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(Millôr Fernandes)

domingo, 11 de maio de 2025

‘Povo vivo, floresta em pé e comida no prato’: 5ª Feira da Reforma Agrária atrai 300 mil pessoas em SP para viver a diversidade da agroecologia

Domingo, 11 de maio de 2025

Ao final do evento, MST anunciou a realização da sexta edição da feira em 2026


Brasil de Fato
11.maio.2025 às 21h16
São Paulo (SP)

“O nosso balanço é muito positivo”, avalia Ceres Hadicch, da coordenação nacional do MST. “Entendemos que assim a gente vai consolidando essa cultura política também aqui na cidade de São Paulo, de realizar a Feira Nacional da Reforma Agrária, porque nesses dias a gente faz o esforço de trazer toda a diversidade, toda a intensidade, toda a potência, a pujança que a gente tem da reforma agrária nos nossos territórios no dia a dia para um dos maiores centros urbanos do mundo”, resume.

Ainda foram doadas 40 toneladas de alimentos e um acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) garante que tudo que sobrar será comprado e direcionado para a merenda das escolas públicas por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).

Ao final do evento, o MST anunciou a realização de uma nova edição da feira em 2026.

Produção diversa e nativa

A diversidade é uma das marcas do trabalho trazido para a feira por Claudinei Barbosa Medeiros, o Zeca, também membro da direção nacional do MST. Ele e seus colegas do Assentamento Indaiá vieram de Aquidauana, no Mato Grosso do Sul, para, nas palavras de Zeca, “mostrar o que de fato o Mato Grosso do Sul tem produzido nos assentamentos de reforma agrária, porque todo mundo acha que Mato Grosso do Sul só produz soja e boi”.

Ele conta que o assentamento já está há mais de um mês preparando a participação na feira, organizando a logística para movimentar militantes e 12 toneladas de alimentos do Mato Grosso do Sul até São Paulo.

Zeca destaca o trabalho de beneficiamento dos produtos feitos pelas comunidades de assentados. O mel é envasado em uma casa do mel, no Assentamento Rio Feio. A Associação 8 de Março trabalha com mel, mandioca, cachaça. A farinha de baru é feita por grupos organizados de mulheres no assentamento São Manuel. “Elas produzem desde a farinha, a paçoca do baru, bombom, trufa”, conta.

Feira contou com produtos da reforma agrária de todo o Brasil – Priscila Ramos/@cylabg

Baru é uma castanha nativa do Cerrado brasileiro, nem tão conhecida em outras regiões do país. Numa produção que inclui hortaliças, doces, pimenta, cachaça, mel e derivados de leite, Zeca destaca produtos típicos do bioma, como a castanha e a farinha de baru, e a farinha de jatobá.

“O que existe de Cerrado em pé é onde tem os assentamentos. Porque o agronegócio já destruiu tudo. Se você olhar, é isso, né? O que tem em pé hoje tá na mão dos assentados e tá na mão da das comunidades indígenas e quilombolas lá no estado”, afirma.

“Então trazer esse produto é muito importante porque nós mostramos mais uma vez que a reforma agrária dá certo. E nunca deixar de dizer que os produtos que estão sendo colocados aqui na mesa são fruto da luta pela terra que foi feita no latifúndio improdutivo.”

A fala de Zeca reforça outra face do trabalho do MST que é exaltada na feira: a militância pela preservação ambiental e recuperação de biomas. Luta que se manifesta de várias formas, do plano de plantar 10 milhões de árvores por ano ao trabalho de distribuição de sementes nativas para produtores.

Para Ceres Hadich, a questão do controle e e produção das sementes é outro “pilar fundamental” da atuação do movimento. “E também a gente avançar nessa incorporação cultural, que é a produção e o plantio de mudas de árvores e de cuidados com as sementes. Então, foram mais de 970 quilos de sementes comercializadas, 12 mil mudas entregues aqui, comercializadas e doadas também, para que as pessoas possam se juntar nessa grande frente aí, que é o cuidado com o meio ambiente”, explica.
Resgatar a floresta

Fred Santana é assentado do MST em Ariquemes, Rondônia. De lá, trouxe uma produção diversificada com 54 variedades diferentes de mercadorias. “E com a especialidade que é o cacau, né? Então tem vários derivados de cacau, vários produtos de diferentes tipos, chocolate de vários tipos. E aí a gente tem essa especificidade que todos os assentamentos produzem cacau, não é uma renda primária das famílias, mas todos os assentamentos produzem”, explica.

Uma característica desse cacau é seu modelo de produção: a agrofloresta. Fred conta que a renda principal da maioria das famílias gira em torno da pecuária, mercado mais importante no setor agrário de Rondônia. Essa realidade econômica geral acaba se impondo sobre os assentados, que conseguem vender sua produção e encontrar insumos em uma cadeia produtiva estruturada.

É aí que entra o cacau, um produto comum do bioma amazônico. “A cadeia do cacau é fundamental para o MST porque ela permite estruturar, porque ela dá a possibilidade de alterar a matriz produtiva que tem nos assentamentos”, explica.

Chocolate produzido por assentados em Ariquemes (RO) é alternativa de renda e restauração da Amazônia – Nicolau Soares/Brasil de Fato

Essa restauração passa também pela recuperação de áreas de pasto com árvores nativas, restaurando parte da floresta. “É criar uma outra matriz produtiva que é a partir do cacau da agrofloresta que possa regenerar o bioma amazônico a partir de uma cadeia produtiva que vai gerar renda para as famílias.”

Hoje, os assentamentos contam com pouca ou nenhuma estrutura para mecanizar a produção e industrializar o cacau. O chocolate é feito de forma totalmente artesanal, num processo que leva em torno de três dias. “O pessoal colhe o cacau, fermenta, seca o cacau, aí torra ele, descasca. Aí tem várias formas de seguir, né? Tem uns que é com cacau, açúcar e leite, outros cacau com banana, outros cacau com banana e leite, o cacau com amendoim.”

Nos corredores da feira, o produto chama a atenção pelo seu visual mais rústico e pela variedade: trufas, barras, em pó. Para Fred, esse sucesso ajuda a “potencializar” as ideias do movimento em torno dessa cadeia produtiva ao mostrar para as famílias o potencial do produto. “De fato é algo que que sai bem na feira, porque é um produto diferente. Esse chocolate artesanal ele é diferente do chocolate que tem no mercado, inclusive o sabor. Então, chega aqui, ele atrai muito as pessoas e aí isso demonstra para as famílias assentadas que há uma possibilidade de uma renda através do cacau”, completa.

Cultura para todos

Além de produção, a feira contou também com um grande espaço para a cultura. Todos os dias a feira contou com shows de artistas tão diversos quanto o evento, com nomes como Arnaldo Antunes, Xangai, Djonga, Marina Lima, Xangai e Fat Family. Ao todo, foram 357 artistas e 42 grupos passaram pela feira, compondo uma programação cultural diversa que ainda contou com uma mostra de cinema, seminários e oficinas variadas.

Público se divertiu com shows para todos os gostos – Júnior Lima/@xuniorl

A cultura também comparece na mesa, com a área da Culinária da Terra, que reuniu 23 cozinhas Para quisesse almoçar, tinha quiabada de Sergipe, entrevero de pinhão de Santa Catarina, arroz de cuxá do Maranhão, maniçoba do Pará, tambaqui ao leite de castanha de Roraima e muito mais, somando 173 pratos diferentes mostrando a imensa diversidade de ingredientes e preparos que compõem a cultura gastronômica brasileira.

O cheiro doce e tostado chama a atenção para a barraca onde Ivanilda Alexandre da Silva e outras trabalhadoras do assentamento Fazenda Pedra Talhada, em Joaquim Gomes, Alagoas, estão vendendo tapiocas e pé de moleque – não o doce de amendoim, mas a versão alagoana de massa puba (derivada da mandioca fermentada), coco e manteiga, feita na chapa enrolada em folhas de bananeira.

“A gente trouxe os produtos que a gente trabalha para a cooperativa e entrega para a merenda da escola”, conta. “O povo diz assim ‘eu nunca comi isso, o que é isso’, mas quem compra hoje que come, amanhã volta”, brinca.

Da macaxeira, saem a massa puba, goma de tapioca e outros derivados que depois viram pé de moleque, tapiocas, beiju, broinhas. A barraca também tem doce de jaca, mamão, banana, tudo feito com a produção do assentamento.

“É tudo da terra. Toda semana a gente arranca a macaxeira, descasca, bota de molho, tira para fazer a goma. É muito trabalhoso, viu?”, comenta. Esse processo para fazer a massa puba exige perto de seis dias de trabalho, facilitado por algumas máquinas, que ajudam a ralar e prensar a mandioca.

“Porque fosse ralar que nem antigamente, na mão, é muito pesado, né?”, diz Ivanilda. Ela gostaria de ter outros equipamentos para ajudar, mas “são muito caros”.

Tecnologia camponesa

O acesso dos camponeses e camponesas a equipamentos e maquinários adequados para seu trabalho é uma preocupação do MST. O tema foi discutido no seminário “Agricultura Digital Familiar e Camponesa na cooperação Brasil-China”, que ocorreu na sexta-feira (9) durante a 5ª Feira Nacional da Reforma Agrária.

O evento faz parte de um acordo promovido pelo movimento que, desde 2024, trouxe para regiões do nordeste do Brasil levas de máquinas agrícolas fabricadas na China para a utilização em diversos cultivos da agricultura familiar. A iniciativa faz parte de um projeto de estudos das fábricas chinesas que realizam testes em parceria com universidades, governos estaduais e o MST.

O próximo passo seria a instalação de fábricas no Brasil como parte de um projeto de transferência de tecnologia.

“Também nessa feira a gente reafirmou o nosso compromisso em seguir avançando em tecnologia, em construção de possibilidades de ciência e tecnologia com a agroecologia fomentada pelos processos nossos de educação e de desenvolvimento do conhecimento”, afirma Ceres Hadich. “Então, a gente teve presente dez escolas nossas de diferentes biomas do Brasil, expondo sete máquinas que estão sendo adaptadas para a produção e agroecologia e pudemos lançar onze novos produtos da reforma agrária. Isso nos deixa muito animados em ver que a gente vai consolidando novas cadeias produtivas e fortalecendo aquelas que já existem”, comemora.

Tudo isso acontece no coração da maior metrópole do país, mostrando para a população de São Paulo a importância da reforma agrária. Ajuda também a ampliar o o impacto político da discussão: passaram pelo evento personalidades políticas como o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), o governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), e os ministros Gleisi Hoffmann (Relações Institucionais), Paulo Teixeira (Desenvolvimento Agrário), Luiz Marinho (Trabalho e Emprego), Marcia Lopes (Mulheres) e Marcio Macedo (Secretaria-Geral), além do presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Aloizio Mercadante, e de dezenas de parlamentares. Sem falar em nomes históricos da esquerda brasileira, como o ex-ministro José Dirceu e o ex-deputado federal José Genoino.

O vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) faz compras na feira – Priscila Ramos / @cylabg

Lucas Peres, militante do MST da Grande de São Paulo, regional fundada no final dos anos 90 pensando na conexão das questões entre campo e cidade. “Trabalhamos com as pessoas que de São Paulo, pessoas em situação de rua, companheiros e companheiras que eram agricultores expulsos, que queriam voltar para a terra”, conta.

A regional abrange três territórios, chamados de Comunas da Terra, em Cajamar, Franco da Rocha e na própria capital paulista, e uma Comuna Urbana, em Jandira. Ao todo, são 160 famílias entre acampados e assentados. Na feira, trouxeram parte da produção local de hortaliças, legumes e frutas, adequada aos pequenos lotes que têm disponíveis no contexto urbano. “Além de um ou outro produto beneficiado, como a tapioca orgânica, os licores, o pão integral, além de uma cachacinha também, coisa que a gente gosta”, brinca. “Também tem bastante mel, principalmente em Franco da Rocha, e própolis.”

Essa produção é escoada por meio da entrega de cestas para grupos de consumo organizados, no que Lucas chama de “consumo militante”, além de distribuição apra movimentos, ocupações e quebradas de várias regiões da grande São Paulo.

A ideia, explica Lucas, é trabalhar essa “ponte campo-cidade” e “lutar por um outro modelo de cidade, que produza a vida”. Não só reproduz a morte e o capital, mas tem o tempo da vida, a recarga do aquífero, a produção de alimentos, a recuperação ambiental, alimentar as pessoas da cidade com produção perto. Os circuitos curtos, né? Então é essa proposta de uma cidade mais agroecológica, que possa se manter frente às mudanças climáticas”, explica. “Uma luta por um território periurbano que não é só produzir alimentos. É disputar o modelo de cidade mesmo”, finaliza.

Editado por: Rodrigo Chagaas