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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 19 de maio de 2023

CORRUPÇÃO, PREVENÇÃO E DESIGUALDADE. PARTE XIX – FOCO NA PREVENÇÃO: O CAMINHO MAIS EFICIENTE PARA COMBATER A CORRUPÇÃO

Sexta, 19 de maio de 2023

Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 19 de maio de 2023

Nesta série de textos abordarei, de forma sucinta, vários temas relacionados com um dos mais relevantes problemas da realidade brasileira: a corrupção sistêmica. Não é o maior dos nossos problemas (a extrema desigualdade socioeconômica ocupa esse posto). Também não é momentâneo ou transitório (está presente em todos os governos, sem exceção, desde que Cabral chegou por aqui). Não está circunscrito a um partido ou grupamento político (manifesta-se de forma ampla no espectro político-partidário). Não está presente somente no espaço público (a corrupção na seara privada é igualmente significativa). Não será extinta ou reduzida a níveis mínimos com cruzadas morais ou foco exclusivo na repressão (será preciso uma ação planejada, organizada e institucional em torno de uma série de medidas preventivas). Não obstante esses traços característicos, tenho uma forte convicção. A construção de uma sociedade democrática, justa, solidária e sustentável, centrada na dignidade da pessoa humana em suas múltiplas facetas e manifestações, exige um combate firme, consistente e eficiente a essa relevantíssima mazela do perverso cenário tupiniquim.

Na Parte XVIII dos escritos desta série, afirmei que, por inúmeras e consistentes razões, é necessário rever a preferência social generalizada pelas ações repressivas em favor de uma ênfase bem maior nas medidas preventivas a serem efetivadas no difícil processo de combate à corrupção e desvios similares.

Diferente da repressão, a prevenção enfrenta as causas dos problemas. Assim, como em qualquer área de atuação social, as ações preventivas impedem a ocorrência da corrupção ou a reduzem. Se as fontes dos fenômenos são devidamente identificadas e atacadas, não permanecem ativas produzindo toda sorte de efeitos nocivos.

Numa perspectiva de longo prazo, as medidas preventivas são mais econômicas. Desenvolver ações voltadas para evitar a corrupção é mais eficiente, ou menos dispendioso, do que realizar despesas significativas na investigação, processamento e punição dos casos de corrupção já ocorridos, notadamente diante da possibilidade, concretizada nas últimas décadas da história do Brasil, de invalidação de uma grande quantidade de operações policiais e judiciais.

Existem alguns “efeitos colaterais” importantes decorrentes da atenção voltada majoritariamente para as raízes do problema da corrupção. O esforço de identificar e enfrentar as causas das malversações resulta: a) na melhoria da transparência; b)  no fortalecimento dos sistemas de controle (interno e externo); c) no aprimoramento dos mecanismos de detecção e d) no fortalecimento da cultura de integridade e ética.

Também deve ser considerado que a implementação preponderante de medidas preventivas promove uma importante mudança cultural na sociedade. Não só o incentivo à honestidade e à integridade são prestigiados. Essa abordagem fortalece a percepção de que os grandes problemas sociais não são resolvidos rapidamente, com a ação salvadora de heróis ou com o uso de força. As mazelas mais profundas reclamam um considerável esforço de análise, planejamento e mesmo de paciência para que os resultados sejam colhidos ou observados. Em outras palavras, a construção de um ambiente livre ao menos da corrupção em larga escala reclama um processo difícil e demorado de conscientização, organização e mobilização dos setores mais consequentes da sociedade brasileira.  

O enfrentamento das causas estruturais da corrupção e problemas congêneres define um especial impacto duradouro ou de longo prazo. Diferente das ações repressivas, que são essencialmente reativas em relações aos ilícitos identificados, as medidas preventivas alimentam um ambiente propício à gestão administrativa eficiente das atividades de combate à corrupção, notadamente com o planejamento da mobilização de recursos humanos, materiais e orçamentários.

A adoção planejada, permanente e continuada de mecanismos preventivos de combate à corrupção e outras malversações contribui com maior ênfase e eficiência para a construção de uma expectativa geral de controle. Essa percepção, generalizada entre os agentes públicos e privados, funciona como uma poderosa ferramenta inibitória em relação a prática de ações ilícitas.

Uma das consequências mais relevantes do foco prioritário em medidas preventivas é o fortalecimento das instituições mais diretamente envolvidas no combate à corrupção. Elas serão permanentemente lembradas e estarão continuamente na “ordem do dia” justamente porque será preciso identificar (e esgotar) todo o potencial de suas atuações. Entre outros itens, as ações de capacitação e a modernidade do necessário suporte logístico, notadamente na área de informática, tendem a ser fortemente contempladas na seara dos enfoques preventivos.  

Destaca-se a sucessão de operações policiais e judiciais anuladas e o reforço, por conta disso, da sensação de injustiça e impunidade, além das despesas públicas praticamente inúteis envolvidas nesses esforços. Obviamente, estancados preventivamente os atos de corrupção e outras malversações o cenário de sucessivas invalidações das operações e seus efeitos deletérios não seriam verificados.

Existe uma quantidade significativa de medidas preventivas que podem ser consideradas e implementadas. Elas variam quanto à natureza e ao alcance. Em linhas gerais, podemos considerar: a) providências voltadas para combater a deletéria cultura de levar vantagem, profundamente impregnada em boa parte da sociedade brasileira; b) ações dirigidas ao saneamento do universo político, notadamente para tornar residual o clientelismo e o fisiologismo e c) medidas a serem adotadas no âmbito do Poder Público. No último grupo, podem ser apontadas providências relacionadas com: a) formação/capacitação dos agentes públicos; b) promoção da cultura de integridade; c) desenvolvimento de um ambiente onde impere uma expectativa generalizada de que os controles estão em funcionamento e atuarão com a necessária energia; d) normatização e manualização de processos; e) adoção vigorosa da transparência/publicidade como forma normal de funcionamento da Administração Pública; f) profissionalização da força de trabalho (redução drástica do número de cargos comissionados) e adoção de processos seletivos centrados em critérios objetivos; g) fortalecimento dos órgãos de controle, especialmente com o estabelecimento de mandatos para os seus dirigentes e formação de redes de interação e h) adoção de procedimentos permanentes e efetivos de acompanhamento da evolução patrimonial dos agentes públicos, particularmente aqueles ocupantes de posições estratégicas de decisão.

Adiante será destacada a centralidade da medida de saneamento da representação político-parlamentar. Afinal, não é difícil constatar que maiorias parlamentares formadas na base do clientelismo e do fisiologismo definem um ambiente profundamente deteriorado, notadamente nas suas relações com os Poderes Executivos de todos os níveis da Federação. Temos vistos os Parlamentos, majoritariamente compostos por políticos do toma-lá-dá-cá, colocarem para tocar as músicas que farão os chefes dos Executivos dançar. Em verdade, nesses bailes das negociatas quem “dança” é a maioria da sociedade brasileira.


Textos anteriores da série:

PARTE I – O SENTIDO COLOQUIAL DE CORRUPÇÃO
PARTE II – A CULTURA DE LEVAR VANTAGEM
PARTE III – O SERVIDOR CORRUPTO SOZINHO
PARTE IV – O CANDIDATO CORRUPTO
PARTE V – O MITO DA FALTA DE PUNIÇÕES
PARTE VI – O SERVIDOR QUE RECUSA A CORRUPÇÃO
PARTE VII - QUADRILHAS ORGANIZADAS POLITICAMENTE
PARTE VIII - A CORRUPÇÃO ESTRUTURAL OU SISTÊMICA
PARTE IX – CORRUPÇÃO NO SETOR PRIVADO
PARTE X - A PERCEPÇÃO DA CORRUPÇÃO COMO O PRINCIPAL PROBLEMA DO BRASIL
PARTE XI – O TAMANHO DA CORRUPÇÃO NO BRASIL
PARTE XII - COMPARANDO A CORRUPÇÃO COM ALGUMAS DAS MAIS IMPORTANTES MANIFESTAÇÕES SOCIOECONÔMICAS NO BRASIL
PARTE XIII – O PRINCIPAL PROBLEMA DO BRASIL: A DESIGUALDADE SOCIOECONÔMICA. NÃO É A CORRUPÇÃO
PARTE XIV - COMO A CORRUPÇÃO ESCONDE A DESIGUALDADE E O DELETÉRIO PAPEL DA GRANDE IMPRENSA
PARTE XV - OS MECANISMOS DE COMBATE À CORRUPÇÃO
PARTE XVI - OS PRINCIPAIS PLANOS NACIONAIS DE COMBATE À CORRUPÇÃO
PARTE XVII – A INDEVIDA PREFERÊNCIA PELAS AÇÕES REPRESSIVAS NO COMBATE À CORRUPÇÃO
PARTE XVIII – A INEFICIÊNCIA DO COMBATE À CORRUPÇÃO COM FOCO MAJORITÁRIO NA REPRESSÃO

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