Sábado, 17 de setembro de
2011
Por Ivan de Carvalho

Em verdade, o Brasil vinha,
malcriado, empurrando a realidade com a barriga há semanas e, mais
ostensivamente, há vários dias, pois já se tornara óbvio que, depois de quatro
décadas de poder absoluto, o ditador Muammar Gaddafi – aquele que morreria pela
Líbia e por quem morreria o povo líbio, segundo suas próprias palavras – já não
controlava o governo, até porque governo seu não havia mais e sim, apenas,
bolsões furados de resistência aos rebeldes cada vez mais organizados em um
governo de fato.
Vários países mais
corajosos ou menos comprometidos ideologicamente que o nosso (não sei bem o que
na ideologia ou na religião de Gaddafi encantava parte da “esquerda” governista
brasileira, talvez fosse o simples autoritarismo, porque de marxista o regime
líbio em extinção não tinha nada, nem a fantasia, e de islâmico o governo
brasileiro nada tem) já haviam reconhecido formalmente o governo rebelde, o que
certamente muito apressou as dores do fim – as dores do povo líbio nesta fase
final do conflito armado que está para encerrar-se.
O governo brasileiro optou
pela atitude invertebrada. Aguardaria o pronunciamento, cujo resultado já era
previamente conhecido, da Assembléia Geral da ONU. O que aconteceu ontem – 114
países votaram pelo reconhecimento e consequentemente a admissão da delegação
do Conselho Nacional de Transição (rebelde) na ONU, com a exclusão da delegação
que representava o já inexistente governo de Gaddafi. Houve 17 votos contra e
15 abstenções. Em outro nível, 60 países já reconhecem o CNT como governo
legítimo da Líbia – o Brasil não está entre eles.
O Brasil tem alguns
interesses importantes, comerciais e industriais, na Líbia, incluindo
interesses da Petrobrás. Isso de ter ficado empurrando uma decisão com a
barriga, talvez na vã esperança de que Allah interviesse a favor do regime de
Gaddafi (mas Allah seguramente não gosta de ver seu povo sofrer) pode prejudicar
esses interesses. Pelo menos, pode ser que o novo governo também entenda de
empurrá-los com a barriga.
Abordando aspecto muito
mais sério e importante, no entanto, resta saber, com a queda de alguns
ditadores e uma supostamente esperada abertura das sociedades árabes, para onde
vão a Líbia, o Egito, talvez a Síria submetida há quatro décadas há um regime
tirânico. E se mudar a Síria em qualquer direção, possível é que isso repercuta
profundamente no Líbano, que esteve dominado por muito tempo e hoje ainda sofre
fortíssima influência síria.
No momento, é assustador o que acontece no Egito,
poderoso (12º Exército do mundo) vizinho de Israel, amigo que o estado judeu
parece estar a ponto de perder. Com a ditadura de 30 anos de Hosni Mubarack
(precedida pelo governo não menos forte de Anwar Sadat, assassinado após fazer
o tratado de paz com o governo israelense de Menachem Begin), o tratado se
mantinha. Com alguma democracia nunca vivenciada antes no Egito e um razoável grau
de liberdade, a população ficará exposta à manipulação de grupos radicais
fundamentalistas como a Irmandade Muçulmana, cujo alvo é o Estado de Israel.
Se na Síria, que já é inimiga de Israel – mas sob
controle de uma ditadura, que cuida de preservar-se a todo custo – vence um
movimento libertário e a população for levada a liberar o ódio a Israel (que a
ditadura já cuidou de instilar), então faltará somente a fraca monarquia
jordaniana cair ou render-se ao belicismo – abandonando o tratado de paz que
tem com Israel – para o estado-judeu ficar geograficamente sitiado. Sitiado,
mas com armas nucleares. E a Turquia, não árabe, mas muçulmana, que era um
aliado firme e importante de Israel, já entrou em rota de colisão, o que é
grave.
Então, a chamada Primavera Árabe passará a
merecer o nome de Verão Árabe, e valha-nos Deus, porque é ali no Oriente Médio
que as coisas esquentam e está o estopim do mundo.
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Este artigo foi publicado originalmente na Tribuna da Bahia desta sexta.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.