
Imagem: Guilherme Santos/Sul 21
por Luciano Velleda, da Rede Brasil Atual
Por volta de 2002, quase 15 anos depois de fixar residência no
assentamento atualmente chamado Hugo Chávez, no município de Tapes, no
Rio Grande do Sul, as 26 famílias que ali viviam se deram conta de que
as coisas não iam bem. Havia muita briga na comunidade e o dinheiro
obtido com a venda do arroz estava sendo gasto com tratamentos de saúde –
entre os quais para a depressão. Foi quando a comunidade percebeu que a
origem dos problemas era o uso de agrotóxicos na lavoura que estava
repercutindo na saúde dos trabalhadores rurais.
“Naquele momento, a gente se deu conta que ou nós mudávamos a matriz
tecnológica, ou era a nossa derrota como camponeses”, lembra a moradora
do assentamento Salete Carollo, 54 anos. “Percebemos que estávamos
sofrendo uma derrota por conta da matriz tecnológica que trabalhávamos.
Vimos que ninguém mais queria trabalhar no modo convencional porque a
sobra que existia da colheita era gasta em saúde.”
A situação limite os colocou diante da necessidade de fazer uma
escolha decisiva: era preciso abandonar a maneira tradicional de
cultivar o arroz, com uso de agrotóxicos, e partir para um novo modelo, o
agroecológico. Com a ajuda de um profissional biodinâmico, João Batista
Hoffmann, os agricultores ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) decidiram iniciar a mudança.
“Ele nos ajudou na transição, nos deu a técnica e a confiança”,
afirma Salete Carollo, destacando que a alteração não foi difícil por
estarem convencidos de que não poderiam continuar no outro método.
“A nova tecnologia nos foi dando a viabilidade da saúde, da
produtividade e da qualidade. Antes estávamos produzindo uma mera
mercadoria e nos demos conta de que o alimento deveria ser saudável. A
agroecologia não é só o alimento. A relação entre as pessoas muda, te
traz outras perspectivas de existência e te faz pensar em outros valores
para o ser humano.”
Salete explica que as 26 famílias já tinham “uma vida bastante
coletiva” desde a época do acampamento e a intenção eram manter essa
característica depois que fossem assentados. A crise do modelo
tradicional de plantio do arroz acabou criando as condições adequadas e
os agricultores decidiram então se organizar em uma cooperativa, com
todos os meios de produção agropecuária coletivos. “A alimentação
saudável passa por esse novo paradigma. A natureza que está ali é um
sujeito, assim como nós. Essa é a relação que se estabelece e isso nos
alimentou para outro projeto de vida.”
Cadeia produtiva
Depois de mudar a matriz tecnológica da produção do arroz, os
assentados da reforma agrária perceberam que era necessário ir além e
não podiam mais entregar a produção nas mãos do “atravessador”. Era
preciso estar à frente de todos os elos da cadeia produtiva.
“Foi então que instalamos a agroindústria pra beneficiar toda a
cadeia da produção orgânica, organizamos a relação direta com o mercado e
definimos a marca Terra Livre”, explica Salete Carollo.
Nesse processo, diz ela, foi importante o Programa Nacional de
Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA),
este último criado em 2003, na gestão do ex-presidente Lula e
atualmente parado sob o governo de Michel Temer.
“Não temos mais atravessador naquilo que produzimos como
cooperativa”, afirma Salete, enfatizando que hoje tal prática não se
resume a produção do assentamento em que ela vive e agrega o trabalho de
assentados que aderiram a matriz tecnológica do arroz orgânico de todo o
Rio Grande do Sul.
Quase 15 anos depois da decisão de abandonarem o uso de agrotóxicos, a
Cooperativa de Produção Agropecuária dos Assentados de Tapes (Coopat)
está ligada a produção de cerca de 600 famílias gaúchas de 22
assentamentos diferentes e vende, por meio do PNAE, para escolas
municipais, estaduais e privadas de 16 municípios do estado, alcançando
mais de 85 mil pessoas por mês, além de escolas em Belo Horizonte, Rio
de Janeiro, e nas cidades paulistas de São Bernardo do Campo, Campinas e
São Caetano. Recentemente, a produção tem sido adquirida também pela
Santa Casa de Misericórdia e o Hospital Moinhos de Vento, dois dos mais
renomados hospitais de Porto Alegre.
De acordo com o Instituto Riograndense do Arroz (Irga), o MST se transformou no maior produtor orgânico de arroz da América Latina. “Quem conhece, quer o nosso arroz, porque ele tem um sabor, tem uma ideologia e é um alimento de qualidade”, afirma Salete.
A alimentação como política
A agricultora de Tapes estima que, atualmente, mais de cinco mil
famílias assentadas pela reforma agrária no Rio Grande do Sul atuam no
modelo de cooperativas, unidas pela linha de produção que, além do
arroz, funciona também para o leite, frutas, hortaliças e sucos. Somente
em Porto Alegre há 22 feiras de produtos orgânicos onde os assentados
comercializam sua produção agroecológica.
“A mídia tenta convencer as pessoas que o agronegócio é ‘pop’, é
vida. Na verdade, a população está tomando consciência de que esse
pacote do agronegócio está trazendo doenças, está matando”, pondera
Salete. “As pessoas começam a se dar conta de que querem vida e vida
entra pela boca, por isso vão buscar um alimento que dê saúde. A
comunidade começou a ter consciência e a criar uma nova cultura de
alimentação. Hoje as pessoas estão se perguntando: ‘O que estou
ingerindo?’; ‘De onde vem?’; ‘Que modo de produção é esse?'”
Para a agricultora gaúcha, diante dos dois projetos em
desenvolvimento no Brasil – o agronegócio e o agroecológico – o simples
ato de se alimentar torna-se um gesto político, independentemente de
posições partidárias. “A atitude do ser humano quando vai comer é uma
atitude política. Alimentar-se é um ato político que vai além de
simplesmente ingerir um alimento. A depender do que eu compro, eu
fortaleço um projeto ou outro”, destaca.
E para que o projeto agroecológico siga seu desenvolvimento, os
filhos dos assentados da reforma agrária estudam agroecologia, agronomia
com enfoque em agroecologia e administração de cooperativa. “São cursos
para dar conta dessas demandas. Enquanto você é camponês
individualmente, é uma condição, mas quando você decide se agrupar em
cooperativa, onde todos os meios de produção são compartilhados, também
há uma complexidade na gestão e é preciso ser eficiente em todas as
etapas”, explica Salete.
Afirmação de um modelo
Para a 2ª Feira Nacional da Reforma Agrária,
que terminou no último domingo (7), os agricultores gaúchos trouxeram
25 toneladas de alimentos. O estande do Rio Grande do Sul já havia
marcado presença na primeira feira, em 2015, porém em menor escala. Nos
últimos dois anos, entretanto, houve um significativo avanço nas
agroindústrias ecológicas, o que possibilitou passar dos oito produtos
expostos em 2015, para 18 itens esse ano, incluindo, além do arroz
orgânico, sucos de amora, uva, laranja e diferentes geleias.
“Nosso nível de organização no Rio Grande do Sul tem uma centralidade
na cidade de Eldorado do Sul, onde construímos um prédio, e em Porto
Alegre, que é como se fosse nossa pequena Ceasa”, explica Salete.
Para ela, mais do que a oportunidade de vender os alimentos, a
participação na feira é também um momento de mostrar para a população os
benefícios da reforma agrária. “O mais importante é divulgar pra
sociedade o resultado da reforma agrária. É tentar dialogar com a
sociedade que a reforma agrária é urgente no Brasil, porque além de
desconcentrar a terra, ela gera trabalho, alimenta o povo e traz outra
perspectiva da agricultura. Aprendemos que é possível produzir o
alimento orgânico em grande escala para alimentar o país, temos
condições de produzir para abastecer todo o mercado brasileiro, provamos
para nós mesmos e para a sociedade que é viável, tem fundamento
científico e a prática está comprovando isso.”
Segundo Salete, a imagem negativa do MST construída ao longo dos anos
pela imprensa tradicional está sendo superada com o resultado dos
assentamentos e a produção de alimentos saudáveis.
“A mídia mais burguesa não ajuda. Para ela, somos baderneiros,
criamos conflito, um bando de vadios, um braço do PT e não é isso. Temos
um projeto muito bem claro de agricultura, que passa por reforma
agrária, produção de alimento saudável na agroecologia, cooperação,
agroindústria e mercado. É isso”, finaliza.