Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 12 de maio de 2023

REGULAÇÃO DO UNIVERSO DIGITAL: LEGISLATIVO, JUDICIÁRIO E EXECUTIVO DIVIDEM A CENA

Sexta, 12 de maio de 2023
Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 12 de maio de 2023

O debate (ou a guerra) em torno da regulação do espaço digital no Brasil segue com novos e explosivos episódios a cada dia. Tendo como pano de fundo a possível votação do Projeto de Lei n. 2.630/2020 pela Câmara dos Deputados, as escaramuças são protagonizadas por praticamente todos os atores envolvidos na discussão da questão (empresas de tecnologia, parlamentares, autoridades governamentais, membros do Ministério Público, magistrados, advogados, técnicos e especialistas, usuários das plataformas e redes sociais, etc, etc, etc).

Vários setores da sociedade, com significativos reflexos no ambiente parlamentar e um indisfarçável apoio das grandes empresas de tecnologia (big techs), fazem uma obtusa campanha pela rejeição do PL n. 2.630/2020. Vozes vindas das trevas afirmam, entre outras aleivosias, que: a) existe uma maquiavélica intenção de aprovar o “PL da Censura”; b) o projeto permite ao governo limitar o que pode ser dito na internet; c) seria criado um sistema de vigilância permanente, semelhante ao de países com regimes antidemocráticos e d) as grandes empresas do universo digital deixarão de prestar serviços no Brasil.

Curiosamente, quando os detratores do PL n. 2.630/2020 são chamados a deixar a generalidade dos discursos de lado e apontar especificamente quais os dispositivos do projeto que viabilizam as terríveis consequências mencionadas, surge um silêncio constrangedor. Também permanece sem resposta a indagação acerca do porquê são aceitáveis duras regulações do ambiente digital em várias partes do globo, notadamente na Europa, e essa mesma normatividade é tratada quase como o fim dos tempos no Brasil.

É provável, diante do cenário político vivenciado, que a tramitação do PL n. 2.630/2020 fique travada no Congresso. Segundo vários analistas experientes, a Câmara dos Deputados não conseguirá votar a proposta final do relator, Deputado Orlando Silva.

A probabilidade (mais do que possibilidade) de ausência de manifestação do legislador (Congresso Nacional) não significará ausência de atuação do Poder Público em relação aos aspectos mais nocivos da utilização atual das redes sociais, serviços de mensageria instantânea e ferramentas de busca. A necessidade de combater a prática de crimes no ambiente virtual, afastar os discursos de violência e ódio e desarticular as fábricas de notícias falsas é atual e urgente no Brasil e no mundo. O vigoroso movimento de regulação do mundo digital observado em várias partes do globo chegará ao Brasil pela ação do legislador ou, na falta dela, e mesmo em conjunto com ela, por decisões do Poder Judiciário e atos, com amparo constitucional e legal, da Administração Pública.

A Portaria n. 351, de 12 de abril de 2023, adotada pelo Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública, buscando expressamente realizar o Código de Defesa do Consumidor, definiu “medidas administrativas a serem adotadas no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública, para fins de prevenção à disseminação de conteúdos flagrantemente ilícitos, prejudiciais ou danosos por plataformas de redes sociais”.

Em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, pela manifestação monocrática do Ministro Alexandre de Moraes no Inquérito n. 4.781/DF, uma série de medidas restritivas foram adotadas em relação ao TELEGRAM (serviço de mensageria). Sintomaticamente, consta na fundamentação do pronunciamento referido: “É urgente, razoável e necessária a definição – LEGISLATIVA e/ou JUDICIAL –, dos termos e limites da responsabilidade solidária civil e administrativa das empresas; bem como de eventual responsabilidade penal dos responsáveis por sua administração”.

Como a regulação do mundo digital, no sentido do combate às várias formas de ilicitude, é um imperativo civilizatório, a institucionalidade posta, nos limites do Estado Democrático de Direito, encontrou (como nos exemplos dados) e encontrará os caminhos consistentes e seguros para: a) prevenir atividades ilícitas; b) interromper a prática de ilegalidades flagrantes e c) sancionar os responsáveis pelas práticas mais repugnantes observadas nas redes sociais, ferramentas de busca e serviços de mensageria.

Não acredito que alguém, em sã consciência, concorde que os caminhos digitais sejam estradas livres e desimpedidas para práticas como estas:

a) ofensas pessoais caracterizadas como injúrias, difamações e calúnias, chegando ao ponto de convocar as pessoas para aplicar surras em autoridades e seus familiares;

b) incentivo à realização de crimes, compreendendo, observado o contexto atual, atos de crueldade contra animais e ataques a estabelecimentos educacionais;

c) apologia de fato criminoso ou do autor de crime que envolva danos aos patrimônios público e privado, prática de lesões corporais e até mesmo a supressão violenta da vida, com ou sem requintes de crueldade;

d) discursos de ódio, violência e discriminação que pregam até mesmo a eliminação física de pessoas e segmentos sociais por razões como: d.1) cor da pele; d.2) origem regional; d.3) gênero; d.4) orientação sexual ou d.5) credo religioso;

e) induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio ou práticas de automutilação, especialmente aquelas dirigidas a crianças e adolescentes;

f) comércio ilegal de certos bens e serviços, particularmente drogas, armas e medicamentos falsificados;

g) intensa interação de grupos de pedófilos, nazistas, terroristas, traficantes de drogas ilícitas e outras espécies de meliantes;

h) disseminação de notícias flagrantemente falsas (invenções de fatos e deturpação de aspectos da realidade) para denegrir a imagem e a reputação de pessoas, autoridades, políticos, agremiações partidárias, instituições, organizações da sociedade civil e governos.

É importante observar que em nenhum momento foi mencionado o salutar direito de crítica e oposição, minimamente civilizado, a projetos e concepções políticas, econômicas e sociais. O debate público responsável e respeitoso é o tempero da democracia. A liberdade de manifestação, que não é absoluta, nem é o exercício da selvageria, é um dos pilares inafastáveis do ambiente democrático. No entanto, limites e responsabilidades são corolários inevitáveis do exercício da liberdade em relação ao convívio humano em sociedade. Somente uma profunda incompreensão do Direito e da vida ou o supremo mau caratismo permite a indevida mistura de alhos e bugalhos.

O momento é grave e exige firmeza e energia em atuações rigorosamente necessárias. O discurso panfletário e raso de que estamos diante da marcha da censura, do autoritarismo, da ditadura e coisas do gênero pode influenciar incautos, equivocados e interesseiros de todo gênero, mas certamente não paralisará as instituições brasileiras no exercício de suas responsabilidades constitucionais e legais.

Nesse sentido, os mais variados caminhos e instrumentos já são utilizados, discutidos e cogitados. A referida Portaria MJSP n. 351/2023 está em vigor, produzindo efeitos, investigações/inquéritos, solicitações de remoções ou suspensões de perfis em plataformas digitais, pedidos de prisões e apreensões, intimações para depoimentos, pleitos de buscas e apreensões, entre outras providências. Certamente, o julgamento de alguns aspectos do marco civil da internet (Lei n. 12.965, de 2014) pelo STF será um importante momento neste processo. Consta que várias ações nesse sentido estão na pauta do Supremo no próximo dia 17 de maio. Ademais, não pode ser desconsiderada a eventual propositura de ação direta de inconstitucionalidade por omissão ou mandado de injunção que leve o STF a legislar, no sentido mais estrito do termo, sobre o assunto.