Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 17 de março de 2018

Em defesa do óbvio

Sábado, 17 de março de 2018



EM DEFESA DO ÓBVIO!

Por

Juan Ricthelly
A história da humanidade infelizmente, é cheia de capítulos tristes e horrorosos que deixariam qualquer dos filmes de terror de Holywood no chinelo, com a diferença de que os monstros dessas histórias horrendas do mundo real, possuem aparência humana, foram e são pessoas como eu e você, que possuíram família, amigos, gostavam de cerveja e amaram e foram amados.

Foram pessoas que sorriam, tinham os seus momentos de diversão, frequentavam o culto religioso de sua preferência ou não, faziam orações ao deus que acreditavam, tinham convicções e uma visão pessoal de mundo ideal que estavam dispostos a construir.

E essas pessoas, como eu e você, fizeram coisas horríveis à outras pessoas também como eu você, nessa busca de realização de mundo ideal ou simplesmente de realização de ambições pessoais mesmo.

E aos trancos e barrancos, de alguma forma chegamos aqui, e estamos aqui vivendo esse momento histórico, olhando para o passado com espanto e nos esquecendo que o presente também está começando a tomar um contorno tão espantoso quanto, com a proliferação de discursos e ideias que em princípio podem parecer inofensivas, mas que estão cada vez mais ganhando corpo na sociedade, semeando um terreno extremamente fértil para que erros do passado voltem a se repetir.

E a trombeta apocalíptica dessa leitura pessoal pessimista, está ecoando por todos os cantos, sendo soprada por cada boca, que por ignorância ou maldade, segue reproduzindo os mesmos discursos de sempre em ataque aos Direitos Humanos e aos seus defensores.

Quem nunca ouviu declarações do tipo:

“Direitos dos manos!”
“Direitos Humanos para humanos direitos!”
“Direitos Humanos só funcionam para bandidos. ”
“Onde estavam os Direitos Humanos quando fulano foi morto? ”
“Porque os Direitos Humanos não foram na casa de beltrano? ”

Doem os ouvidos quando alguém diz isso! Doem os olhos quando alguém escreve algo assim! E os dois ao mesmo tempo quando se reproduz em vídeo!

Mas aí, mesmo com dor, desgosto, respiração profunda e falta de paciência, se faz mais que necessário, tentar explicar alguma coisa, de alguma forma que descontrua ou ao menos comece a descontruir essa avalanche de ignorância que segue soterrando a todos.

É inegável o caráter violento de nossa sociedade, de nosso país, que segue matando uma quantidade assustadora de pessoas, na casa dos 60 mil por ano, das formas mais violentas e pelos motivos mais torpes que possamos imaginar.

E no meio desse triste cenário, surge o ódio expressado nos discursos tão populares de hoje, que vai cegando as pessoas, e uma sede insaciável por vingança, que vai tomando o lugar da legítima sede de justiça que habita o espírito de todas as pessoas de bom coração.

Ao nos debruçarmos sobre a história de nossa espécie, podemos vislumbrar inúmeros momentos de crueldade em cenários onde o homem se demonstrava o lobo do próprio homem, sociedades que quando não haviam leis, as que haviam existiam para proteger os interesses de uma minoria, mas a crueldade desses momentos passados se encontrava presente justamente no desrespeito institucionalizado pela dignidade das pessoas, e desse ponto, fagulhas foram acesas, reis, barões, duques, condes e viscondes, perderam suas cabeças.

Não foi um processo simples, não foi lindo ou pacífico! Pois pessoas morreram aos montes ao longo de nossa história, lutando por direitos e garantias, que muitas vezes não chegaram a usufruir, para que pessoas hoje debochem desses mesmos direitos como se nada fossem.

Os Direitos Humanos, são uma herança de nossos ancestrais que tombaram lutando por um mundo melhor, infelizmente essa história foi esquecida e esse esquecimento é em grande parte o responsável por esse desprezo à essa preciosa herança.

A você que está lendo esse texto longo, que chegou até esse ponto e constantemente se vê repetindo qualquer uma dessas frases ou similares que mencionei acima. Já parou alguma vez para estudar ou conhecer de onde vieram ‘os direitos dos manos’? Sabe realmente o que eles são? Sabia que você como ser humano é beneficiário desses mesmos direitos?

Vou te dizer uma coisa, Direitos Humanos, não são um grupo de pessoas, que saem visitando a casa de vítimas de crimes ou defendendo pessoas que cometeram crimes por aí (esses são os advogados). 

São conceitos abstratos adotados por países e reproduzidos muitas vezes de forma pulverizada por toda a legislação federal, estadual e municipal, como um meio de se buscar alcançar uma sociedade ideal, onde todos possam ter a sua dignidade como seres humanos, respeitada pelo Estado e pelas outras pessoas.

Então vamos trabalhar um desses conceitos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), recomendo a leitura, diz em seu Art. III:

“Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. ”

Alguém discorda disso? Acredito que não.

Mas vamos lá, a nossa Constituição no caput do Art. 5º, que reproduz ao longo de seus incisos um gigantesco rol de Direitos Humanos que devem ser garantidos pelo Estado, reproduziu o artigo da DUDH da seguinte forma:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...”

Então vamos abordar o direito humano à vida, o Brasil é signatário da DUDH e se comprometeu na sua Constituição a garantir esse direito, mas nós sabemos que esse direito é muito desrespeitado em nosso país, seja por pessoas, seja pelo próprio Estado que se comprometeu a nível internacional com essa questão.

Mas o que acontece normalmente quando o Direito Humano à vida de alguém é despeitado por uma pessoa qualquer?

O Estado por meio do Direito Penal, tipificou a violação à esse direito como crime, o que lhe dá o direito de ir atrás do violador, movendo suas instituições para que haja uma investigação e após ela ser conclusiva sobre a autoria e a materialidade, se mova então um processo com direito à defesa e respeito ao devido processo legal, vamos ver o que diz a DUDH:

Art. IX. Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Art. X. Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.
Art. XI. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

E isso tudo, de alguma forma se reproduz em nossas leis, obrigando o Estado a agir de acordo com esses princípios e conceitos abstratos.

Mas e quando é o Estado que viola o direito à vida ou qualquer outro direito de um cidadão?

Não tem como colocar o Estado na cadeira, estabelecer uma pena para ele, e condená-lo há sei lá quantos anos de prisão, o Estado não é uma pessoa, é um conjunto de instituições, geridas por pessoas, responsáveis por administrar um território, garantir direitos e vida digna à sua população e defender a sua soberania interna e externa.

Não é possível aplicar o Direito Penal ao Estado, da mesma forma que se aplica às pessoas comuns, o que se pode fazer, é responsabilizar os agentes que se utilizaram do poder do Estado para violar esses direitos, penalmente se for o caso, e por meio dos freios e contrapesos das instituições, garantir que o Estado cesse a violação, garanta o exercício do direito e se for o caso indenize quem foi vítima dele.

Se o Estado se recusar, aí se pode buscar os tribunais internacionais competentes para dar um puxão de orelha no Estado.

Vamos exemplificar outros Artigos da DUDH:

Art.I. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Art.IV. Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.

Art. V. Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Art. XVIII. Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular.

Art. XXIV. Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.

Esses são alguns dos Direitos Humanos expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que possui 30 artigos, que podem ser lidos numa sentada

Esses direitos são de todos, repito em caixa alta, TODOS OS SERES HUMANOS, e a declaração repete isso propositalmente no início de quase todos os seus artigos, não deixando margem para qualquer outra interpretação que mentes criativas possam tentar fazer, não importa o que a pessoa é ou o que ela fez, basta apenas que ele ou ela tenha nascido como um espécime de homo sapiens e nada mais.

Então quando alguém crítica a atuação de uma instituição do Estado, como a polícia, no tratamento de pessoas que já se encontram presas e sem oferecer resistência ou risco, mesmo que supostamente tenham cometido algum crime, não se está dizendo que a pessoa não deva ser presa se for comprovado que ele é realmente culpado, apenas que existem leis nacionais e internacionais que devem ser observadas, só isso! E que o Estado por meio de seus agentes está violando essas normas.

Estando preso, não se está defendendo que a prisão seja um parque de diversões ou um SPA cinco estrelas, com sauna, fliperama, piscina olímpica, camas forrada com lençóis de algodão egípcio, travesseiros de pena de ganso e pratos milimetricamente construídos por um chef francês.

Mas simplesmente que a Lei de Execução Penal (LEP) seja cumprida, que as prisões não sejam masmorras medievais, com celas lotadas com o dobro da capacidade, abusos físicos cometidos por agentes penitenciários, comida estragada, mulheres que na falta de absorvente recorrem ao miolo do pão francês, crianças nascendo e sendo amamentadas em celas imundas, proliferação de doenças, cantinas administradas com preços superfaturados e quarenta por cento de pessoas presas sem julgamento podendo ser inocentes no final das contas.

Se defende que a lei seja cumprida, que haja assistência religiosa que pode sim ajudar muita gente, que haja educação dentro dos presídios para que o poder transformador dela possa mudar a vida de algumas pessoas, que haja trabalho para que por meio dele o preso possa se sustentar e ajudar a sua família.

Nós defendemos que a ressocialização é o caminho mais acertado, ao invés da deformação sistemática e sem fim que vem sendo promovida, pois essas pessoas um dia sairão da cadeia, e melhor seria para todos nós que saíssem seres humanos melhores do que eram quando entraram.

Entendemos que qualquer política de Segurança Pública que não envolva uma reforma radical do Sistema Carcerário e o cumprimento literal da LEP, será em vão, pois os presídios seguirão sendo verdadeiras Universidades do Crime, onde o crime organizado seguirá cooptando novos agentes e formando de forma competente seus quadros, e isso tudo debaixo do nariz do próprio Estado.

E temos a certeza, de que uma sociedade que defende a abolição dos Direitos Humanos como solução para os seus problemas, é uma sociedade fadada ao fracasso, pois seguirá a mesma lógica de sempre, esperando obter resultados diferentes que nunca virão.

Sem Direitos Humanos, não há solução!

Defendamos o óbvio! 

Dom Juan Ricthelly