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Para enfrentar a direita, é preciso lucidez doutrinária, coragem política e eficiência organizativa. O ponto de partida é a Frente Ampla
As frentes Brasil Popular
e a Povo sem Medo promoveram a resistência mais consequente ao golpe
As esquerdas e o pensamento progressista não podem ficar
atônitos, fitando os céus à espera de sinais de alento no momento em que sofre
aquela que pode ter sido sua mais profunda derrota em nossa curta e acidentada
história republicana. Impõe-se, isto sim, aprender com os revezes, se formos
capazes de interpretá-los.
Trata-se, o processo em curso, de verdadeira debacle não apenas
do ponto de vista eleitoral-aritmético (por certo aquele que mais
dói, embora não encerre toda a questão), tão festejado pela grande
mídia, mas principalmente pelos indicadores ideológicos, bactérias não isoladas
e que permanecerão desgastando o desgastado tecido político.
Com poucas e não significativas exceções, o eleitorado
brasileiro votou, nestas eleições, preponderantemente pela direita ou pela
alienação reacionária do antipoliticismo, que vai dar no mesmo. As esquerdas
perderam substância eleitoral graças a erros crassos e
reiterados, cuja responsabilidade a ninguém pode transferir. Perdeu o
apoio do centro político-eleitoral, que migrou para o conservadorismo e
para a direita, como gritam para ouvidos assustados os números das
eleições do dia 30 de outubro. Eles revelam uma derrota ao mesmo tempo
previsível e surpreendente em sua contundência.
Do esvaziamento eleitoral do PT nenhum outro grupamento do mesmo
campo logrou beneficiar-se. A maior decepção deve ter ficado com o PSOL,
anunciado em prosa e verso como seu beneficiário ao lado de outros candidatos
de menor torque. Espera-se que o partido compreenda o papel histórico que as
circunstâncias lhe ofereceram nessas eleições, aderindo à política de Frente.
O eleitorado independente e grande parte daquele que sempre
optou pela esquerda ou pelo pensamento progressista migraram para constituir o
maior ‘partido’ dessas eleições, a dramática e preocupante, embora claramente
compreensível, emergência do desânimo (abstenção), do desencanto (voto em
branco) e do protesto (voto nulo). Perfazem quase a metade do
eleitorado, e em grande número de casos alcançam votação superior àquela
dos prefeitos eleitos. Esse discurso precisa ser ouvido e entendido: a derrota
do PT foi acachapante, mas nenhum outro partido, exceto o ‘não-partido’,
credenciou-se para sucedê-lo.
Como toda e qualquer derrota eleitoral, essa não é
definitiva, como as vitórias tampouco o são (terá finalmente o lulismo
descoberto essa verdade acaciana?). Pode, contudo, perdurar se as esquerdas, a
começar pelo PT, que perde a hegemonia sem ter a quem passar o bastão. Os
petistas não tiverem a coragem e a humildade de proceder uma profunda e
transparente autocrítica, que deve ao País e ao nosso povo há muito tempo.
Uma autocrítica que se espera de igual forma e com igual desprendimento do
governo da presidente Dilma e do presidente Lula.
Não se trata de auto-flagelamento. A autocrítica é devida aos
trabalhadores, aos setores populares e, mais do que que nunca, à juventude. É
preciso passar a limpo o feito e o recusado, como as transformações estruturais
na sociedade, como a reforma politica, a reforma do Judiciário, a reforma
tributária, a reforma agrária e a democratização dos meios de comunicação de
massas. É preciso passar a limpo os últimos 13 anos de política de
centro-esquerda e o papel nela desempenhado pelos partidos e instituições
sindicais e populares.
As esquerdas têm muito a cobrar do Partido dos Trabalhadores,
mas nada ganham com a sua imolação. O PT precisa entender que está diante de
algo mais importante do que seu umbigo, de suas avenças e desavenças internas,
das tricas entre facções e tendências, da redução do mundo real a uma
disputa interna de um poder fátuo, que, se não foram a causa (e não
foram), foram porém um agente desestabilizador no governo e na vida partidária,
na vida política e institucional do País.
Por tudo isso, o pensamento progressista aguarda e cobra a
reorganização do PT. Espera que seu fundador e principal líder assuma o papel
que lhe cabe nessa contingência. O desafio que aguarda o partido, hoje, é
maior do que o de sua criação em 1980.
Entre as muitas causas explicadoras da tragédia de
hoje, para ser revisitada, destrinchada, entendida, há a crise de governança
representada principalmente pelo segundo governo Dilma – é preciso
assumi-la com coragem. Existe uma crise política de governo, uma enciclopédia
de erros cometidos em face das relações entre governo e sindicatos e movimentos
sociais. Há erros clamorosos na construção das alianças partidárias e eleição
de aliados. E o erro central da ilusão da conciliação de classe na qual o
lulismo ingressou, sem a companhia da classe dominante.
Conhecer e identificar esses erros é a conditio sine qua non para nossa recuperação, pois
ignorá-los é a certeza de sua repetição, aí então fatal. A esquerda precisa
revisitar o significado e as consequências da opção eleitoral e do pragmatismo
que não poderiam ser confundidos nem com eleição a qualquer preço nem com
governo de qualquer jeito.
O movimento social, quando não compreendido, gera surpresas,
quase sempre desagradáveis para os condutores políticos. Os que não tiveram
olhos para ver e instrumental teórico para compreender as jornadas de 2013
também não entenderam o claro discurso político representado pelas dificuldades
das eleições de 2014. Adicione-se o fato de, eleitos contra a promessa do
neoliberalismo conservador, havermos, no governo, tentado implantar a política
econômica do adversário – e que tomou livre curso com a consumação golpe. O que
se segue é história lamentável, conhecida e recente, que não carece de
relembrança.
Diante dos fatos objetivos, porém, as forças populares, com os
partidos e para além dos partidos, souberam reagir e em seu melhor
momento compreenderam que os desafios impunham, acima de nossos desencontros
menores e quase sempre irrelevantes, a política de Frente.
Foram as frentes, como a Brasil Popular e a Povo sem
Medo, agrupando movimentos como o MST e o MTST, sindicatos como a CUT a
CTB, e partidos do campo das esquerdas que promoveram a resistência mais
consequente ao impeachment. Havia clareza de que estávamos diante de desafio
maior: um golpe de Estado que caminhava para além da deposição de Dilma
Rousseff (meta ostensiva e imediata), porque, mais profundo que o golpe de
1964, o golpe parlamentar-mediático-judicial de 2016 prescindiu da violência
militar e se julga, hoje, em condições de colher nas urnas o respaldo para
a consolidação de seu projeto: um governo neoliberal-conservador,
anti-nacional, anti-popular, anti-trabalhista, antidesenvolvimentista e
profundamente anti-democrático.
As lições deixadas pela política de Frente não podem ser
relegadas a plano secundário. A ameaça do golpe em curso é maior que a de 1964
e tem raízes protofascistas: não podemos dar as costas ao pronunciamento
eleitoral de 2016 e deixar de perscrutar o que pode ser, nesse sentido, 2018.
São exemplares as votações de São Paulo e do Rio de Janeiro. Na capital
fluminense, de tradição rebelde, o voto popular migrou para o pentecostalismo
de direita, levando a esquerda para um gueto de classe-média e alta nos bairros
da Zona Sul.
Para a integralização do golpe, sem atos institucionais, sem
tanques, tornou-se fundamental destruir as organizações políticas de esquerda,
a começar pelo PT (processo em curso). Além disso, sem mandá-las para o exílio,
é preciso destruir nossas lideranças, e a bola da vez é, consabidamente, o
ex-presidente Lula, vítima de processo mediático-judicial-policial de
desconstrução jamais visto entre nós.
O golpe, repitamos mais uma vez e não pela última vez, não se
esgota no impeachment. É pura e simplesmente uma etapa necessária para a
repressão e a desconstrução de um projeto de desenvolvimento nacional autônomo,
fundado no aprofundamento das franquias democráticas, no avanço das conquistas
sociais, na emergência das massas, na produção da riqueza nacional e na
distribuição de renda.
O projeto do golpe, com Temer ou sem ele, mas impossível com
Dilma ou Lula, é essa política de terra arrasada contra a democracia, a independência
e a emergência das massas.
Para enfrentar o programa da direita, de exacerbação da
dominação de classe, precisamos de lucidez doutrinária, coragem política e
eficiência organizativa, o que passa pela unidade das forças de esquerda,
ponto de partida de uma política de Frente a mais ampla possível.
Já.
Roberto Amaral
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