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(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 13 de abril de 2023

A MARGINALIZAÇÃO DA POPULAÇÃO AO ACESSO DA RIQUEZA LINGUÍSTICA

Quinta, 13 de abril de 2023

A MARGINALIZAÇÃO DA POPULAÇÃO AO ACESSO DA RIQUEZA LINGUÍSTICA

Salin Siddartha

O saudoso pedagogo Lauro de Oliveira Lima, em uma entrevista ao Jornal do Brasil, em 3 de fevereiro de 1976, disse: “(...) a minha filha, quando foi para o grupo escolar, chegou do exame e disse: ‘passei, só tinha meninos do morro’. Com oito anos ela já tinha entendido que o páreo era dela, que tinha ganho antes de entrar no páreo.” É a gramática da escola, não é a gramática da vida. Essa gramática corporifica um discurso distanciado do povo, e que tem interesse em continuar assim para que a população não tenha acesso ao significado do que dizem e se sinta marginalizada do processo de tomada de decisões, para que não possa discuti-las por não as entender e assuma o seu papel passivo de cumprir ordens e aceitar sem reagir os conceitos estabelecidos. Assim, “(...) as palavras ‘capitalistas’, ‘bolchevistas’, ‘lavradores’ ‘são’ o que elas dizem que eles são; os Estados Unidos ‘são’ uma democracia, porque toda a gente o diz” (1). Ora, toda gente o diz porque os significados dos signos linguísticos são manipulados e passam a ser empregados com a conotação que lhes dá a ideologia do poder, de tal forma que, hoje em dia, “o Japão é Extremo Oriente não só para a Europa, mas também para o estadunidense da Califórnia e para o próprio japonês, o qual — através da cultura política inglesa — poderá chamar o Egito de Oriente Próximo” (2).


O referente passa a ser alienado pelo signo linguístico por meio da recriação semântica. Isso atinge plenamente os objetivos do capitalismo: fazer com que o povo não tenha elementos para interpretar o mundo e, consequentemente, não atinja a acumulação do conhecimento necessária para igualar-se quantitativamente às classes dominantes, impedindo-o de textualizar os seus conhecimentos na prática linguística transparente a uma filosofia da práxis e de transformar o discurso quantitativo em qualitativo. A televisão e a mídia em geral limita o vocabulário, a criança fica à mercê da TV e da mídia, e está formado o quadro antilinguístico. E a linguagem é um problema de nível mental. A juventude não discute, não debate, não lê, não vai redigir bem nunca.


A limitação do vocabulário significa a limitação da posse dos produtos, o vocabulário de um menino do morro é aproximadamente 10% de um outro da mesma idade, da classe média, porque o garoto da pequena burguesia convive mais com o que foi produzido e, sendo assim, tem mais possibilidade de acesso à riqueza do que o garoto pertencente a famílias proletárias ou lumpemproletárias. Como a linguagem tem conteúdo metafórico, a não-utilização de um signo linguístico significa a sua ausência no universo social em que se insere o discurso, por isso há uma contradição na existência do signo no universo linguístico da sociedade e a não-detenção desse elemento por parte das classes que a eles não têm acesso (muito embora os produzam como seus verdadeiros fabricantes e construtores). O filósofo e psicólogo alemão Wilhelm Wundt dizia que “a história das palavras tem que ser explicada pela história dos objetos, conceitos e ideias que nelas estão expressos” (3).


O universo vocabular dos indivíduos está ligado diretamente ao universo social a que pertencem com relação à parcela que possui na distribuição da riqueza e, por esse motivo, o seu desempenho linguístico não tem nada a ver com sua competência linguística — em se tratando de indivíduos sãos —, todavia tem a ver com a propriedade da riqueza produzida pela sociedade. A correlação entre o vocabulário e o referente é uma correlação histórica, porque envolve um processo de trabalho necessário para produzi-la — tanto em relação ao vocabulário quanto em relação ao referente — do qual eles são a síntese. Tal processo não cessa nunca, pois envolve transformações constantes que se dão no nível do referente, do produto transformado, do qual o vocábulo é signo.

Notações Bibliográficas:

(1) HAYAKAWA, S. A Linguagem no Pensamento e na Ação. São Paulo: Pioneira, 1972. p. 205

(2) GRAMSCI, Antonio. Literatura e Vida Nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p.172

(3) CUNHA, Celso. Uma Política do Idioma. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976. p. 54


Guará II-DF, 13 de abril de 2023

SALIN SIDDARTHA