Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Roubando a terra ao Anteu

Segunda, 19 de setembro de 2011
Anteu                Google imagem
A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor;
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor
Senhor!... pois quereis a praça?
Desgraçada a populaça
Só tem a rua de seu...
Ninguém vos rouba os castelos,
Tendes palácios tão belos...
Deixai a terra ao Anteu.

(Castro Alves, em O Povo no Poder)
Castro Alves todos guardam na memória, mas suponho que caiba, em benefício de um ou outro leitor mais distraído, uma referência a Anteu, a quem o poeta, nesses versos, identificou com o povo. Personagem da mitologia grega, Anteu era um deus, filho de Posídon (o deus do mar, adotado pelos romanos sob o nome de Netuno) e Gaia (a Terra). Sua característica principal era a capacidade de captar para si a força da Terra, sua mãe, sempre que estivesse em contato com ela. Nessas condições, era invencível. Se perdesse esse contato, tornava-se indefeso.

Tem político que talvez por ser jovem, não ter vivido os tempos de chumbo, a ditadura imposta a partir de primeiro de abril de 1964, e principalmente nunca ter precisado sair às ruas para conseguir qualquer coisa na vida, agora brinca de querer proibir o povo de se manifestar na principal via pública de Brasília. Para torná-lo fraco, vulnerável, quer tirar-lhe o chão. Roubar a terra ao Anteu.

De acordo com o projeto de lei apresentado, neste mês de setembro, pelo deputado distrital Cristiano Araújo (PTB), todo o Eixo Monumental de Brasília (o eixo central do avião) seria, na prática, proibido como local de manifestações de protestos. O espaço compreende toda a extensão que vai da antiga rodoviária interestadual até a Praça dos Três Poderes, passando pelo maior palco das manifestações populares, que é a Esplanada dos Ministérios. Impedirá também a lei, caso seja aprovado o projeto autoritário de sua excelência, que a Praça do Buriti, onde se localizam o palácio do governador do Distrito Federal, a Câmara Legislativa do DF, o Tribunal de Justiça do DF e o Ministério Público do DF, seja usada para manifestações. Reinará, segundo as intenções do deputado, a mais perfeita calma naquela região, mesmo que tudo o mais esteja explodindo.

Foi na Praça do Buriti, por exemplo, que no dia 9 de dezembro de 2009 o povo se reuniu para protestar contra o mensalão do DEM, bandalheira patrocinada pelo grupo do governador José Roberto Arruda e denunciada pelo “produtor cinematográfico especial” Durval Barbosa, que era um dos secretários de Estado do governador. Foi aí que houve um verdadeiro teatro de guerra, onde a polícia do governador sentou o pau nos manifestantes. Na praça, estudantes, sindicalistas, mulheres, jovens, crianças e velhos. Não houve seletividade na carga da cavalaria, no spray de pimenta, na bomba de efeito moral, nas balas de borracha, no desrespeito ao direito de manifestação. Todos foram vítimas da arrogância e da truculência do governador e de suas tropas.

Do lado de lá, na trincheira do governador, estava o deputado Cristiano Araújo, parlamentar da base de apoio de Arruda. Não estava nas ruas, não protestava, permanecia omisso, se calava. E, claro, não gostava do que via.

Depois do naufrágio político de Arruda, sabe-se lá por quais cargas d’água o antigo aliado é hoje peça importante na base parlamentar do governo Agnelo/Filippelli, e em breve será nomeado secretário de Desenvolvimento Econômico.

Nenhum governo gosta de ver protestos nas ruas. Um protesto se inicia, mas ninguém é capaz de dizer com exatidão quais as suas conseqüências, qual o rumo que tomará mais adiante.

É verdade que por mais esquisito que possa parecer, temos assistido algumas manifestações que são verdadeiros “protestos de apoio”, se é que assim podemos chamar algum protesto. São centrais sindicais, sindicatos, entidades estudantis que foram domesticados e amestrados pelos governantes. Mas mesmo sendo assim, há de se garantir o seu direito de manifestação, de sair às ruas, de, sabe Deus, protestar ou aplaudir. Anos depois que o PT inventou o “apoio crítico”, surge agora essa hilariante onda de protestos de apoio.

Mas voltando ao autoritarismo do projeto de lei apresentado pelo deputado distrital Cristiano Araújo, ele estabelece critérios e horários para manifestações ao longo da Via do Eixo Monumental. Claro que haveria ele, o deputado, de tentar não deixar transparecer que era uma proibição e pronto. Assim, no artigo 2º do projeto de lei, o deputado coloca que “É vedada a realização de manifestação através de Carreata, passeata marchas outra da mesma natureza, nas faixas do Eixo Monumental nos horários de trânsito intensivo” (sic). O deputado considera horário de trânsito intenso aquele compreendido entre às 7 e 10 horas e entre as 16 e 19 horas.

As manifestações, assim, poderão ser realizadas a partir do primeiro segundo depois das 19 horas até 6h59min59. A partir desse momento, nenhum manifestante pode estar na área. Mas que bom, pois às 10 horas e mais um milésimo de segundo, um grito de guerra poderá reorganizar rapidamente a manifestação. O povo reinicia o que eles chamam de baderna, mas que terá que ser suspensa novamente às 15h59min59, podendo ser retomada às 19 horas mais um milésimo de segundo. Parece até aquela brincadeira de menino: “Vivo! Morto!”

A isso poderemos chamar de manifestação quebrada. Está aí. A intenção maior é quebrar com as manifestações, pois povo na rua é muito perigoso. Não para o país, mas para aqueles que nos governam, e geralmente de forma muito mal e acham que o país é deles. Incluindo o DF.

Engraçado — se não fosse suspeito — é o artigo 4º do projeto de lei de sua excelência o deputado distrital Cristiano Araújo. Ele faz uma ressalva, pois diz que a proibição estabelecida no artigo 2º “não atingirá os eventos já previstos no Calendário Oficial de Eventos do Distrito Federal, bem como as comemorações de datas festivas”. Por exemplo, o desfile do Sete de Setembro pode ser realizado, mas a Marcha Contra a Corrupção, a exemplo do que aconteceu no último dia em comemoração à independência do Brasil (qual independência?), seria tratada na base do cacete, do pit bull, do spray de pimenta, da cavalaria, do brucutu, do Bope. É isso, ou pior do que isso, essa coisa que o deputado quer transformar em lei.

Mas tem mais. Segundo o Projeto de Lei 531/2011 — que leva o DNA do “monstro da lagoa” imaginado por Chico Buarque — e que já foi lido no Plenário da CLDF, “os participantes deverão efetuar a concentração pública próxima à área do evento, para evitar o menor transtorno possível ao transito (sic) do local”. Está aí uma boa ideia. Se estiver, por exemplo, previsto um ato junto ao Congresso, os manifestantes teriam que se reunir a poucos metros do local. Caso fossem umas 100 mil pessoas, umas se acomodariam sobre as outras, em camadas cuja altura poderia causar transtornos ao tráfego aéreo, levando, da terra aos céus, as complicações que o projeto diz querer evitar.

Você acha que acabaram os absurdos colocados no projeto de lei? Não, a coisa vai longe. Reza o texto, no seu artigo 6º, que “As manifestações ao longo do Eixo Monumental, deverão ocorrer, preferencialmente, no canteiro central.” Já no artigo 7º, por sua vez, é definido que “Não havendo condições de utilização na forma prevista no artigo anterior, será permitida manifestação ao longo do Eixo Monumental, desde que não ocupe mais do que uma faixa de rolamento da via, sem que haja cruzamento entre uma faixa e outra, exceto, nas faixas de pedestres.”

A lei proposta pelo distrital Cristiano Araújo, para ser realmente sincera e franca, poderia resumir-se a três artigos:

Art. 1º. Fica proibida em Brasília qualquer manifestação de protesto.

Art. 2º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 3º. Revogam-se as disposições em contrário, especialmente aquelas que garantem o direito constitucional de manifestação.