Segunda, 21 de novembro de 2016
Do STJ
Após meses de intenso trabalho investigativo, a polícia consegue
desvendar as atividades criminosas de uma perigosa quadrilha e
identifica os seus membros. O juiz decreta a prisão preventiva de todos
eles. Pouco tempo depois, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) concede
habeas corpus para que sejam postos em liberdade. A sociedade protesta.
Há algo errado nesse filme já visto tantas vezes, e o erro, muito
frequentemente, não vai estar nas pontas: nem na polícia (embora isso às
vezes ocorra), nem muito menos no lado da sociedade – cansada, com
justa razão, de conviver com a violência e a impunidade.
É no Judiciário, portanto, que o problema acontece. A velha ideia
popular de que “a polícia prende, a Justiça solta” bem poderia ser
substituída por uma outra questão: “Por que a Justiça prende e a Justiça
solta?” A resposta tem a ver com uma exigência da Constituição Federal,
estabelecida no artigo 5º, LXI, e com o controle da legalidade das decisões judiciais pelos tribunais.
Última medida
Num país onde vigora a presunção de inocência, a prisão antes do
julgamento é possível, mas excepcional. No caso da prisão preventiva,
cabe ao juiz que a decreta indicar os motivos específicos pelos quais
aquela pessoa, ao contrário dos outros réus, não pode continuar em
liberdade enquanto responde ao processo.
Conforme destaca o ministro Rogerio Schietti Cruz (leia a entrevista),
“é preciso dizer mais que o óbvio”, pois a prisão cautelar “é a última
medida”, à qual só se deve recorrer quando todas as outras se mostram
insuficientes.
Se não há indicação dos motivos, ou se eles não são válidos, a prisão
é ilegal. Em tais casos, a responsabilidade pela soltura de um preso
eventualmente perigoso não pode ser atribuída a quem, cumprindo o
comando constitucional, apenas reconhece essa situação.
Motivação específica
Quando a pessoa comete um crime grave, nem sempre haverá razão para
ser presa antes de julgada, ainda que possa receber pena longa, se ao
final do processo for condenada. A prisão cautelar não é a regra, mas
exceção, e tem requisitos específicos que precisam ser demonstrados para
que a supressão provisória da liberdade não se torne automática,
arbitrária e ilegal. Por exemplo, a ordem de prisão precisa mostrar que o
réu está destruindo provas ou coagindo testemunhas, que fugiu ou que
sua liberdade representa um risco de prática de novos crimes.
Em respeito ao princípio da excepcionalidade da cautela extrema,
decisões que suprimem a liberdade humana não podem ignorar as
particularidades do caso concreto, “sob pena de engendrar a decretação
automática de prisão preventiva contra todos os autores de crimes
graves, independentemente da singular apreciação de cada um deles”,
afirmou o ministro Schietti ao julgar o HC 299.666.
Isso porque, segundo ele, para justificar a prisão preventiva, não
basta invocar a gravidade abstrata do delito nem recorrer a afirmações
“vagas e descontextualizadas” de que a medida é necessária para garantir
a ordem pública ou econômica, a instrução criminal ou a aplicação da
lei penal.
Com base no mesmo entendimento, em setembro deste ano, a Sexta Turma
do STJ concedeu habeas corpus a sete pessoas presas em São Paulo sob
acusação de associação para o narcotráfico, garantindo-lhes o direito de
responder ao processo em liberdade (HC 363.540).
Argumento genérico
Ao analisar o pedido de um dos acusados naquele caso, os ministros
revogaram a decisão que decretou a prisão, já que deixou de indicar
motivos suficientes, relacionados à situação específica, que
justificassem a real necessidade de colocar o réu cautelarmente privado
de sua liberdade.
Em seu despacho, o juiz afirmou que havia indícios suficientes da
existência do crime de tráfico, mas, ao fundamentar a prisão, disse
apenas que ela era necessária “para assegurar a aplicação da lei penal,
bem como para garantir a ordem pública, dada a repulsa e os danos
sociais causados pelas drogas, notadamente pela facilidade de
aliciamento de adolescentes e crianças à referida prática delituosa,
seduzidas, muitas vezes, pelo rápido e vultoso retorno financeiro”.
Nenhuma palavra sobre a situação particular dos investigados, sobre o
que fizeram concretamente, nem sobre os fatos específicos apurados no
inquérito. Os argumentos apresentados na decisão judicial, de acordo com
o ministro Schietti, poderiam servir para fundamentar a prisão de
qualquer outra pessoa acusada de associação para o tráfico, em qualquer
outro processo, o que evidencia o caráter vago e genérico do decreto de
prisão.
População prisional
A despeito do controle do Judiciário sobre suas próprias decisões, os presídios estão abarrotados de presos sem julgamento.
No primeiro semestre de 2014, o número de presos no Brasil
ultrapassava a marca dos 600 mil – número consideravelmente superior às
376.669 vagas do sistema penitenciário, como aponta o último levantamento feito pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen).
Com a quarta maior população prisional e a quinta maior taxa de
ocupação dos estabelecimentos prisionais (161%) do mundo, o Brasil ainda
enfrenta uma agravante: 41% dos presos esperam julgamento, ou seja,
estão em prisão temporária ou preventiva. Isso representa, conforme o
novo relatório de informações penitenciárias (Infopen), a quarta maior
população de presos sem condenação.
E essa tendência de crescimento do número de presos que esperam
julgamento é mundial. Segundo relatório do Centro Internacional de
Estudos Prisionais (ICPS), de 2014, cerca de 3 milhões de pessoas no
mundo estão presas provisoriamente.
Medidas alternativas
Quando não estão presentes os requisitos autorizadores da prisão
preventiva, e sempre que ela não se mostre indispensável, o juiz deve se
valer de medidas alternativas para preservar o processo e a sociedade.
Em outubro deste ano, a Sexta Turma determinou a soltura de uma mulher
acusada de entrar com droga em presídio e aplicou medidas cautelares
diversas da prisão (RHC 75.589).
Segundo o relator do caso, ministro Nefi Cordeiro, o juiz apontou que
a indiciada, em depoimento à polícia, reconheceu ter tentado entrar com
droga no presídio. De acordo com o ministro, o juiz não mencionou nada
acerca da existência de eventual histórico delitivo, ou mesmo de outras
circunstâncias gravosas que pudessem justificar a segregação – o que, em
seu entendimento, é suficiente para a adoção de medidas cautelares
diversas da prisão.
Abandono de veículo
Em julgamento semelhante, de agosto passado, a Quinta Turma revogou o
decreto prisional de um homem acusado de roubo e substituiu a
segregação pelas medidas cautelares previstas no artigo 319,
incisos I e IV, do Código de Processo Penal – com a ressalva de que
nova prisão poderia ser decretada, desde que concretamente fundamentada (RHC 67.478).
Para o relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, a mera alegação
de abandono do veículo, após sua utilização em velocidade alta, não é
suficiente, por si só, para justificar a prisão cautelar, “em especial
porque tal menção consta somente da decisão que converteu a prisão em
flagrante em preventiva”.
Ele observou que as instâncias ordinárias fizeram apenas menção aos
termos da lei processual e uma análise teórica, com termos genéricos e
suposições acerca da necessidade da prisão preventiva, sem apontar dados
objetivos da suposta conduta delitiva.
“Em suma, os fundamentos lançados pelas instâncias ordinárias não são
idôneos para a manutenção da prisão preventiva decretada”, afirmou.
Desemprego
A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que toda prisão imposta
ou mantida antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória
deve vir sempre baseada em fundamentação concreta, ou seja, em elementos
vinculados à realidade e não em suposições ou conjecturas.
Em junho deste ano, a Sexta Turma revogou decisão que justificou a
prisão preventiva como necessária à garantia da ordem pública e da
aplicação da lei penal. Constava na decisão do juiz que, ficando solto, o
réu, “desempregado, poderá voltar a valer-se da prática de atos
delituosos, já que não tem meios lícitos para se manter, ou evadir-se do
distrito da culpa” (HC 355.470).
Para o relator, ministro Sebastião Reis Júnior, a prisão foi mantida
em segundo grau com base nas circunstâncias do crime e em juízos de
probabilidade acerca da periculosidade do agente. “Fez-se simples
referência à gravidade genérica do delito de roubo e, em razão de o
paciente estar desempregado, ao provável estímulo à reiteração
criminosa, fundamentos que se mostram insuficientes”, ressaltou.
Em decisão unânime, a turma concedeu o habeas corpus para assegurar ao acusado o direito de aguardar o julgamento em liberdade.
Tema frequente
Uma pesquisa
da Fundação Getúlio Vargas concluída em 2014, sob coordenação do
professor Thiago Bottino, revelou que a prisão cautelar era o tema
predominante nos pedidos de habeas corpus originados em quatro dos cinco
Tribunais de Justiça com maior volume de ações dessa natureza no STJ.
No caso do TJ paulista, campeão absoluto do ranking, a prisão cautelar aparecia como o segundo tema mais frequente.
Em
grande parte das impetrações, a alegação da defesa é a falta de
motivação válida, o que o tribunal é forçado a reconhecer sempre que não
encontra na ordem de prisão a necessária referência a fatos concretos e
específicos que justifiquem a medida extrema.
Afinal, como
resumiu com especial clareza o ministro aposentado do Supremo Tribunal
Federal Sepúlveda Pertence: “A melhor prova da ausência de motivação
válida de uma decisão judicial – que deve ser a demonstração da
adequação do dispositivo a um caso concreto e singular – é que ela sirva
a qualquer julgado, o que vale por dizer que não serve a nenhum” (HC 78.013).