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(Millôr Fernandes)

domingo, 14 de maio de 2023

O grande dilema brasileiro: entre a exportação primária e a industrialização

Domingo, 14 de maio de 2023

Da AEPET, com informações do site Sputnik Brasil

Escrito por Valdir da Silva Bezerra
Publicado em A-Destaque

Brasil poderia usar relações com a China para promover a tão sonhada diversificação de sua economia

O Brasil tradicionalmente ocupa um espaço bastante determinado no comércio internacional, a saber, como país importador de manufaturados (cerca de ¼ do total das importações brasileiras nos últimos anos foram compostas por máquinas) e fornecedor de commodities para os mercados globais.

A título de exemplo, cerca de 20% de todas as exportações brasileiras são compostas por produtos primários, concentrados principalmente em petróleo e minério de ferro. Todavia, de tempos em tempos esse perfil econômico do país suscitou arrazoada preocupação por parte da liderança brasileira a respeito de sua inserção no mundo.

Afinal, o Brasil tem uma dimensão continental, uma expressiva população e uma economia que o credenciaria a desempenhar papel de maior relevância nos assuntos globais.

Com o passar do tempo, no entanto, a fixação do papel histórico do Brasil como exportador de commodities aos países economicamente mais avançados, seja Estados Unidos, Alemanha, ou mais recentemente a China, acabou vinculando o seu crescimento econômico ao desempenho dos países desenvolvidos, além de desincentivar processos de industrialização no âmbito doméstico.

A relativa bonança em períodos de boom nos preços das commodities no mercado internacional não raro culminaram numa situação de dependência do país quanto à exportação de matérias-primas.

Não obstante, o ocasional desinteresse do Estado (manifestado por sua classe política sobretudo) no desenvolvimento de setores mais dinâmicos — e tecnologicamente mais modernos — da economia, fez com o que o Brasil tivesse dificuldade de reimaginar o seu papel no mundo.

Compete lembrar que o crescimento econômico do Brasil desde o começo dos anos 2000 baseou-se — em razoável medida — no comércio de commodities para a China. Com isto, o país tornou-se não somente suscetível a flutuações nos preços internacionais do petróleo e do minério de ferro (como frequentemente acontece), como também se tornou suscetível à eventual diminuição nas taxas de crescimento da própria China, seu principal parceiro comercial.

Com efeito, este tem sido um dos principais dilemas brasileiros ao longo de sua história, a saber, conciliar sua posição enquanto exportador primário com o desejo pela industrialização do país.

Por certo, este dilema não é algo que toca somente ao Brasil, mas que também afeta diversos outros países do sistema internacional desde a segunda metade do século XIX e princípio do século XX. Foi durante esse período que a nascente divisão internacional do trabalho configurou o mundo entre países industrializados e países agroexportadores.

Na época do Brasil Império (1822-1889), a liderança nacional já se preocupava com o fato de que os acordos e tratados comerciais firmados com o Reino Unido eram de certo modo prejudiciais aos interesses do país, na medida em que dificultavam a proteção e o desenvolvimento de sua indústria.

Tal situação era explicada sobretudo pelas exigências de abertura do mercado brasileiro aos manufaturados britânicos, enquanto o café e o açúcar do Brasil tinham acesso limitado ao mercado britânico.

Já no começo do século XX, o Brasil republicano voltava a se questionar quanto ao seu papel tradicional de nação exportadora de matérias-primas, dessa vez para os Estados Unidos, que despontavam como principal parceiro comercial do país, desbancando a Inglaterra. Enquanto isso, o Brasil consolidava-se como importador dos produtos manufaturados americanos, o que culminou por retardar seu desenvolvimento industrial e sua maior independência econômica.

Já na primeira metade do século XX, o governo de Getúlio Vargas propôs o desenvolvimento econômico do país baseado na industrialização. Com isto, dava-se sinais de que a inserção internacional do Brasil não seria mais unicamente sujeita às vantagens obtidas pelo setor agroexportador no comércio com os Estados avançados.

Interessava, todavia, aos americanos que o Brasil mantivesse seu papel de fornecedor de matérias-primas e importador dos produtos manufaturados dos Estados Unidos, numa relação claramente hierarquizada entre os dois países.

No pós-guerra, por sua vez, o governo de Juscelino Kubitschek aproveitou-se da competição internacional por mercados entre os Estados Unidos, a Europa (já recuperada economicamente) e o Japão para atrair justamente investimentos considerados necessários ao desenvolvimento da indústria nacional, sobretudo automobilística.

A priori, o Brasil forneceria matérias-primas a países como Alemanha e Japão em troca de insumos industriais e bens de capital úteis para o seu projeto de desenvolvimento. Contudo, a principal esperança do Brasil à época era a capitação de recursos americanos para o aceleramento desse processo, o que acabou não acontecendo, tendo em vista o desinteresse dos Estados Unidos pelo desenvolvimento econômico dos países da América Latina.

Não por acaso, nas décadas posteriores da Guerra Fria (envolvendo o período da Ditadura Militar), firmavam-se em definitivo os padrões de relacionamento desigual entre o Norte (desenvolvido) e o Sul Global, composto por países insuficientemente industrializados e caracterizados (muitos deles) como meros exportadores de matérias-primas aos países europeus e norte-americanos.

Seja como for, os países latino-americanos ainda enxergam a industrialização como fator essencial para o ganho de autonomia econômica e política no cenário global. O Brasil, em vista disso, ao longo de sua história tentou por diversas vezes repensar o seu papel no mundo, no intuito de modificar seu perfil comercial primário e tornar-se uma nação economicamente mais dinâmica e avançada.

Diante desse contexto, o Brasil de hoje poderia usar suas relações com a China, que se tornou referência no processo de transferência de tecnologias para o Sul Global, no intuito justamente de desenvolver sua infraestrutura e de dar novo fôlego a suas indústrias, promovendo uma tão sonhada diversificação de sua economia.

Quem sabe assim o Brasil não consiga resolver seu dilema que já dura décadas, ampliando sua autonomia nas relações internacionais, e tornando-se enfim o "país do presente" e não mais o "país do futuro".

Valdir da Silva Bezerra

Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estatal de São Petersburgo

Membro do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais sobre Ásia da Universidade de São Paulo (NUPRI-GEASIA)

Pesquisador do Grupo de Estudos Sobre os BRICS da Universidade de São Paulo (GEBRICS-USP)

Colaborador do Grupo de Estudos sobre a Rússia (PRORUS) da Universidade Federal de Santa Catarina