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segunda-feira, 12 de junho de 2023

Concentração de capital e os limites da saúde privada

Segunda, 12 de junho de 2023
Imagem: NPR

Economista da UFRJ traça um panorama detalhado da situação do setor suplementar no Brasil. Sua “crise” parece apontar que a saúde voltada ao lucro é uma lógica ineficiente. Também por isso, é preciso que o Estado deixe de financiá-la


OUTRASAÚDE
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Publicado no OUTRASAÚDE EM 06/06/2023

O setor privado de saúde passa por um momento peculiar. De um lado, a saúde suplementar fechou o ano de 2022 com um medíocre lucro de R$ 2,5 milhões, margem ínfima de 1 centavo para cada R$ 1.000 despendidos na prestação de serviços. De outro lado, grandes fusões e aquisições marcam cada vez mais o mercado, processo típico do capitalismo em sua fase globalizada, mas ainda recente neste setor no Brasil. Foram 73 transações do tipo apenas em 2021.

“Um dos aspectos desse processo de centralização são as combinações de negócios em atividades de saúde antes claramente separadas, funcionalmente distinguíveis. Quer dizer, atividade de empresas que se dedicam a diagnósticos, análises clínicas, exames de imagem, fora dos ambientes hospitalares assistenciais”, descreve Artur Monte Cardoso, economista e professor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ, em entrevista ao Outra Saúde. “Normalmente era um ramo separado das redes hospitalares ou das empresas de planos de saúde. Já há algum tempo vêm ocorrendo processos de verticalização, quando uma empresa controla uma cadeia mais longa de atividades que servem ao objetivo final de controlar a assistência à saúde dos seus clientes.”

Na entrevista, Cardoso descreve o processo descrito como de centralização de capitais, repetidor da lógica de compras e fusões de grandes empresas de uma mesma cadeia produtiva, que geram processos complementares de suas operações, numa racionalização de custos e potencialização de margens de lucro. O economista colaborou com uma edição especial dos Cadernos de Saúde Pública da Fiocruz que tratou exclusivamente sobre o tema.

Na longa conversa com o Outra Saúde, ele explica o próprio processo histórico das grandes operadoras de serviços de saúde, que deixaram de ser empresas familiares para corporações com alto nível de profissionalização e os mais contemporâneos padrões de gestão — o que inclui a financeirização. Dessa forma, trata como natural que o resultado final do balanço da saúde suplementar de 2022 só tenha se salvado em razão dos bilionários ganhos em aplicações financeiras, conforme publicado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar.

“É verdade que outros componentes podem ajudar nesse resultado de 2022 e precisam ser melhor estudados”, reflete ele. “Precisamos saber o quanto cresceu o consumo de serviços dos clientes do plano de saúde, comparar com outros anos e saber se os clientes estão consumindo realmente muito mais serviços do que antes”. A inflação também teve um peso importante, em especial nos suprimentos de saúde: “houve ampliações de preço relevantes que podem ter impactado negativa e momentaneamente na conjuntura das empresas de planos de saúde”, explica.

Apesar das circunstâncias, Cardoso lembra do essencial: “o setor de planos de saúde durante muitos anos acusa uma crise, mas ela nunca aparece como uma crise terminal, uma crise estrutural. Essas empresas estão sempre crescendo e ampliando seus negócios”.

De toda forma, os últimos meses têm marcado importantes conflitos entre as seguradoras de saúde e seus próprios usuários. A batalha do rol taxativo foi um episódio marcante, com vitória das famílias que se mobilizaram pela garantia de que tratamentos em saúde não podem ficar restritos a um escopo previamente limitado. Agora, aparecem cada vez mais denúncias sobre cancelamento unilateral de planos de saúde em tratamentos caros, como câncer e terapias de autismo. Sinais que precisam ser lidos.

“A lógica do lucro tende a conflitar na medida em que ou inviabiliza a assistência integral ou torna impossível ampliar de maneira significativa o mercado das empresas, isto é, o número de clientes, sem reduzir a abrangência dos serviços aos quais as pessoas têm direito”, explica Cardoso, que enxerga que a estagnação de 25% da população brasileira com planos de saúde desde os anos 2000 pode significar que o setor bateu no teto. “O que parece ser visível é que a sustentação de tal mercado é um mecanismo de concentração de renda das maiores empresas, dos principais estados da federação em termos econômicos, das maiores cidades, onde os salários são maiores e as empresas mais dinâmicas, e não parece ser um modelo generalizável”, sintetizou.

Em sua visão, estamos chegando ao fim das ilusões de uma pressuposta eficiência do setor privado, ao passo que o SUS, mesmo subfinanciado, aparece como o sistema que cumpre a ideia de direito à saúde em sua totalidade. Por tabela, outro mito deve ser superado: o de que aumentar o número de usuários de planos de saúde desonera o Estado e alivia o SUS.

“A política de financiamento para o SUS não pode ser unicamente a de mais recursos. Tem que garantir menos recursos ao setor privado. Só dessa maneira é possível equacionar a estruturação do Sistema Único de Saúde. E existem várias maneiras de fazer isso, há experiências internacionais das mais variadas. O caminho inicial é que o SUS seja o articulador do sistema de saúde, para que mesmo as empresas privadas estejam a seu serviço”, sugere Cardoso.

Leia a entrevista completa.

Você fez parte de um grupo de pesquisadores que publicou nos Cadernos de Saúde Pública uma edição especial sobre centralização de capital no setor de saúde. Como você descreve esse processo?

A centralização de capital é um processo que envolve um conjunto de empresas, controladas por um número cada vez menor de proprietários. É um fenômeno que já vem ocorrendo há umas duas décadas no Brasil. Não é uma novidade no capitalismo e não é uma novidade no capitalismo brasileiro. Mas ocorre no Brasil junto ao crescimento do setor privado, um conjunto muito grande de atividades e empresas: planos de saúde, redes hospitalares, redes de diagnóstico ou de serviços assistenciais terapêuticos, indústria farmacêutica e rede de farmácias e drogarias, até alguns outros setores que entraram no radar mais recentemente e dizem respeito à saúde, como as Organizações Sociais que atuam na gestão de unidades básicas ou mesmo as escolas profissionais de saúde, como as escolas médicas, que também estiveram na nossa pesquisa.