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(Millôr Fernandes)

domingo, 26 de junho de 2022

Análise | Deveríamos estar constrangidos com o cenário da fome no Brasil

Domingo, 26 de junho de 2022
"O Brasil é um país de desigualdade agressiva. E os números, que não dão conta da totalidade da tragédia, servem ao menos para indicar a extensão da desigualdade" - Leonardo de França

As regiões mais pobres no Brasil são as regiões que concentram o maior contingente de população em insegurança alimentar

Alexandre Cesar Cunha Leite
Brasil de Fato | João Pessoa (PB)
25 de Junho de 2022

Vou iniciar lançando mão de um clichê, que é verdadeiro e que precisa ser continuamente reforçado, infelizmente: o Brasil é um país de dimensões continentais, abundante em terras férteis e com farta disponibilidade de água, o que permite que o país seja um dos maiores produtores de alimentos do planeta. Simples assim. O Brasil é um país farto em recursos que, se colocados em atividade, têm capacidade para gerar um volume tal de alimentos que alimentaria não apenas a sua população, mas serviria ainda de fontes complementar de recursos alimentícios para outras partes do globo.

Assim sendo, jogo outro clichê para facilitar a exposição da minha inquietação: como pode um país com tamanha disponibilidade de recursos, constituindo-se como um dos maiores produtores de alimentos do planeta, conviver com aproximadamente 33,1 milhões de pessoas famintas? Não soa um tanto absurdo quando somamos as duas informações?

Vou reforçar: um país produtor global de alimentos possui 33,1 milhões de pessoas vivendo em insegurança alimentar grave. E piora quando aumentamos a abrangência: o Brasil tem 125,2 milhões de habitantes vivendo em situação de insegurança alimentar. Esses dados foram retirados do segundo Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgado este ano.

O brasileiro vive uma experiência constrangedora, violenta, assassina, que insulta o que podemos chamar de humanidade. Além da fome do corpo físico, ainda vivemos a fome da educação, da moradia e do respeito aos nossos direitos como seres humanos. Deveria doer.

Deveria causar comoção. Deveria causar indignação generalizada. Mas em vez de apresentarmos um comportamento de questionamento e indignação, parcela da população opta pela inação. Essa mesma parcela permite o escanteamento dos segregados, sente-se confortável com o distanciamento.

Deixamos nosso cotidiano contribuir com uma miopia, até mesmo com uma cegueira seletiva, tornando essas pessoas invisíveis. Essa marginalização torna essas pessoas imperceptíveis, nascem e morrem assim. E a sociedade, excludente, egoísta, promove diariamente o apagamento destas pessoas. Negando a elas a dignidade da existência, da vida. E esse apagamento passa desapercebido pois torna-se história não contada.

A nossa democracia torna-se então um constructo social que viola a existência destas pessoas. Nosso modo de vida viola igualmente a vida planetária; em nosso tempo como visitantes na Terra usamos os recursos que temos disponíveis para criar desigualdade.

O Brasil é um país de desigualdade agressiva. E os números, que não dão conta da totalidade da tragédia, servem ao menos para indicar a extensão da desigualdade. É desigual e segregador o índice de endividamento das famílias brasileiras, hoje, após os dois anos mais duros da pandemia.

A população brasileira tem empobrecido. Mas há uma pequena parcela, pequena mesmo, que concentra uma grande parte da riqueza gerada pelo país. Riqueza essa que, se fosse em parte recolhida como impostos e redistribuída em políticas públicas, permitiria uma melhor condição de vida para toda a população, sem exclusões. Contudo, a dominância de poderes e interesses econômicos impede que os recursos sejam distribuídos de forma a gerar e garantir benefícios para todos.

Nesse cenário, o Estado, em tese, o garantidor e operador de ações que equilibrassem o jogo, tornou-se refém, articulador e promotor da injustiça. Apaixonou-se pelo sequestrador, caiu na síndrome de Estocolmo.

A fome assola o mundo, com um destaque negativo para os países em desenvolvimento. Fruto da desigualdade criada por um sistema econômico e produtivo calçado na exclusão. O modelo econômico vigente não se mostra sensível à marginalização. Ao contrário, a escassez tende a fortalecer a lógica do modelo econômico, moldando ainda as decisões políticas.

Com a fome não é diferente, o direito à alimentação é negado, somando um item de exclusão à lógica produtiva, à agonia mercadológica que forma milionários e bilionários continuamente.

O problema derivado da fome é que a fome corrói, mata com requintes de crueldade, leva a pessoa a condição de agonia, destituindo-a de essência, derivando em perda da sua humanidade. É brutal. Deveria, assim como crimes de guerra, não só ser banida como causar consternação nas pessoas. Mas no Brasil, apesar de existir, sim, quem se apresente indignado, inquieto, revoltado diante da condição de milhões de pessoas famintas, mantém-se um modelo político e econômico que se enquadra na classificação de necropolítica.

A trágica dicotomia entre ricos e pobres é reforçada pela ação do governo brasileiro atualmente. E, novamente, números servem de ilustração. As regiões mais pobres no Brasil, Norte e Nordeste, são as regiões que concentram o maior contingente de população em insegurança alimentar, em todos seus níveis: 25% dos domicílios da região Norte enfrentam a situação de insegurança alimentar grave, e 21% dos domicílios da região Nordeste se encontram na mesma situação.

Produtores e pequenos agricultores rurais, no auge da incoerência, são os que mais passam fome. A população preta e parda é a que mais passa fome. Crianças de famílias de baixa renda são as mais atingidas pela fome. Mulheres estão no núcleo da fome. Por sorte, também vem das mulheres a força majoritária de reação à lógica da exclusão.

O governo atual tem muita responsabilidade na piora da condição de vida da população, especialmente daquela parcela de baixa renda que sofre com o desmonte das políticas públicas sociais. Exemplos não faltam. O antigo Programa de Aquisição de Alimentos, que foi rebatizado de Alimenta Brasil (só por uma questão de ego do atual presidente) foi a um patamar de quase zero.

Mas não parou na redução da execução orçamentária. A distribuição dos recursos deixou de contemplar cooperativas e ações afirmativas sociais e foram vinculadas ao famigerado orçamento secreto, gerenciado pelos/as apoiadores do governo. Na esteira da falácia da redução dos gastos públicos, a execução orçamentária nos anos da pandemia não foi direcionada ao fortalecimento da rede de proteção social. Pelo contrário: reduziram-se os valores destinados a essa finalidade.

Nesse mesmo período, de 2019 a 2022, vários projetos de lei destinados a elevar a proteção social direcionados aos grupos vulneráveis foram vetados pelo presidente Jair Bolsonaro, deteriorando a condição de sobrevida destas pessoas. Reforçou-se a condição de fome: fome de alimento, fome de saúde, fome de educação, fome.

O Auxílio Emergencial, uma medida necessária para reduzir os impactos da fase inicial da pandemia na economia, contribuiu para uma retomada da atividade econômica. Mas, quando esse mesmo programa se converteu para Auxilio Brasil, substituindo o mais bem sucedido programa de transferência de renda já adotado no Brasil, observou-se redução do seu alcance.

Pior: o novo programa não tem ainda uma fonte de financiamento certa e apresenta-se provisório, sem qualquer planejamento ou explicação de como será mantido após sua fase provisória. Logo, as prioridades de alocação orçamentária do atual governo, questão de escolha, definem que fome e carência não fazem parte das prioridades decisórias.

Pode parecer que eu estou pesando muito a mão no governo atual. Então fuja das aparências, pois assim como a sociedade tem uma grande parcela de culpa, do governo espera-se, por meio de medidas e ações regulatórias e políticas públicas, um papel de mediador entre a ganância mercadológica e os excluídos, famintos de comida, mas também de educação, de saúde, de dignidade.

Apesar de compreender que o cotidiano de sobrevivência do brasileiro toma suas energias, acomodação é um comportamento que não deveria fazer parte da conduta da população brasileira. Muito menos aceitação. Nem diante do modelo econômico excludente, nem diante da inação social do governo – que, por obrigação, deveria mediar e moderar as relações econômicas –, nem da relação de cumplicidade do governo com a lógica mercadológica vigente. Menos ainda diante da situação vivida por mais de 50% das famílias brasileiras, convivendo com a fome em alguma intensidade. Deveríamos estar constrangidos, indignados com a situação que vivenciamos, e, consequentemente, mais atuantes, mais participativos.

É impossível alcançar desenvolvimento com desigualdade e com uma parcela tão significativa de pessoas vivendo com fome. Desenvolvimento é um termo que só faz sentido usado como coletivo. Só se alcança justiça social com as pessoas tendo dignidade, e ter acesso à alimentação é pré-requisito. Logo, para alcançar desenvolvimento, temos que saciar, inclusive por meio da ação do governo, as diversas formas de fome ainda presentes na vida do brasileiro.

*Alexandre Cesar Cunha Leite é professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), membro do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB (FomeRI) e criador do SACIAR.

**Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

***Leia mais textos como este na coluna do FomeRI no Brasil de Fato PB.

Edição: Cida Alves