China lidera como potência em ciência e tecnologia em 37 setores entre os 44 considerados de mais elevado impacto, cobrindo os campos da defesa, espacial, da robótica, da energia, do meio ambiente, da biotecnologia, da inteligência artificial, da tecnologia quântica e outras áreas chave.
Mas não fica por aí. Com população de um bilhão e quatrocentos milhões de pessoas, a China não tem analfabeto com mais de 16 anos de idade, seu sistema de saúde atende toda população, há moradia, não existe população vivendo nas ruas nem nas estradas chinesa, e a mobilidade urbana é invejável, comparada com as mais avançadas das cidades ocidentais.
Realmente a China atingiu um novo patamar civilizatório. Enquanto os EUA apenas elevam as tarifas de importação. E o Brasil? Continuará submisso à Doutrina Monroe, às “verdades ocidentais”? Ou saberá construir sua civilização miscigenada, tropical, irmanada com a América Latina e nossos ancestrais africanos?
*Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.