Sábado, 2 de julho de 2016
Do Correio da Cidadania
Por Otaviano Helene*
O objetivo deste texto é fazer uma contraposição à afirmação de que o
Estado não tem dinheiro e é por isso que a educação vai tão mal em São
Paulo. De fato, a educação básica paulista é muito ruim: os professores
são mal remunerados e sobrecarregados, as escolas são insuficientemente
equipadas e os alunos são tratados de forma indigna. A combinação desses
e de muitos outros problemas que conhecemos levam a um baixo desempenho
escolar dos estudantes e a altas taxas de abandono escolar antes da
conclusão do ensino médio.
Quanto ao ensino superior, o grande problema em São Paulo é a
privatização: apenas 7% das vagas de ingresso estão em instituições
públicas, sejam elas universidades, faculdades isoladas ou faculdades de
tecnologia. Essa pequena participação do setor público é inferior à
metade do que se observa nos demais estados e não encontra par em nenhum
país. Mas nada disso tem a ver com falta de possibilidades econômicas:
essas coisas são frutos de uma política deliberada. Os números falarão
por si mesmos.
Quanto custa uma universidade como a USP e qual o investimento por
estudante? Para responder a essas perguntas, vamos tomar o ano de 2014
como referência. A razão da escolha desse ano é que já há dados
consolidados das contas públicas, das estatísticas de matrículas da USP e
informações, ainda que preliminares, suficientemente precisa do PIB e
do PIB per capita estaduais. Quando necessário, os valores serão atualizados para meados de 2016.
Dissecando o orçamento
Em 2014, o orçamento total da USP foi de aproximadamente 5,5 bilhões
de reais, 4,4 deles originários do governo estadual e o restante de
receitas próprias. Entretanto, perto de um bilhão de reais corresponde a
pagamentos de pessoal inativo; portanto, tal valor deve ser atribuído à
previdência, jamais à educação, à Ciência & Tecnologia (C&T) ou
às extensão de serviços à sociedade. Assim, o gasto com ensino,
pesquisa e extensão na USP foi, em 2014, da ordem de 4,5 bilhões de
reais (1).
Outro aspecto importante a se considerar é que parte dos gastos com
os serviços públicos gera, imediatamente, rendas ao próprio ente
pagador. Uma dessas rendas corresponde ao IR recolhido sobre os salários
dos servidores públicos, que pertence ao estado, não indo ao governo
federal. Outra fonte de renda é a contribuição previdenciária dos
servidores estatutários (situação típica dos docentes, sendo que os
trabalhadores técnico-administrativos são contratados, na quase
totalidade, em regime de CLT), recolhida para o próprio estado.
Considerando as informações disponibilizadas pelo Conselho de
Reitores das Universidades Paulistas (Cruesp) e os valores dos salários
pagos com base nos sítios de transparência, é possível estimar em R$ 1,5
bilhão a receita gerada ao próprio governo estadual quando este
remunera os docentes e funcionários técnico-administrativos. Em outras
palavras, quando o valor R$ 4,5 bilhões é colocado na coluna de despesas
do governo estadual, 1,5 bilhão de reais é colocado na coluna de
receitas.
Caso a USP não existisse, não haveria aquele gasto de cerca de 4,5
bilhões de reais, mas também não teria essa receita de 1,5 bilhão.
Portanto, o custo efetivo da USP em 2014 foi da ordem de R$ 3 bilhões,
pouco mais do que a metade daqueles 5,5 bilhões que aparecem nos
orçamentos.
Ensino, pesquisa e extensão
A universidade faz ensino, pesquisa científica e tecnológica e
atividades de extensão. O custo da atividade de pesquisa está diluído de
muitas formas em uma universidade: equipamentos, prédios, pessoal,
organização de e participação em congressos, viagens de campo,
publicações etc. Entrar no detalhe de que parte das despesas de cada
área de conhecimento, instituto ou departamento corresponde à pesquisa
seria praticamente impossível. Assim, um padrão comumente adotado para
estimar o custo da pesquisa em uma universidade é considerar 82,7% dos
salários dos docentes com doutoramento e contratados em regime de
dedicação integral (2). Usando tal método e considerando os dados dos
anuários estatísticos da USP de 2014 e as informação salariais
disponibilizadas pelo Cruesp, é possível estimar em cerca de 30% os
gastos com pesquisa e em 70% os gastos com ensino e extensão. Portanto,
daqueles 3 bilhões de reais, cerca de 900 milhões correspondem à
pesquisa e 2,1 bi ao ensino e à extensão.
Assim como a pesquisa, as atividades de extensão estão diluídas em
toda a universidade e no dia a dia de seus trabalhadores. Essas
atividades correspondem à prestação de serviços diversos à sociedade,
manutenção de hospitais, museus, centros de exposição e rádios,
organização de seminários, palestras e cursos de extensão universitária,
produção e edição de livros e outros materiais, manutenção de sítios de
internet com conteúdo didático, paradidático ou de divulgação
científica, manutenção de centros de saúde e clínicas para atendimento
da população, assessoria (não remunerada) a órgãos públicos, colaboração
na elaboração de legislações, manutenção de bibliotecas, acervos
bibliográficos e centros de divulgação científica e cultural abertos à
toda a população etc.
Entretanto, diferentemente do que ocorre com a pesquisa, não parece
haver um padrão comumente adotado para estimar os custos das atividades
de extensão em uma universidade. Assim, com alguma arbitrariedade, vamos
estimar as atividades de extensão em 200 milhões de reais em 2014 (3).
Combinando essas informações, é possível estimar os gastos da USP em
2014 como sendo, em bilhões de reais, de 0,2 em extensão, 0,9 em
pesquisa e 1,9 em ensino, como aparecem na tabela 1. A atualização
monetária para abril de 2016, pelo INPC/IBGE, também aparece na mesma
tabela.
Tabela 1 - Investimentos em ensino, pesquisa e extensão na USP em
2014 e atualizado para abril de 2016 pelo INPC, em bilhões de reais. |
||||
|
Ensino |
Pesquisa |
Extensão |
Total |
2014 |
1,9 |
0,9 |
0,2 |
3,0 |
2016 |
2,2 |
1,1 |
0,2 |
3,5 |
A USP é cara?
Esses custos são muito altos? Para se ter uma ideia de quão pouco
significavam 3 bilhões de reais para a economia paulista em 2014,
notícias do final daquele ano apontavam que havia R$ 4,6 bilhões
“esquecidos” no programa Nota Fiscal Paulista – ou seja, as pessoas
preencheram formulários, pediram algumas notas fiscais e simplesmente
esqueceram de resgatar os créditos dentro do prazo máximo de 5 anos. Ou
seja, alguns poucos bilhões de reais é um valor que as pessoas sequer
notam na economia de um estado com mais do que 40 milhões de habitantes e
um PIB superior 1,5 trilhão de reais.
Apesar do fato descrito no parágrafo anterior ser suficiente para se
perceber quão irrelevante são alguns bilhões de reais em uma economia
como a do estado de São Paulo, uma forma mais ortodoxa de responder
àquela questão é comparar os valores com as receitas correntes do
governo estadual e o PIB do estado. Em 2014, as receitas correntes do
estado foram de 178 bilhões de reais e o PIB foi estimado em 1,6 trilhão
de reais. Assim, concluímos que o custo total da USP, de 3 bilhões de
reais, corresponde a cerca de 1,7% das receitas correntes do governo
estadual, sendo 1,1% destinado ao ensino em nível de graduação e
pós-graduação, 0,5% à pesquisa e 0,1% às atividades de extensão, como é
mostrado na tabela 2.
Tabela 2 - Investimentos em ensino, pesquisa e extensão na USP em
2014 como percentuais das receitas correntes do governo estadual e do
PIB paulista (por questões de arredondamento, a soma das partes pode
ser ligeiramente diferente dos totais indicados). |
||||
|
Ensino |
Pesquisa |
Extensão |
Total |
Em relação às receitas |
1,1% |
0,51% |
0,11% |
1,7% |
Em relação ao PIB |
0,12% |
0,06% |
0,01% |
0,18% |
Quando o termo de comparação é a produção econômica total do estado,
vemos quão irrisório é o custo de uma universidade: apenas 0,18% do PIB,
sendo que o ensino corresponde a cerca de 0,12%.
Quanto custa um aluno na USP?
A USP tinha, em 2014, cerca de 94 mil alunos (62% em nível de
graduação, 32% em nível de pós-graduação e 6% com matrículas não
definidas). A divisão entre o investimento em ensino da tabela 1 e esse
número de alunos indicaria um custo mensal médio pouco inferior a
R$ 1.700 por mês a valores de 2014 ou perto de R$ 2.000 a valores de
abril de 2016.
Para saber se esses valores são razoáveis, um padrão adequado de
comparação é a renda per capita do país. O custo típico do ensino
superior em um país, rico ou não, é da ordem da renda per capita nacional e aqueles valores estão cerca de 25% abaixo da renda per capita brasileira e, grosso modo,
correspondem a cerca da metade da renda per capita paulista. Portanto, e
como têm insistido as entidades representativas dos docentes da USP, da
Unesp e da Unicamp, os orçamentos das universidades públicas paulistas
precisariam ser significativamente aumentados.
Mas essa simples comparação do custo médio de um aluno na USP ainda
não conta toda a história. Cursos em áreas diferentes têm custos
diferentes por várias razões, particularmente pela exigência ou não de
laboratórios e do nível de complexidade deles. Assim, os cursos
superiores poderiam ser separados, para uma análise mais detalhada, em
três grupos: aqueles que têm laboratórios complexos, com equipamentos e
seres vivos (medicina seria um bom exemplo); aqueles cujos laboratórios
são de complexidade intermediária (engenharias, por exemplo); e aqueles
cujas atividades não exigem equipamentos e pessoal especializado em
grande proporção (como os cursos de humanidades, matemática, economia
etc.). Os custos relativos desses três tipos de cursos estão,
aproximadamente, na proporção 4:2:1 (4). Considerando que os estudantes
estão distribuídos da USP por esses três tipos de cursos nas proporções
de 15%, 35% e 50%, um cálculo mais detalhado levaria aos valores
indicados na tabela 3.
Tabela 3 - Investimento mensal médio para manter um estudante na
USP nos três grupos de cursos considerados; valores de abril de 2016. |
||
Áreas que não exigem laboratórios ou estes são relativamente simples |
Áreas intermediárias |
Áreas com altas cargas horárias e laboratórios complexos |
R$ 1.100 |
R$ 2.200 |
R$ 4.400 |
Dentro de cada um desses grupos há variações e estudantes de
graduação e de pós-graduação podem exigir investimentos diferentes.
Entretanto, os valores, embora aproximados, são suficientes para uma
conclusão qualitativa. Uma busca na internet mostra que esses valores
estão muito abaixo dos valores das mensalidades das instituições
privadas que oferecem os mesmos cursos e com a mesma qualidade da USP.
Em muitos casos, aqueles valores são inferiores à metade das
mensalidades cobradas nessas instituições.
Ainda que não fossem excluídas dos cálculos do custo da USP - e,
portanto, dos estudantes - o imposto de renda na fonte e as
contribuições previdenciárias, o custo estimado de um estudante no setor
público seria inferior ao do setor privado com igual qualidade.
Conclusão
Estimativas feitas com metodologias diferentes, como as indicadas na
nota 4, podem levar a resultados ligeiramente diferentes, mas as
conclusões qualitativas são as mesmas. Diferentemente do que se costuma
afirmar, o custo real da USP - o mesmo valendo para as demais
instituições públicas de ensino superior no Estado - é muito pequeno,
seja o termo de comparação a arrecadação estadual, o PIB ou o PIB per capita.
O abandono do ensino superior pelo setor público e a consequente
entrega ao setor privado nada tem a ver com dificuldades econômicas do
estado de São Paulo ou com problemas orçamentários. Como mostra a tabela
4, a privatização do ensino superior no estado de São Paulo é maior do
que nos demais estados, qualquer que seja o critério para medi-la,
apesar de este ser um dos estados com maior orçamento público estadual
por habitante. Privatizar é um projeto, não uma coisa inevitável.
Tabela 4 – Indicadores da privatização do ensino superior no estado
de São Paulo. Fonte: sinopses estatísticas do INEP/MEC e IBGE. |
|||
|
Habitantes por vaga de ingresso em instituição pública |
Concluintes do ensino médio por vaga de ingresso |
Porcentagem de vagas no ensino público superior |
São Paulo |
500 |
5,2 |
7% |
Demais estados |
370 |
3,2 |
17% |
Quanto à educação básica, a política do governo estadual se manifesta
na forma do subfinanciamento, da sub-remuneração dos trabalhadores e do
tratamento desrespeitoso dado aos estudantes e trabalhadores do setor.
Nesse nível educacional, a política de privatização ocorre de outra
forma: como a educação é tratada como uma mercadoria, cada um que compre
a que puder. Nas palavras do secretário de educação paulista, apenas
segurança e justiça deveriam ser função do setor público e “tudo o mais
deveria ser providenciado pelos particulares” (5).
O custo para manter um estudante na USP é inferior, e bem inferior,
ao custo de um estudante no mesmo curso e em uma instituição privada de
qualidade equivalente. Além disso, a USP, bem como muitas das
instituições públicas de ensino superior, oferecem, ainda que de forma
insuficiente, diversos serviços e recursos necessários para a
permanência dos estudantes, contribuindo para um melhor desempenho
destes e a redução da evasão. Sob este último aspecto, vale observar que
a evasão nas instituições públicas de ensino superior é muito menor do
que nas instituições privadas (6), fato que faz com que o custo de um
aluno formado seja ainda mais favorável no setor público quando
comparado com o setor privado.
Não pode haver dúvidas, portanto, que o ensino público superior em
uma universidade de qualidade é totalmente compatível com a economia do
estado e, comparativamente, muito melhor do que o ensino privado.
Finalmente, vale lembrar que os investimentos em educação, além de
promoverem o desenvolvimento cultural e social, têm altos retornos
econômicos, pagando-se em períodos que podem ser tão curtos quanto cinco
ou dez anos.
Notas:
1) Os valores correspondentes aos pagamentos de salários incluem o 13º salário e adicional de 1/3 nas férias.
2) Ver, por exemplo, a publicação da Fapesp Indicadores de Ciência, Tecnologia e Inovação em São Paulo 2010.
3) O valor arbitrado corresponde a cerca de um décimo das despesas
atribuídas ao ensino ou à metade dos orçamentos dos hospitais. Qualquer
outro valor que se queira adotar não irá alterar as conclusões
qualitativas que se pretende obter.
4) Em um antigo trabalho, publicado resumidamente na Folha de S. Paulo, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1308200309.htm e cujos detalhes e metodologia estão descritos aqui,
http://blogolitica.blogspot.com.br/2002/08/quanto-custa-uma-boa-universidade.html os custos por estudante foram estimados nas diferentes unidades da USP. Um revisão posterior da metodologia,
http://blogolitica.blogspot.com.br/2010/11/o-custo-do-aluno-na-universidade.html, confirmou sua validade bem como os valores obtidos.
5) Essa e outras opiniões do secretário de educação paulista aparecem
em um artigo de sua autoria divulgado no sítio da própria Secretaria de
Educação, http://www.educacao.sp.gov.br/noticias/a-sociedade-orfa, consultado em junho de 2016. Nesse artigo, ele discorda do que é previsto nas constituições federal e estadual.
6) A evasão no ensino público paulista é da ordem de 40%, enquanto no setor privado, é da ordem de 60%.
Leia também:
Otaviano Helene é professor no Instituto de Física da USP,
ex-presidente da Adusp e do Inep, autor do livro “Um diagnóstico da
Educação Brasileira e de seu financiamento”.
A publicação deste texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania